R$ 339 mil de dinheiro público foram gastos em projeto ligado ao ex-líder da bancada evangélica
Uma ONG usou um projeto apadrinhado pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) — autor do PL antiaborto — para comprar 11.500 camisas com fortes indícios de superfaturamento.
Uma reportagem do portal UOL identificou suspeita de superfaturamento de ao menos R$ 339 mil em dinheiro público em projeto de qualificação profissional ligado ao ex-líder da bancada evangélica.
O caso em 6 pontos:
— Preço unitário de camisas dobrou em apenas três meses. A ONG Con-Tato, que tocou o projeto Qualifica RJ (também conhecido como Ellos Qualificação) em parceria com a Unirio (Universidade Federal do Rio de Janeiro), comprou 11.500 camisas de uma mesma empresa por R$ 688 mil em 2023.
— Sete camisas por aluno. Foram pagas 11.500 camisas, mas a ONG estimou 1.440 beneficiados no Ellos Qualificação, que ofereceu cursos profissionalizantes gratuitos e foi encerrado em março.
— Formaturas sob suspeita. A ONG pagou R$ 684 mil por 49 cerimônias de formatura dois dias após o lançamento oficial do projeto, que ofereceu cursos com duração de três meses. Fotos mostram cerimônias simples nos locais dos cursos, como igrejas.
— Brinquedos em formaturas de adultos. Proposta de orçamento para os eventos previa “organização de beneficiários em brinquedos e distribuição de lanches e medalhas”. Apesar disso, a ONG pagou R$ 1,3 milhão pelo serviço, o equivalente a 98 formaturas para 24 polos do projeto, segundo notas fiscais.
— Sóstenes Cavalcante se intitula o padrinho dos projetos da marca Ellos, que envolvem castração animal e aulas de qualificação profissional e esportes. Ele direcionou aos projetos Ellos um total de R$ 20 milhões em emendas parlamentares individuais nos últimos três anos. Todas as postagens do Ellos no Instagram marcam o parlamentar.
— O deputado é o campeão de envio de dinheiro federal para a rede de ONGs com indícios de desvios. O valor total de verbas vinculadas a Sóstenes chega a R$ 43 milhões.
Elas receberam quase meio bilhão de reais de parlamentares entre 2021 e 2023.
Camisas com suspeita de superfaturamento
A ONG Con-Tato fez pesquisa de preços — espécie de concorrência para se chegar ao valor mais baixo — referente a 600 camisas para o projeto de esportes Avante Brasil em setembro de 2022.
A North Rio Comércio e Serviços saiu vencedora com o valor unitário de R$ 29,54. As camisas foram pagas pela ONG com dinheiro de emenda, enviado pelo deputado Otoni de Paula (MDB-RJ).
Três meses depois, a mesma empresa deu para a ONG orçamento de R$ 59,85 por um produto igual: camisas de malha brancas com logotipo do projeto.
Desta vez, com o logotipo do projeto apadrinhado por Sóstenes.
Apesar de ser uma quantidade bem maior (11.500 camisas), o produto saiu por mais que o dobro do valor.
A ONG economizaria R$ 339 mil em dinheiro público se tivesse comprado pelo valor oferecido três meses antes.
Entre os projetos ligados a Sóstenes, o Ellos Qualificação de 2023 foi o mais caro: R$ 12 milhões por cursos profissionalizantes em 24 polos no RJ.
O dinheiro veio de emenda assinada pela bancada do RJ (verba direcionada coletivamente por parlamentares).
Nos dois casos, as pesquisas de preços foram feitas com as mesmas empresas: North Rio (vencedora), Esporte Global e Dry Print, que apresentaram diferença de poucos centavos por produto.
Sóstenes: “Não é meu papel acompanhar compras”
O deputado se manifestou em email enviado por sua assessoria de imprensa:
“Não é meu papel acompanhar as compras [das ONGs], eles prestam contas aos ministérios”, em referência a órgãos como a Unirio e o Ministério de Esporte, responsáveis pelo acompanhamento das verbas destinadas pelos deputados aos projetos.
Questionado se nunca suspeitou de desvio, ele afirmou: “Todos os nossos polos e fiscais são fiscalizados por mim pessoalmente e garanto que todos funcionam”.
O dono da North Rio, Alexandre Soares da Cunha, alegou, por meio do advogado Eduardo Damian, que “os uniformes fornecidos foram produzidos com composição e cor de tecido diferentes em virtude de alteração no escopo solicitado pela contratante, por isso, houve divergência de valores”.
Já a ONG Con-tato disse que “a diferença [de preços] pode ocorrer pelas próprias peculiaridades do material utilizado (malha, dry fit, poliamida), estampa, além do tamanho e número de cores das logos utilizadas”.
No entanto, a diferença de valores ficou evidente no próprio envio das propostas de preços onde as especificações do produto eram as mesmas: camisa em malha branca, com logotipo do projeto estampado. As notas fiscais, emitidas para entrega do material, contêm a mesma descrição.
A Unirio comprometeu-se a verificar os indícios de irregularidades levantados pela reportagem e informou que seu atual comando participou apenas parcialmente da execução do Ellos Qualificação (encerrado em março) e que está desenvolvendo um sistema para aumentar o controle sobre as compras das ONGs.
.
11.500 camisas x 1.440 alunos
Outro ponto que levanta suspeitas é a quantidade de camisas adquiridas.
Foram compradas 11.500 camisas, mas a própria ONG divulgou no Instagram, em março de 2023, que havia previsão de 1.440 beneficiados no projeto – ou seja, seriam ao menos sete uniformes por aluno.
A Con-tato disse que “muitas vezes o plano de trabalho inicial sofre alterações, muitas vezes, por orientação do próprio ministério [da Educação, ao qual a Unirio está subordinada]”.
“Além disso, ao longo do projeto, os beneficiários inscritos podem mudar e o beneficiário que ocupa a vaga recebe um novo uniforme”, concluiu a ONG.
Campeão de emendas
Sóstenes Cavalcante aparece entre os deputados que mais destinaram recursos à rede de ONGs que tocou projetos com indícios de desvio de dinheiro público.
O aliado do pastor Silas Malafaia direcionou R$ 25,9 milhões em emendas individuais para a Con-tato e o Instituto Realizando o Futuro.
O valor total ligado ao parlamentar, porém, é maior. Ao menos duas outras emendas – uma de relator (sem autoria pública) e outra da bancada do RJ – são referentes aos projetos Ellos.
Com isso, o valor total vinculado a Sóstenes chega a R$ 43 milhões, atrás apenas do total de emendas assinadas pela bancada do RJ (R$ 152 milhões) nos últimos três anos.
“Parabéns” e ex-assessor contratado
Sóstenes faz questão de associar seu nome a projetos da marca Ellos.
No Instagram (@ellos.social), ele é sempre elogiado por alunos e professores. Também são divulgados vídeos de Sóstenes visitando locais onde ocorre o Ellos. Até parabéns pelo aniversário do deputado já foi tema de postagem.
Recentemente, houve a divulgação de visitas do cantor Waguinho a polos do Ellos. Ele é tido como a grande aposta de Malafaia para a eleição de vereador no Rio.
Sóstenes afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “não existe impedimento legal de visita de pré-candidatos junto comigo para fiscalizar a realização dos projetos”.
A reportagem ainda identificou a contratação pela ONG Con-Tato de Valfredo Marciano Pereira, assessor de Sóstenes entre 2015 e 2017 na Câmara. Ele foi contratado em 2022, segundo prestação de contas de projeto da marca Ellos.
Pereira venceu um processo seletivo para coordenador-geral do projeto com salário de R$ 4.800. Até hoje, Pereira se apresenta nas redes sociais do próprio Ellos como coordenador.
“Valfredo é um profissional muito qualificado, tem um currículo impecável”, afirmou Sóstenes. A Con-tato afirmou que, “para ter sido contratado, o profissional [Valfredo] atendeu aos critérios de avaliação e expertise dos profissionais para a vaga”.
Formaturas a jato
Além do superfaturamento nas camisas, há suspeitas de desvio de verba pública na contratação de cerimônias de formatura no Ellos Qualificação, ligado a Sóstenes.
A Con-Tato pagou à Produmix Brasil Produções e Eventos R$ 684 mil por 49 cerimônias (R$ 13.970 cada), desembolsados apenas dois dias após o lançamento oficial do projeto em março do ano passado.
A Produmix afirmou que já havia turmas em andamento desde janeiro que teriam se formado em março, segundo o advogado da empresa Carlos Eduardo Gonçalves.
A Con-tato disse que tem a comprovação de que todas as cerimônias pagas foram realizadas. Também afirmou que “os cursos de formação são cíclicos”.
“Pode acontecer a realização de uma cerimônia de formatura de um curso anterior na vigência do próximo ou após o início do próximo curso.”
Brinquedos e medalhas
Apesar de ser um projeto de qualificação profissional, voltado para jovens e adultos e sem aulas de esporte, a proposta de orçamento enviada pela Produmix à ONG Con-tato previa “organização de beneficiários em brinquedos e distribuição de lanches e medalhas”.
A Produmix disse que, apesar dessa descrição do serviço, foram “fornecidos todos os elementos necessários para a realização das cerimônias, como locação do espaço, buffet, fotografia, entre outros”.
Nas redes sociais do Ellos, a reportagem localizou fotos de cerimônias simples nos próprios locais onde ocorreram as aulas — dos 24 polos, ao menos 14 funcionavam em igrejas.
Ao todo, a Produmix recebeu R$ 1,3 milhão por 98 formaturas até junho do ano passado.
Gráfica de laranja
No mesmo Ellos Qualficação, a Gráfica Dinâmica Digital conquistou o seu maior contrato com a rede de ONGs: R$ 696 mil em recursos de emenda de Sóstenes para fornecer material gráfico. O valor foi pago pela Con-tato em 2023.
Criada em outubro de 2022, a firma – que assinou contratos no valor total de R$ 2,3 milhões com a Con-tato e o Instituto Realizando o Futuro – pertence à técnica de enfermagem Agatha Melissa Ferreira dos Santos, 23.
A sede da empresa fica na casa em que ela mora com os pais, no bairro carioca da Ilha do Governador. Ela ganha salário de R$ 1.800 como técnica de enfermagem.
A gráfica diz que isso “não a desqualifica como empresária”.
A maior parte do valor da emenda de Sóstenes (R$ 426 mil) se refere à impressão de 11 mil “materiais didáticos” ao custo de R$ 38,78 cada. O número contrasta com a previsão para o projeto feita pela Con-tato de atender a 1.440 alunos.
Não há nos documentos enviados pela ONG à Unirio nada que detalhe o que seria esse material didático.
Nas redes sociais do Ellos Qualificação, a reportagem localizou fotos que mostram apostilas. A pedido da reportagem, empresas do segmento estimaram em R$ 20 o custo unitário da impressão de 5.000 unidades desse tipo de material.
Por email, a gráfica afirmou que “não sabe por que a ONG Con-Tato não informou a relação de materiais devidamente entregues no âmbito dos convênios”. Questionada, a Con-tato não especificou o material didático.
Fonte: Agenda do Poder com informações do UOL.