Corte formou maioria contra o "poder
moderador" das Forças Armadas com o voto do decano Gilmar Mendes
Por José
Higídio, do Conjur – Não está entre as atribuições das Forças
Armadas atuar como “poder moderador”, assim como não há na Constituição trecho
que permita a interpretação de que militares podem se intrometer no
funcionamento dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Esse entendimento é da maioria dos ministros do Supremo
Tribunal Federal, que julgou parcialmente procedente uma ação do PDT que pede
para a corte esclarecer os limites da atuação das Forças Armadas.
O caso começou a ser julgado pelo Plenário Virtual do STF na
última sexta-feira (29/3). A análise vai até o dia 8.
Na ação, o PDT contesta a interpretação de que as Forças
Armadas podem atuar como “poder moderador” entre o Executivo, o Legislativo e o
Judiciário, intervindo nesses poderes.
Prevalece o voto do relator da matéria, ministro Luiz Fux. Ele
foi acompanhado até o momento pelos ministros Luís Roberto Barroso, Flávio
Dino, Edson Fachin, Nunes Marques e Gilmar Mendes.
Contexto
O PDT pede que o STF limite o uso das Forças Armadas, nas
destinações previstas no artigo 142 da Constituição, aos casos de intervenção
federal, estado de defesa e estado de sítio.
O dispositivo em questão estabelece como funções das Forças
Armadas a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia
da lei e da ordem (GLO) por iniciativa de qualquer um dos três poderes.
A legenda ainda questiona dispositivos da Lei Complementar 97/1999, que regulamenta
o uso das Forças Armadas. Um deles é o artigo 1º, que define as Forças Armadas
como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na
hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República”.
O pedido do partido é para que seja fixado que a “autoridade
suprema do presidente da República” se restringe às suas competências
constitucionais: exercer a direção superior das Forças Armadas; emitir decretos
e regulamentos; definir regras sobre sua organização e funcionamento; extinguir
funções ou cargos ou provê-los; nomear seus comandantes; promover seus
oficiais-generais; e nomeá-los para cargos privativos.
Também são apontados pelo PDT trechos do artigo 15 da lei
complementar, que atribui ao presidente da República a responsabilidade pelo
uso das Forças Armadas nas suas funções constitucionais e traz regras para a
atuação na GLO.
A sigla pede a restrição do emprego das Forças Armadas nas suas
três funções. No caso da defesa da pátria, o pedido é para limitação às
situações de intervenção para repelir invasão estrangeira e de estado de sítio
para guerra ou de resposta a agressão estrangeira.
Na garantia dos poderes constitucionais, a sugestão é a
limitação aos casos de intervenção “para garantir o livre exercício de qualquer
dos poderes nas unidades da Federação” e de estado de defesa “para preservar ou
prontamente restabelecer a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e
iminente instabilidade institucional”.
Quanto à GLO, a ideia é limitá-la a situações extraordinárias de defesa
da autonomia federativa, do Estado e das instituições democráticas — justamente
as hipóteses de intervenção, estado de defesa e de sítio —, sem possibilidade
de aplicação a atividades ordinárias de segurança pública.
Por fim, o PDT alega a inconstitucionalidade do §1º do artigo 15 da lei
complementar, que atribui ao presidente da República a competência para decidir
a respeito do emprego das Forças Armadas — seja por iniciativa própria, seja em
atendimento a pedido dos outros poderes. O argumento da agremiação é que não há
hierarquia entre os poderes.
A tese de que os militares podem ser empregados para moderar conflitos
entre os poderes e conter um poder que esteja extrapolando as suas funções é
notoriamente defendida pelo advogado e professor Ives Gandra da Silva Martins.
Votos
Em seu voto, Fux repetiu os argumentos usados na sua decisão liminar de 2020, que concedeu parcialmente os pedidos
do PDT e deu interpretação conforme a Constituição aos dispositivos trazidos
pelo partido. O ministro estabeleceu quatro pontos sobre o assunto:
1 — A missão institucional das Forças Armadas não envolve o exercício de
um poder moderador entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário;2 — Não é
possível qualquer interpretação que permita o uso das Forças Armadas para
“indevidas intromissões” no funcionamento dos outros poderes;3 — A prerrogativa
do presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas “não pode
ser exercida contra os próprios poderes entre si”;4 — O uso das Forças Armadas
para a GLO não se limita às hipóteses de intervenção federal, estado de defesa
e estado de sítio, mas é voltado ao “excepcional enfrentamento de grave e
concreta violação à segurança pública interna” e deve ser aplicado “em caráter
subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”,
por meio da atuação colaborativa entre as instituições estatais e sujeita ao
controle permanente dos demais poderes.
O ministro explicou que a garantia dos poderes constitucionais, prevista
no artigo 142 da Constituição, “não comporta qualquer interpretação que admita
o emprego das Forças Armadas para a defesa de um poder contra o outro”.
Segundo ele, a atuação dos militares se refere à proteção de todos os
poderes “contra ameaças alheias”. Ou seja, é uma forma de defesa das
instituições democráticas contra “ameaças de golpe, sublevação armada ou
movimentos desse tipo”.
Por isso, o relator rejeitou a interpretação de que a atribuição de
garantia dos poderes constitucionais permite a intervenção das Forças Armadas
nos demais poderes ou na relação entre uns e outros. Isso violaria a separação
de poderes.
Na visão do magistrado, a tese do poder moderador das Forças Armadas
pressupõe que elas têm neutralidade, autonomia administrativa e distanciamento
dos três poderes. Na verdade, a própria Constituição define o presidente da
República como o “comandante supremo” das Forças Armadas.
Ou seja, considerá-las um poder moderador seria o mesmo que reconhecer o
Executivo como um superpoder, acima dos demais. Essa interpretação está
“dissociada de todos os princípios constitucionais estruturantes da ordem
democrática brasileira”.
Fux explicou que a Constituição prevê as medidas excepcionais que podem
ser aplicadas para soluções de crises. Segundo ele, “não se observa no
arcabouço constitucionalmente previsto qualquer espaço à tese de intervenção
militar, tampouco de atuação moderadora das Forças Armadas”.
Quanto à “autoridade suprema” do presidente, o ministro destacou que
isso está relacionado à hierarquia e à disciplina da conduta militar. Mas essa
autoridade não pode superar a separação e a harmonia entre os poderes.
Pedidos negados
Por outro lado, o relator não viu razão para limitar o exercício das
missões constitucionais das Forças Armadas aos casos de intervenção federal,
estado de defesa e estado de sítio. Caso aceitasse esse pedido do PDT, o STF
faria um “recorte interpretativo que a própria Constituição não pretendeu
efetuar”, segundo Fux.
Da mesma forma, a restrição do alcance da defesa da pátria aos casos
elencados pelo partido “esvaziaria a previsão constitucional do artigo 142 e
reduziria a eficácia dos dispositivos constitucionais que tratam da atuação
internacional do país”.
Fux entendeu que tais limitações impediriam a atuação dos militares em
outras missões relevantes para o interesse nacional. Ele lembrou que, dentro do
conceito de defesa da pátria, existem diversas possibilidades de uso das Forças
Armadas para proteção das faixas de fronteiras e dos espaços aéreos e
marítimos, mesmo em períodos de paz. As missões de controle do fluxo de
migração na fronteira com a Venezuela são exemplo disso.
De qualquer forma, o ministro considerou importante ressaltar que o
emprego das Forças Armadas fora das hipóteses de intervenção, estado de defesa
e estado de sítio “deve estar inscrito em limites constitucionais e legais que
não podem ser desconsiderados”.
Tanto em cenários de normalidade quanto em situações de guerra e defesa
da soberania, o presidente da República não tem poderes absolutos sobre as
Forças Armadas, explicou o magistrado.
O presidente se submete a “mecanismos de controle explicitamente
delineados no texto constitucional”. Por exemplo, só pode declarar guerra ou
celebrar a paz com autorização prévia do Congresso. Ou seja, os outros poderes
não são submissos ao Executivo.
O relator também não viu inconstitucionalidade no dispositivo que
atribui ao presidente a competência para decidir a respeito do emprego das
Forças Armadas.
Para ele, não há “razão jurídica” para reduzir essa prerrogativa, uma
vez fixado que o líder do Executivo “exerce o poder de supervisão
administrativo-orçamentária desse ramo estatal” e que ele e os chefes dos
outros poderes não podem usar as Forças Armadas “para o exercício de tarefas
não expressamente previstas na Constituição”.
Assim, aceitar o pedido do PDT significaria admitir que o chefe de
qualquer poder tem “ascensão e hierarquia” sobre as Forças Armadas, o que “não
coaduna com a disciplina constitucional”.
Ressalvas
Flávio Dino concordou com as conclusões de Fux, mas acrescentou a
determinação para que o acórdão do STF seja enviado ao ministro da Defesa, José
Múcio Monteiro, para ser difundido a todas as organizações militares, incluindo
escolas de formação e aperfeiçoamento.
Segundo Dino, o objetivo dessa medida é eliminar “desinformações que
alcançaram alguns membros das Forças Armadas — com efeitos práticos escassos,
mas merecedores de máxima atenção pelo elevado potencial deletério à pátria”.
Assim como Dino, Gilmar Mendes entendeu que a íntegra do acórdão deve
ser enviado ao ministro da Defesa, a fim de que seja efetivada a sua devida
divulgação para todas as organizações militares.
Em seu voto, Gilmar afirmou que não há na Constituição previsão que
permita a interpretação de que as Forças Armadas poderiam intervir no
Executivo, Legislativo e Judiciário.
“O texto do art. 142 da Constituição não impõe ao intérprete nenhuma
espécie de dificuldade hermenêutica. A hermenêutica da baioneta não cabe na
Constituição. A sociedade brasileira nada tem a ganhar com a politização dos
quartéis e tampouco a Constituição de 1988 a admite”, disse o decano da corte.
Segundo o ministro, a função institucional das Forças Armadas não
acomoda o exercício de poder moderador, nem admite qualquer interpretação que
permita a indevida intromissão de militares nos poderes.
De acordo com o decano, a utilização exagerada de missões de garantia da
lei e da ordem deu às Forças Armadas protagonismo político, o que serviu de
sustentáculo para a “despropositada construção teórica” de que a Constituição
autorizaria que os militares atuassem como “poder moderador”.
“A tentativa abjeta e infame de invasão das sedes dos três poderes em 8
de janeiro de 2023 não será devidamente compreendida se dissociada desse
processo de retomada do protagonismo político das altas cúpulas militares”,
prosseguiu o ministro.
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Fonte: Brasil 247