A urbanização rápida e muitas vezes desordenada, assim como a segregação socioterritorial, levam à ocupação de lugares inadequados
Paula Pimenta, na Agência Senado - Ao ser destacado na Constituição
Federal como um direito social, a moradia deveria ser o prenúncio da segurança
mínima do bem-estar dos cidadãos, mas o Brasil tem mais de um terço de seus
municípios — 1.942, do total de 5.570 — com moradores em áreas de maior
vulnerabilidade, onde a possibilidade de eventos geo-hidrológicos, como
deslizamentos, enxurradas e inundações, é reconhecidamente multiplicada. Apesar
de haver imposição constitucional à União, aos estados e aos municípios de
melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, esse direito não é
cumprido quando ainda há cerca de 9 milhões de brasileiros vivendo em áreas de
risco.
Mapeamento a cargo da Casa Civil e do Ministério das
Cidades atualizou os critérios e indicadores para a identificação dos
municípios mais suscetíveis à ocorrência desses tipos de desastres para
priorização de ações por parte da União. O estudo mostrou que o número de
cidades com moradores em área de risco é 136% maior na comparação com
levantamento feito em 2012, quando havia 821 municípios na lista dos mais
vulneráveis.
Os números são ainda mais preocupantes quando se associam ao
aumento de ocorrência de catástrofes naturais relacionadas às mudanças no
clima. Em sessão temática no Senado em outubro de 2023, o destacado cientista
sobre aquecimento global Carlos Nobre afirmou que não há a menor dúvida de que
os extremos climáticos estão se tornando recordes em todo o mundo e que o
Brasil teve o maior número de casos registrados nos últimos três anos, diante
de altíssimas temperaturas, fortes secas e enchentes nunca registradas até
então.
Em nota técnica de 2023, a Secretaria Especial de
Articulação e Monitoramento, da Casa Civil, também sinaliza que “o aumento na
frequência e na intensidade dos eventos extremos de chuvas vêm criando um
cenário desafiador para todos os países, em especial para aqueles em
desenvolvimento e de grande extensão territorial, como o Brasil” e reconhece
que “as populações em situação de vulnerabilidade são as mais afetadas,
enfrentando ameaças crescentes à sua segurança, meios de subsistência e
infraestrutura”.
Da mesma forma, o governo aponta que a urbanização rápida e
muitas vezes desordenada, assim como a segregação socioterritorial, levam à
ocupação de lugares inadequados, sempre mais sujeitos a ocorrências de
inundações e deslizamentos de terra, entre outros perigos à vida. “Essas áreas
são habitadas, de forma geral, por comunidades de baixa renda e que têm poucos
recursos para se adaptarem ou se recuperarem dos impactos desses eventos,
tornando-as mais vulneráveis a tais processos”, diz a nota.
Com maior concentração demográfica, a Região Sudeste, que
concentra quase 30% dos municípios brasileiros, tem 31% deles com moradores em
área de risco, totalizando 48,7% da população dessa região em uma situação mais
suscetível a desastres. Já a Região Nordeste, que congrega 32,2% das cidades
brasileiras, registra 11% delas com habitantes em regiões de risco, o que torna
35,6% de sua população mais vulnerabilizada a tragédias.
Moradia
O direito à moradia é defendido pela Federação Nacional
dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), segundo a presidente da instituição, Andréa
dos Santos. Mas em que condições se quer a efetivação desse direito
habitacional é o que se pergunta.
— Embora seja esse direito constitucional, a gente não quer esse
atendimento em áreas consideradas de risco. E, ao mesmo tempo, a gente tem toda
uma escassez de área nas nossas cidades. Se a gente for pensar agora a proposta
do Rio Grande do Sul, tanto da Prefeitura de Porto Alegre, quanto do Governo do
estado, de cidades provisórias, onde serão essas cidades? Qual é o planejamento
para essas cidades provisórias? Porque a gente está chamando de cidade. Esse é
um detalhe muito sério — expõe Andréa.
As barreiras não são somente públicas. Há também todo um
trabalho de convencimento das famílias que se instalaram nas regiões de risco
para que aceitem serem deslocadas para uma nova área habitacional.
— Não adianta nós, arquitetos, chegarmos e dizermos que tem que
reconstruir a cidade numa área que não tenha risco, com planejamento, pensando
como é que essas cidades podem se desenvolver do ponto de vista da
infraestrutura urbana, do ponto de vista dos equipamentos públicos e
principalmente do ponto de vista da moradia, se não tiver um trabalho com essas
famílias. Acho que o trabalho social é fundamental nesse processo para as
famílias conseguirem entender e se adaptar para uma nova realidade.
O fato, enfatiza Andréa, é que as pessoas mais pobres
acabam sempre procurando áreas mais baratas. Por isso, cabe ao poder público
propiciar condições de acesso à terra com condições de moradia.
— Via de regra, todos os nossos grandes problemas, não só no Rio
Grande do Sul, mas no Brasil, seja de deslizamento ou de cheias, atingem
população de mais baixa renda.
Conforme o último levantamento do Centro de Monitoramento
de Deslocamento Interno (IDMC), em 2022 o Brasil liderou a movimentação interna
nas Américas, com 708 mil pessoas deixando suas áreas de habitação por conta de
tragédias ambientais.
Recorrência
Já é de notório conhecimento que alguns municípios são
corriqueiramente mais afetados, caso das sempre castigadas cidades da região
serrana do Rio de Janeiro, como Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo.
Somente em 2011, mais de 900 pessoas daquela região morreram devido a enchentes
e deslizamentos. Mais recentemente, no início de 2022, Petrópolis foi
severamente varrida pelas fortes chuvas, acompanhadas de deslizamentos de
terras, que levaram a vida de 235 pessoas e deixaram cerca de 4 mil à deriva.
Além desses três municípios fluminenses, estão na lista
das dez cidades com mais áreas de risco de desastre São Paulo, Blumenau,
Maceió, Fortaleza, Belo Horizonte, Jaboatão dos Guararapes e Salvador.
O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres
Naturais (Cemaden) apontou recordes em 2023 para os desastres geo-hidrológicos,
quando foram registrados 1.161 eventos. Desses, 716 associam-se a eventos
hidrológicos, em casos como transbordamento de rios, enquanto 445 foram
geológicos, como o deslizamento de terra ocorrido em São Sebastião, no litoral
de São Paulo, que deixou 64 mortos em fevereiro do ano passado.
A maior parte dos desastres acontece no lado leste do
Brasil, com concentração nas capitais e regiões metropolitanas, onde as
ocupações irregulares e o amontoado habitacional são sempre mais recorrentes.
— Temos cidades com problemas seríssimos em saneamento,
cidades com problemas seríssimos de moradia em áreas de risco, de encostas,
como na região da Serra do Mar. Já na Região Norte, você tem problemas muito
associados à ocorrência de moradias em áreas de preservação permanente. E como
as mudanças climáticas têm um efeito de tornar mais extremos os fenômenos
climáticos, como por exemplo, cheias e secas, quando você associa isso com um
problema de urbanização que o Brasil tem, com o problema de saneamento básico
que o Brasil tem, aí você torna isso tudo uma verdadeira bomba-relógio — afirma
o consultor legislativo do Senado em Meio Ambiente Matheus Dalloz.
Dados do Ministério do Desenvolvimento Social demonstram
que os desastres no Brasil, entre 1991 e 2023, somam 5.142 óbitos, 9,64 milhões
de desalojados e desabrigados, 1,46 milhões de feridos e enfermos e 232,6
milhões de afetados. Os números agora se inflam com a tragédia climática do Rio
Grande do Sul, que até então já atinge mais de 2,3 milhões de pessoas, com pelo
menos 172 mortes.
Precipitação
2023 e 2024 têm sido anos de registros peculiares de
índices pluviométricos muito acima da média no Sul. Ao participar da recente
sessão temática sobre a tragédia gaúcha — a qual denominou de maior catástrofe
climática de uma região metropolitana do Hemisfério Sul —, o professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rualdo Menegat explicou que
quanto mais os oceanos aquecem, mais a água evapora.
— Quanto mais a atmosfera aquece, mais ela consegue
guardar vapor d'água. Então, quando esse vapor se condensa e ocorre a chuva,
essa chuva poderá ser muito maior do que aquelas que já vimos. A atmosfera tem
uma enorme capacidade de guardar vapor. Dizemos, então, que os fenômenos
severos serão mais intensos e frequentes — afirmou Menegat.
O professor lembra que se 800mm de chuva caem no oceano,
não há grande impacto na nossa infraestrutura, mas se caem onde vivemos, as
consequências podem ser maiores ou menores, dependendo de cinco fatores, ou
seja, “nós podemos agravar o que já é grave”.
Ele destacou que o primeiro fator é o geológico, em que é
preciso “olhar o lugar” onde ocorre. O segundo trata-se de saber em que
condições a água escorre sobre os solos. O terceiro refere-se a infraestrutura
do estado e dos municípios para enfrentarem o cenário catastrófico. O quarto é
o de capacidade e preparação da defesa civil e o último, da educação:
— Devemos entrar em outro modo educativo, aquele que
prepara a juventude e os futuros profissionais para a emergência climática. São
eles que vão construir as soluções para o futuro — enfatizou o professor da
UFRGS.
Enquanto isso, Norte, Nordeste e Centro-Oeste já amargam
uma forte seca, que não somente coloca em risco a vida e a subsistência da
população, mas todo o ecossistema envolvido. No Pantanal, por exemplo, onde os
incêndios causaram grande destruição entre 2020 e 2022, quando 17 milhões de
animais morreram em decorrência do fogo, as fumaças e o baixe índice dos rios
já anunciam o perigo de repetição de uma nova grande destruição.
Mais vulneráveis
Quando se pensa em vulnerabilidade, é preciso ter um olhar
mais diferenciado e prioritário para grupos como idosos, pessoas com
deficiência, gestantes ou puérperas, crianças e adolescentes, entre outros, que
diante da falta de planejamento das ações de resgate, muitas vezes têm o risco
de morte acentuado pelos eventos catastróficos.
Enchentes, como as que devastaram parte das cidades do Rio
Grande do Sul, mostraram as dificuldades para o resgate desses grupos. Somente
nos 864 abrigos provisórios no Rio Grande do Sul havia na quinta-feira (6) 67,1
mil pessoas acolhidas, das quais 14,6 mil eram crianças e adolescentes, 2 mil
pessoas com deficiência e 7,2 mil idosos.
O estado tem a maior proporção de idosos (65 anos ou mais)
no Brasil: 14,1% de sua população de 10,8 milhões de habitantes. Fato é que
entre os 172 mortos, muitos já estavam na terceira idade, caso da nonagenária
Olandina Anna Bartz, cadeirante, encontrada morta por afogamento, no início do
mês de maio, em sua casa na Candelária (RS). Assim como ela, outras pessoas em
situação de vulnerabilidade não foram socorridas a tempo.
São muitos os fatores que fragilizam esses grupos. No caso
dos idosos, por exemplo, enfermidades, declínio da capacidade funcional,
acidentes sofridos ao longo dos anos, entre outros, diminuem as chances de fuga
em situações de desastres sem que haja a ajuda adequada.
A socióloga, fundadora e coordenadora executiva do Amankay
Instituto de Estudos e Pesquisas, Marta Gil, afirma que, apesar de o Brasil ter
uma das melhores legislações do mundo para as pessoas com deficiência, colocar
em prática os direitos garantidos tem sido muito desafiador.
Ratificada com status de emenda constitucional no Brasil,
a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das
Nações Unidas (ONU), estabelece, em seu artigo 11, que em situações de risco e
emergências humanitárias, cabe ao Estado tomar todas as medidas necessárias
para assegurar a proteção e a segurança das pessoas com deficiência que se
encontrarem em situações de risco, inclusive situações de emergências
humanitárias e ocorrência de desastres naturais. Da mesma forma, a Lei Brasileira
de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI - Lei 13.146, de 2015) confirma o
dever do poder público de adotar medidas para proteção e segurança dessas
pessoas.
Mas não é assim que as coisas funcionam. Marta lembra que
em muitos lugares nos municípios alagados do Rio Grande do Sul onde os barcos
passavam fazendo a comunicação por megafones, as pessoas surdas, que estavam
sozinhas dentro de casa, não tinham como ouvir os chamados para oferta de
socorro.
— Se esse surdo não tem alguém perto dele — porque muitas
famílias se perderam — ele ficou completamente vulnerabilizado. Sem entender,
sem saber onde ir, enfim, sem poder tomar nenhuma providência. E aí, cada tipo
de deficiência vai tendo as suas questões. Muitas vezes as pessoas se
resgatavam. Os voluntários, mas sem nenhum treinamento. E isso foi uma coisa
séria. Então, você pega a pessoa, mas ela usa cadeira de roda. E se a cadeira
de roda não vai, como é que vai fazer? Um cego, ele precisa ir com a bengala.
Se ele tiver o cão-guia, ele e a bengala e o cão-guia. É um kit. Não dá pra ir
sem. Essas já são pessoas muito invisíveis e, nessas horas, ficam mais
invisibilizadas ainda e mais vulneráveis — diz Marta.
O mapeamento prévio pelo Estado da localização de pessoas
com vulnerabilidades ajudaria a salvar vidas em situações como a das enchentes
do Rio Grande do Sul, segundo Marta.
— São muitos desafios. E nenhum planejamento para resgate.
Até onde eu sei, não há políticas, não tem medidas, não pensaram nisso.
Em sessão temática no Senado, o secretário nacional de
Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da
Cidadania, Bruno Renato Teixeira disse que o governo está trabalhando com um
protocolo para atendimento das pessoas em situação de catástrofes naturais.
— Esse protocolo visa garantir de maneira imediata a
articulação dos agentes públicos, seja das prefeituras, seja do governo do
estado e do sistema de Justiça, na adoção de procedimentos que garantam o
atendimento às pessoas em situação de maior vulnerabilidade, em especial
crianças e adolescentes, idosos, gestantes, pessoas com deficiência, pessoas
que estão em privação de liberdade, a população LGBTQIA+, a população em
situação de rua — afirmou.
Coibição
Após presidir, em 2022, a Comissão Temporária Externa
destinada a acompanhar in loco a situação do município de Petrópolis (RJ), o
senador Romário (PL-RJ) apresentou projeto de lei que visa dotar os municípios
de instrumentos aptos a coibir os comportamentos que criam ou ampliam a
vulnerabilidade das áreas de risco.
“Entre esses, destacam-se as escavações não autorizadas na
base das encostas, assim como a implantação de redes de distribuição de água e
energia elétrica nos assentamentos informais, antes que as medidas de
eliminação, correção ou administração de riscos tenham sido adotadas. Nesse
sentido, a proposição inclui essas medidas de defesa civil no âmbito da
regularização fundiária, ao mesmo tempo em que autoriza o município a adotar
sanções de embargo, interdição ou demolição independentemente de autorização judicial,
viabilizando, assim, uma atuação firme e imediata, no momento em que o
assentamento ainda não se encontra consolidado”, expõe o senador Romário.
A proposta veda ainda o usucapião e a legitimação
fundiária de imóveis nessas áreas, de forma a desestimular a ocupação, e
estabelece o ressarcimento pelo responsável das despesas incorridas pelo poder
público para a eliminação dos riscos resultante do empreendimento.
O PL 2.645/2023, que altera legislações sobre
regularização fundiária rural e urbana e a Política Nacional de Proteção e
Defesa Civil, aguarda análise da Comissão de Meio Ambiente (CMA), onde recebeu
parecer do senador Wellington Fagundes (PL-MT).
Em dezembro de 2023, foi sancionada a Lei 14.750, de 2023,
que amplia os instrumentos de prevenção de desastres e recuperação de áreas
atingidas. A norma, que teve origem no projeto (PL 2.012/2022) do senador
Eduardo Braga (MDB-AM), fixou as competências da União, dos estados, do
Distrito Federal e dos municípios, as ações de prevenção, de monitoramento de
riscos de acidentes ou desastres e de produção de alertas antecipados.