Alemanha em seu labirinto
AfD, extrema direita alemã (Foto: Annegret Hilse/REUTERS
Por Sergio Ferrari - As eleições de 1º de setembro nos Estados alemães da Turíngia e da Saxônia tornaram-se êxitos significativos para a extrema direita alemã, que pode ser ainda mais fortalecida nas próximas eleições regionais em um terceiro Estado, o de Brandemburgo.
Na Turíngia, com quase 3 milhões de habitantes, a Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland, AfD), de extrema-direita, tornou-se a principal força com quase 33% do eleitorado e 32 dos 88 assentos no Parlamento, 10 a mais do que hoje. Seus novos eleitores são, principalmente, ex-eleitores da União Democrata Cristã (CDU) e da esquerda radical (Die Linke), decepcionados por terem votado em 2019 em partidos que não tinham capacidade de exercer oposição frontal ao atual governo.
Na Saxônia, com 4 milhões de habitantes, a extrema direita ficou em segundo lugar com quase 31% dos votos e 40 dos 120 deputados regionais, dois a mais do que na legislatura anterior e apenas um a menos do que os democratas-cristãos, que ainda continuam sendo a força principal.
Alemanha presa em si mesma
Para Beat Wehrle, analista político, especialista em questões globais e diretor do Programa Internacional da Organização Não-Governamental (ONG) Terre des Hommes/Alemanha (Terra da Humanidade), o fato de que "a Alternativa para a Alemanha obtenha essa alta porcentagem é escandaloso, mas não surpreendente".
Por que você considera isso um escândalo? Porque em ambos os Estados, o Escritório Federal de Proteção Constitucional (Bundesamt für Verfassungsschutz) caracteriza a AfD como definitivamente de extrema-direita, por causa de suas declarações e atitudes claramente neonazistas. De acordo com Wehrle, "Bernd Höcke, o candidato da AfD na Turíngia, é o melhor exemplo e prova palpável de tal caracterização. Ele é a figura que está concentrando cada vez mais poder dentro dessa força e dirige a tendência interna mais reacionária, chamada Der Flügel" (Ala ou Facção)".
O resultado não é surpreendente, argumenta Wehrle, já que muitas pesquisas o anteciparam. "No entanto, deve-se reconhecer que os percentuais são um pouco maiores do que o esperado", o que indica um crescente descontentamento. Particularmente no leste da Alemanha, onde a AfD sempre obteve suas conquistas mais significativas. Segundo esse analista político, esse descontentamento se deve à "desigualdade histórica entre a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental. E em tempos de crise, na ausência de perspectivas, a frustração e o protesto social são acentuados. A Alemanha está passando por um processo acelerado de autoabsorção com o consequente profundo retrocesso em termos de solidariedade, tanto nacional quanto em sua visão internacional".
Por exemplo, na primeira semana de setembro, a gigante automobilística alemã Volkswagen anunciou que está estudando o fechamento de pelo menos duas de suas fábricas no país com a correspondente ameaça a vários milhares de empregos. Nada parecido com isso aconteceu nos 87 anos de história da empresa, um verdadeiro emblema da antiga pujança da nação europeia.
Cordão político sanitário
Apesar dos últimos resultados eleitorais, não será automático que a extrema direita possa governar. A CDU antecipou que buscará promover um cordão sanitário e construir uma aliança contra a AfD.
Tanto na Turíngia quanto na Saxônia, os grandes perdedores das eleições do primeiro domingo de setembro foram os partidos da aliança governante em âmbito nacional: o estagnado Partido Socialdemocrata do chanceler Olaf Scholz; Os Verdes, que desaparecem na Turíngia e permanecem minimamente na Saxônia; e o Partido Liberal Democrata (FDP), varrido em ambas regiões.
O sinal que a Turíngia e a Saxónia acabam de enviar a Berlim, sede do governo nacional, é claro e desafiador. E pode ser ainda mais fortalecido nas próximas eleições de 22 de setembro no Estado de Brandemburgo, por enquanto governado por um ministro-presidente socialdemocrata que, em 2019, conseguiu prevalecer sobre a extrema direita por menos de 3 pontos percentuais (26,2% a 23,5%). Brandemburgo, com quase 2,5 milhões de habitantes, junto com a Turíngia e a Saxônia e dois outros Estados, constituiu a antiga República Democrática Alemã até a queda do Muro de Berlim e a reunificação de ambas as nações.
Em 1º de setembro, as urnas desacreditaram ainda mais um governo quebrado. E deixaram claro que a questão do controle migratório já é um marco de referência para o debate político atual do qual ninguém pode se distanciar. Nem mesmo o tapa na cara do primeiro-ministro Scholz no final de agosto, que expulsou 28 cidadãos afegãos acusados de vários crimes em meio a um grande show da mídia, serviu para amortecer o discurso xenófobo que ganha cada dia mais terreno na Alemanha.
Polos distantes e coincidentes
Nesse cenário que vem se desenhando há vários anos, não é de surpreender que o outro grande vencedor da disputa eleitoral da semana passada seja um novo partido. Recém-formada e nascida da extrema esquerda, a Aliança Sahra Wagenknecht – Pela Razão e Justiça (BSW, na sigla em alemão), também assume o controle da imigração como seu eixo programático, coincidindo parcialmente com a extrema direita radical.
O novo partido de Sahra Wagenknecht, que leva o nome da própria dirigente, em uma expressão surpreendente do personalismo do homem forte, é o resultado de uma divisão no Die Linke (A Esquerda), que desde sua fundação, em 2007, expressou críticas fundamentais à socialdemocracia, exigindo um aprofundamento progressivo das políticas socioeconômicas em execução.
A Aliança Sahra Wagenknecht acaba de obter quase 16% dos votos na Turíngia e cerca de 12% na Saxônia, tornando-se a primeira força na história alemã a alcançar resultados tão altos apenas nove meses após sua fundação.
A história de Wagenknecht, que aos 55 anos se tornou uma das figuras políticas mais importantes do país, é particular. Doutora em Ciências Econômicas e publicitária, desde a juventude atuou em articulações de esquerda. Ela fez parte da liderança do Die Linke (tornou-se vice-presidente) e parlamentar europeia por essa articulação entre 2004 e 2009. Durante anos, tem se projetado como uma figura de destaque no campo progressista, embora nos últimos tempos tenha apresentado argumentos controversos, em particular suas críticas à migração livre e à política de fronteiras abertas. Wagenknecht propõe programas sociais que priorizam os trabalhadores, defende mais justiça na redistribuição de renda para beneficiar os menos abastados e, ao mesmo tempo, subestima as questões de gênero e ambientais, que, segundo ela, desviam a atenção das prioridades sociais. Na política internacional, ele propõe se distanciar da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), frear o apoio à Ucrânia e negociar com a Rússia para chegar a uma resolução do conflito. Em tom categórico, ela se distancia da presença de mísseis estadunidenses de médio alcance em território alemão.
Sua combinação de retórica anti-imigração, pacifista e antiguerra na Ucrânia –embora insista que não é pró-Rússia– permitiu-lhe distanciar-se das forças desgastadas do governo. Ao mesmo tempo, definiu um perfil político próprio que se afasta da esquerda tradicional de onde provem. E está apostando em atrair o voto de uma parte dos desiludidos com o sistema atual que também não se sentem confortáveis com a extrema direita.
Como a terceira força nas duas recentes eleições regionais, sua Aliança deixou os socialistas, liberais e verdes muito para trás. Suas grandes porcentagens eleitorais indicam que poderia inclinar a balança tanto para a extrema direita quanto para um governo democrata-cristão, tornando-se, assim, um fator político com grande poder de barganha com ambos os lados.
Para Wagenknecht, além do que está em jogo hoje nos dois Estados do leste da Alemanha, a construção política nacional de sua aliança que conta, acima de tudo, para o exercício eleitoral de 1º de setembro foi um laboratório com resultados chocantes.
Encruzilhada
De acordo com Beat Wehrle, "Até agora, o BSW afirmou que não fará uma aliança com a extrema direita". No entanto, Wehrle, Katja Wolf, uma figura-chave no BSW na Turíngia, disse que "pretende apoiar propostas razoáveis que a extrema direita aprove na assembleia legislativa".
Wehrle também concorda que os resultados bem-sucedidos da extrema direita e do BSW expressam "o forte descontentamento atual com os partidos tradicionais". E ressalta que o rápido crescimento da BSW complica ainda mais as negociações para formar o governo na Saxônia e na Turíngia: "Pode ser uma amostra da dificuldade de constituir uma futura aliança governamental no próximo ano em âmbito nacional após as eleições gerais, que se realizarão em setembro de 2025".
O BSW, insiste Wehrle, "é uma expressão clara da frustração de uma parte do eleitorado com a atual coalizão de governo". É conhecido como AMPEL –"semáforo" em alemão– em homenagem às cores vermelha do Partido Socialdemocrata, amarelo do liberal FDP e verde de Os Verdes. Pode-se especular que, após as eleições do próximo ano, será muito difícil que essa aliança se repita porque o atual governo, nas palavras de Wehrle, "está cheio de contradições, em permanente disputa, com o chanceler Olaf Scholz, que carece de carisma e autoridade, com os liberais que jogam de forma extremamente desleal e com Os Verdes, que são incapazes de implementar suas propostas. Por tudo isso, o descontentamento é amplo e profundo."
Os cidadãos da Turíngia e da Saxônia que votaram no BSW, segundo Wehrle, "representam um setor que não quer apoiar o governo nacional, mas que não se identifica com os democratas-cristãos, muito menos com a extrema direita". Embora o BSW se apresente com posições de esquerda em política econômica e social, sua posição é muito conservadora na questão da migração.
Voltando à análise pós-eleitoral global, Wehrle reitera "que os resultados da AfD são preocupantes para a própria democracia, pois com seu discurso fascista, está empurrando todos os partidos de forma significativa para a direita".
E argumenta que os democratas-cristãos se tornaram ainda mais conservadores do que eram antes e que os socialdemocratas parecem não ter uma bússola e nem mesmo se apropriam de suas posições históricas. Hoje, a extrema-direita, sublinha, já define e impõe o quadro do debate político e os seus conteúdos prioritários, obrigando toda a classe política a uma viragem ideológica muito forte à direita. A mesma tendência que estamos vendo em muitos países da Europa e até globalmente, conclui.
Tradução Rose Lima.
Fonte: Brasil 247