Cigarro de maconha. Foto: reprodução
Leonardo Sakamoto
Para entender o
Brasil, não basta ver quem se estrepa, mas quem sempre se dá bem. Duas pessoas,
uma branca e rica e outra negra e pobre que estejam portando a mesma quantidade
de maconha tendem a ter destinos diferentes pelas estatísticas policiais. Um é
repreendido porque fez uma coisa feia, o outro, humilhado, processado, preso.
Não raro apanha. É esse racismo estrutural bisonho que a (tímida)
decisão do Supremo Tribunal Federal, desta terça (25), tenta mudar.
Por 11 votos a
três, os ministros decidiram criar critérios para separar o traficante do
usuário, mantendo o porte como ato ilícito, mas descriminalizando-o. Se o
branco rico não vai ao xilindró, o negro pobre também não vai. É simples, é
quase pueril, mas, mesmo assim, a mudança vai ser usada para atacar o STF.
Como a lei não
define hoje uma quantidade de droga que separa o traficante do usuário, a
polícia e a Justiça passaram a enquadrar semoventes com qualquer catso de
maconha como bandidos, mandando muitos para a cadeia – quer dizer, para a
escola do crime dirigida pelas narcomilícias. Com isso, o STF foi acionado. Foi
o bastante para a grita daqueles que acham que a corte só pode julgar a
constitucionalidade daquilo que lhes convém
Como reação, o
Congresso analisa uma proposta de emenda constitucional do senador Efraim Filho
(União Brasil-PB), que considera crime mesmo a pessoa que porte uma bituca
velha que produza menos de um peido de maconha e nem dê brisa.
Ela até prevê a
separação de traficantes e usuários (como vai fazer isso, ignorando o debate no
STF, eu não sei) e penas alternativas, além de mandar usuários para tratamento.
O que dá arrepios a imaginar a interpretação criativa de alguns juízes e do tratamento.
Com a decisão de
hoje, demos um passo, ainda que pequeno, contra a falida guerra às drogas – que
produz, anualmente, montanhas de mortos pelas narcomilícias e em chacinas
policiais em série – como as deste ano em São Paulo, na Bahia e no Rio – sem
conseguir reduzir o consumo de psicoativos.
Aliás, as maiores batalhas
do tráfico sempre acontecem longe dos olhos das classes média e alta, uma vez
que a imensa maioria dos corpos contabilizados é de jovens, negros, pobres, que
se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do
tráfico, pelas mãos da polícia e das milícias ou pelas balas perdidas (sic). Os
mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que
os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia.
Cigarro de maconha. Foto: reprodução
Se o Congresso quisesse resolver a bomba-relógio da segurança pública,
descriminalizaria e legalizaria paulatinamente uma série de drogas, começando
pela maconha. Isso quebraria as pernas do tráfico, reduzindo o número de jovens
que hoje são enviados aos presídios para aprender a roubar e matar e
desidratando o poder econômico das facções criminosas. Mas não quer. E brinda
seu anacronismo com uísque.
Assumir um
planejamento legal e de saúde pública (sim, drogas deveria ser tratada sob esse
enfoque e não o do xilindró) para a legalização e a regulamentação,
desidratando o tráfico de drogas e o tráfico de armas através do fim de seu
mercado ilegal seria importante para reduzir mortes.
Agora, o STF vai
definir a quantidade de erva que diferencia traficantes de usuários. A maioria
racional do Congresso poderia ser motor de efetivação da dignidade humana,
alinhando-se à resposta racional que o resto do mundo está tomando diante da
maconha. Mas o mais provável é que seja o seu freio, na ânsia por efetivar suas
necessidades políticas e eleitorais, por bater palma para maluco dançar e até
por manter o financiamento de bandido.
Por fim,
tentativa de golpe de Estado é, sob qualquer aspecto, muito pior que o porte de
drogas. Mas para uma parcela do Congresso e da extrema direita, precisamos dar
anistia a quem atentou contra o Estado Democrático de Direito e
mandar para o xilindró quem é pego fumando maconha.
O que é mais
fora da realidade? Essa viagem sem sentido ou uma brisa de erva?
Publicado
originalmente na coluna de Leonardo Sakamoto, no
Uol