Impulsionado por uma falsa sensação de segurança e pela disseminação de fake news, o brasileiro vem abandonando o hábito de se vacinar
Referência internacional de vacinação desde a ditadura militar-empresarial, o Brasil acabou vítima de sua própria eficiência: impulsionado por uma falsa sensação de segurança e pela disseminação de fake news, o brasileiro vem abandonando o hábito de se vacinar. Sob o risco de que doenças já erradicadas retornem, o governo Lula gasta bilhões com imunizantes, mas o aumento da cobertura vacinal continua longe de atingir a meta de 95% do público alvo.
Raio-x
A vacinação no Brasil começou a cair em 2016. O Observatório da Atenção Primária à Saúde afirma que a média nacional de imunização de 20 vacinas gratuitas até se manteve acima dos 70% de 2001 a 2015, mas, em 2016, diminuiu para 59,9%.
O principal motivo foi a erradicação de epidemias que castigaram a população no passado. “O brasileiro passou a ter a falsa sensação de segurança”, diz Akira Homma, assessor científico sênior de Bio-Manguinhos (Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos), da Fiocruz.
As campanhas publicitárias continuaram, mas sem adesão. “A população já não estava nem aí”, completa Isabella Ballalai, diretora da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).
As fake news na pandemia pioraram a situação. “A desinformação vinha também da autoridade máxima do governo”, diz Homma, em referência ao governo Bolsonaro.
Promessa de Lula, vacinação não decola
Depois da eleição, Lula prometeu vacinar mais. A ordem era dedicar os cem primeiros dias de seu governo para organizar a vacinação. “Vamos trazer de volta o Zé Gotinha e fazer do Brasil mais uma vez referência mundial”, disse ele em rede sociais.
O governo gastou bilhões com vacina. Desembolsou R$ 6,5 bilhões em 2023 e promete mais R$ 10,9 bilhões este ano. O Ministério da Saúde também percorreu o Brasil planejando soluções de acordo com as particularidades de cada município.
Apesar dos investimentos, a vacinação cresceu pouco. A cobertura dessas 12 vacinas aumentou, em média, 6,8 pontos percentuais em 2023 na comparação com 2022: de 73% para 79,8% do público alvo, 15,2 pontos percentuais abaixo da meta.
Se a melhora na cobertura vacinal mantiver o mesmo ritmo, o Brasil só alcançaria os 95% de vacinados no final de 2025.
Em 2023, nenhuma vacina atingiu a meta. A primeira dose da Tríplice Viral (sarampo, caxumba e rubéola), destinada especialmente a bebês, e a Pneumocócica, aplicada em crianças de 2 meses a 5 anos e idosos a partir dos 60, foram as que mais se aproximaram da meta: 86,8% do público alvo.
A cobertura da BCG (para tuberculose pulmonar), no entanto, caiu. Após alcançar 90% em 2022, essa cobertura não passou de 77,5% em 2023, com dados ainda preliminares.
Nem a vacinação contra a dengue decola. Do total de 1,2 milhão de doses distribuídas, 810,6 mil foram aplicadas até agora, apesar das 1.792 mortes confirmadas de janeiro a 25 de abril, um recorde. Para impedir que as doses encalhadas vençam, o governo ampliou a faixa etária de vacinação e incluiu 625 cidades no esquema vacinal.
O governo celebra a melhora. “O movimento já mostra resultados positivos com a reversão da tendência de queda que teve início em 2016”, diz o Ministério da Saúde em nota. “Treze das 16 principais vacinas do calendário infantil apresentaram alta em relação a 2022 (…) e o número de municípios que atingiu 95% aumentou para oito das principais vacinas.”
Como o orgulho da vacina foi se perdendo?
A primeira ordem para vacinação no Brasil partiu de dom João 6º. Depois de perder para a varíola dois irmãos e um filho, o rei ordenou a criação da Junta Vacínica da Corte, em 1811.A vacinação entre as crianças era obrigatória no Rio desde 1837, mas, em razão da baixa produção de imunizantes, só alcançou escala em 1884.
Com a eliminação da varíola em 1973, o regime militar criou o PNI – Programa Nacional de Imunização. O país começou a vacinar contra tuberculose, sarampo, poliomielite, difteria, tétano e coqueluche.
Mas a cobertura vacinal era ruim. “A população não se vacinava, até que em 1980 surgiu uma grande epidemia de poliomielite no sul”, diz Homma, da Bio-Manguinhos. Após um apelo do Paraná, o Ministério da Saúde mobilizou todos os ministérios, entidades públicas e privadas e convocou a sociedade para os dias nacionais de vacinação.
“Foi uma festa”, diz Homma. “Em um dia, vacinamos 18 milhões de crianças. A cada ano, a cobertura aumentava até que eliminamos a pólio.” O último caso registrado foi em 1988. “Esse resultado puxou a cobertura de outras vacinas, atingindo ótimos resultados até os anos 2000.”
“Mas, sem a gente perceber, o orgulho da vacina foi se perdendo…”, diz Isabella Ballalai, da SBIm
Cobertura caiu ainda mais na pandemia. “Na crise sanitária, as pessoas não saíam de casa, e até a vacinação das crianças atrasou”, lembra Ballalai.
Além disso, a oferta de vacinas é ruim no interior do Brasil. Apesar da descrença em alta entre os brasileiros, os horários de atendimento em postos de saúde são limitados e “há dificuldade de acesso às vacinas na zona rural”, diz Homma. “Tem lugar em que falta vacina, infraestrutura e pessoal.”
A estratégia de comunicação precisa melhorar. “Não foi boa no governo anterior e não é boa neste”, diz o especialista. “Dizer que a doença mata já não dá certo”, diz Ballalai. “O governo precisa descobrir o que está preocupando a população e criar uma estratégia de comunicação.”
Em 2023 foram investidos R$ 116 milhões em campanhas na TV aberta, nas redes sociais e em locais de grande circulação de pessoas. Somam-se a essas estratégias, a vacinação nas escolas e as ações de combate às fake news, segundo dados do Ministério da Saúde.
Doenças podem voltar
Erradicado no Brasil em 2016, o sarampo voltou dois anos depois. Agora, um estudo da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) aponta o Brasil como segundo país das Américas com maior risco de volta da poliomielite, atrás do Haiti.
Na semana passada, o estado de São Paulo registrou a primeira morte por febre amarela este ano. Um homem de 50 anos, morador de Águas de Lindóia, morreu em 29 de março. Hoje, a infecção ocorre por meio de mosquitos silvestres, que vivem em zona de mata. Os últimos casos de febre amarela urbana foram registrados no Brasil em 1942.
Ministra: “Estamos no caminho certo”
Ao assumir, Lula lançou o Movimento Nacional pela Vacinação. Para isso, destinou R$ 151 milhões para estados e municípios vacinarem crianças direto nas escolas e monitorar a vacinação no país. Este ano, mais R$ 150 milhões foram enviados para o mesmo fim.
“Estamos no caminho certo, (…) de reconstrução de uma das principais políticas de saúde pública do país”, afirmou na semana passada a ministra da Saúde, Nísia Trindade.
A diretora da SBIm concorda.
“Não dá para esperar um milagre, mas a gente deve perceber aumento da vacinação ao longo do tempo”, diz Isabella Ballalai.
E outras vacinas importantes?
Gripe
População não adere. Só 23,5% do público-alvo havia se vacinado até 25 de abril. Embora a meta seja imunizar 75 milhões, esse número não havia passado de 15,5 milhões.
Distrito Federal tem a pior taxa. A capital —que imunizou 13,7% do público alvo— é seguida por Mato Grosso do Sul (14%), Mato Grosso (14%), Bahia (15%) e Rio (18%).
Covid-19
Vacinação perdeu força. Apenas 52,3% dos brasileiros elegíveis tomaram três doses da vacina, e só 16,8% receberam a quarta dose. Já a vacina bivalente — que também protege contra a variante ômicron— imunizou 21,3% dos brasileiros.
A aplicação da quarta dose é baixa até entre idosos. O índice não passou de 50,4% na faixa de 60 a 64 anos. Para a dose bivalente, só 20,7% desse público se vacinou, informa a Info Tracker (plataforma da USP e Unesp que monitora a doença), que, a pedido da reportagem, coletou as informações do Ministério da Saúde até 25 de abril.
Vacinação infantil não pegou. Somente 7,7% das crianças entre 6 meses e 2 anos se vacinaram contra a covid, índice que sobe para 10% entre 3 e 4 anos.
“Com a cobertura baixa nessa faixa, a cada nova explosão de casos aumentam também as internações de bebês. Os pais devem ficar alertas”, diz Wallace Casaca, coordenador da Info Tracker.
HPV
Vacinação contra HPV (câncer de colo do útero e outras doenças) aumentou em 2023. Foram aplicadas 6,1 milhões de doses, aumento de 42% em relação a 2022. Para tentar dobrar a imunização de meninas e meninos de 9 a 14 anos, o esquema será em dose única partir de agora, contra duas anteriormente.
Fonte: Agenda do Poder com informações do UOL.