Partido avalia questionar no STF fragilidades no processo de venda e, se voltar ao poder, recomprar ações da companhia para que o governo volte a deter mais de 50% da empresa
Por Bernardo Caram e Lisandra Paraguassu (Reuters) - Com o processo de privatização da Eletrobras perto de ser concluído, o PT já traça planos para tentar retomar o controle estatal da maior elétrica da América Latina no caso de uma vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas próximas eleições, disseram membros do partido à Reuters.
Mas o caminho para reverter a desestatização não é simples, na visão de especialistas.
As iniciativas elencadas pelo partido passam por questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre fragilidades no processo de venda e vão até uma possível recompra de ações da companhia para que o governo volte a deter mais de 50% da empresa.
Contudo, não preveem ações que possam ser caracterizadas como ruptura ou desrespeito à atual legislação, de acordo com representantes do partido ouvidos pela reportagem.
"É possível reverter", afirmou à Reuters o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, que comandou a pasta nas gestões do PT entre 2006 e 2014. "Eu não tenho dúvidas que há formas, nem que, no limite, você tenha que recomprar as ações."
Na avaliação de Mantega, o primeiro passo seria levantar as possibilidades de contestação jurídica do processo de privatização. Para ele, o partido deve buscar "defeitos e irregularidades" que possam ter sido cometidos, citando questionamentos já levantados no Tribunal de Contas da União em relação à precificação da operação.
"O melhor caminho é você questionar e derrubar na Justiça essa privatização, que tem várias irregularidades", disse.
Responsável no PT por acompanhar o processo de privatização até aqui, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) tem trabalhado, dentro da campanha de Lula, as alternativas que possam ser usadas pelo partido no caso de a venda da estatal ser de fato levada adiante.
O senador cita uma série de pendências, chamadas por ele de "fios desencapados", que trariam insegurança ao processo, incluindo o impacto nas contas de luz da descotização das usinas --que abrirá espaço para a comercialização de cerca de 40% da energia consumida no país a preços livres de mercado.
O senador citou também a falta de um estudo de impacto de médio prazo nas tarifas e questões relacionadas a Furnas, Itaipu e Eletronorte que ficaram sem solução.
"Não é questionar por questionar. Não vai ter insegurança jurídica. Essa insegurança já existe com esses problemas que ficaram. É fazer ajustes para corrigir processos defeituosos e reinstaurar o interesse público", defendeu.
Procurados pela Reuters, os ministérios de Minas e Energia e da Economia não responderam. A Eletrobras informou que não vai comentar.
O governo tem negado que a privatização da Eletrobras resultará em um aumento da conta de energia, ressaltando que o projeto prevê aportes de cerca de 32,1 bilhões de reais pela Eletrobras à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) ao longo de vários anos, compensando a descotização. Além disso, a companhia também deverá direcionar quase 10 bilhões de reais à revitalização de bacias hidrográficas na próxima década.
Para Prates, o questionamento da privatização da Eletrobras se dará "de forma não traumática".
"Temos que usar as mesmas regras de mercado. As que são contestáveis serão (contestadas), usando as regras do jogo. O Estado brasileiro como acionista, majoritário ou não, se mexerá. É um poder e uma prerrogativa do acionista agir."
As regras do processo de privatização preveem uma diluição do poder do governo federal dentro da empresa, com a venda de ações até que a União chegue a 45% de participação nas ações ordinárias e perca o controle da empresa.
No grupo que trabalha com o plano de governo de Lula, a recompra de ações é uma das possibilidades consideradas, como admitido por Prates e Mantega. Mas não há uma decisão tomada. É preciso, dizem, analisar o cenário no caso de o ex-presidente ser eleito.
Difícil reversão
Uma eventual reversão da privatização da Eletrobras é possível em teoria, mas muito difícil de ser operacionalizada na prática, na avaliação de João Reis, advogado do escritório Machado Meyer, especializado na área de litígio.
"Também acho complicado vir uma decisão política de retornar a Eletrobras como ente da administração pública", disse, pontuando dificuldades fiscais que o país enfrenta.
O presidente da Associação dos Investidores no Mercado de Capitais (Amec), Fábio Coelho, observou que a modelagem da privatização já prevê regras que praticamente inviabilizariam um movimento desse por parte do governo.
Uma das chamadas "poison pills" --regras normalmente colocadas para proteger acionistas minoritários-- da Eletrobras determina que quem passar a deter mais de 30% das ações teria que pagar um ágio de 100% sobre o valor médio negociado das ações ordinárias da companhia. "Fica muito caro, quase inviável economicamente... E se quiser comprar mais de 50% da companhia, tem um ágio de 200%", acrescentou.
O PT já tentou suspender a privatização na Justiça, sem sucesso. Em abril e maio, parlamentares do partido e de outras siglas da oposição entraram com ações, inclusive no STF, para travar o processo. Até o momento, os pedidos não prosperaram.
Insegurança energética
Faz parte do plano de governo de Lula a ideia de que um futuro governo precisa trabalhar com acionistas nas estatais, mas de um perfil específico. A visão é de que o investidor em estatais brasileiras --e isso serve para Eletrobras e Petrobras-- não pode ser um daytrader, alguém que especula com as ações e espera um retorno rápido.
"As estatais terão que ser vistas como um investimento conservador valorizado, de longo prazo, para fundos de pensão das professorinhas de Quebec, dos carteiros de Nova York. Uma rentabilidade mais comportada, mas mais longeva. Esse é o acionista que queremos. Uma estatal não é uma startup", disse Prates.
A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, afirmou que a perda de controle da Eletrobras pelo governo trará insegurança energética e aumento de tarifas, além de desestruturar investimentos em infraestrutura e políticas sociais. Para ela, a velocidade da privatização tocada pelo governo Jair Bolsonaro torna a operação insegura para os investidores sob aspectos jurídicos, econômicos e políticos.
“Da forma como está sendo conduzida, com subavaliação de ativos, atropelos nos processos licitatórios e outros procedimentos, essa privatização configura uma verdadeira negociata”, disse, acrescentando que vê ilegitimidade do governo Bolsonaro para conduzir esse processo em final de mandato.
Lula se posicionou mais de uma vez contra a privatização da Eletrobras, fez críticas à venda em ano eleitoral e chegou a dizer que quem comprasse a companhia iria se arrepender.
"Os empresários que tiverem juízo é importante contar até 10 antes de fazer a loucura de comprar a Eletrobrás a preço de banana", afirmou em entrevista a uma rádio de Minas Gerais.
“Privatizar a Eletrobras é entregar de bandeja esse inestimável patrimônio duramente construído pelo povo brasileiro”, disse em maio, em redes sociais.
Lula vem liderando as pesquisas de intenção de voto para as eleições de outubro. Levantamento do Datafolha mostrou que o petista abriu 21 pontos de vantagem sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL), com 48% da preferência dos eleitores, ao passo que o atual mandatário registra 27% de intenção de voto.
A privatização da estatal de energia já recebeu aval do Congresso e foi aprovada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em maio. No final do mês passado, a companhia lançou a oferta de ações para concretizar a capitalização, que tem precificação prevista para 9 de junho.