Ordens da Operação Tempus Veritatis, dadas pelo ministro Alexandre de Moraes, foram questionadas por juristas e advogados
Por Fernando Augusto Fernandes, Guilherme Lobo Marchioni e Rodrigo Siqueira Jr., no Conjur - No último dia 8 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal, através do ministro Alexandre de Moraes, proferiu decisão na Pet 12.100 e determinou diversas medidas de busca e apreensão em uma investigação de participação e comando do ex-presidente Jair Bolsonaro na tentativa de golpe de Estado (artigo 359 M do CP). Entre as medidas contra aliados de Bolsonaro estão prisões preventivas, proibição de ausentar-se do Brasil, suspensão do exercício de função pública e proibição de manter contato com os demais investigados.
A ordem do ministro Alexandre de Moraes, ao decretar tais medidas, ressaltou a impossibilidade de comunicação entre os investigados, incluindo a advertência de que a proibição de comunicação entre investigados estendia-se àquela realizada “inclusive através de advogados”. A passagem serviu de base a fake news de que o ministro teria proibido os advogados dos investigados de se falarem. Versão que foi repercutida pela imprensa. Diversas entidades de criminalistas protestaram, e a OAB Federal chegou a ingressar com uma petição pedindo ao ministro a reconsideração do despacho.
Tudo não passa, todavia, de uma falsa notícia, proliferada em meio a uma onda que visa imputar arbitrariedades às decisões do ministro Alexandre de Moraes e abusos ao STF. Não há, na ordem do ministro Alexandre, qualquer incomunicabilidade direcionada aos advogados das partes!
O que diz a decisão?
A interpretação do enunciado deve ser restritiva, pois os advogados não são investigados e jamais poderia ser imposta ordem judicial que impeça sua comunicação. A passagem, que transcrita em sua literalidade diz: “proibição de manter contato com os demais investigados, inclusive através de advogados”, parece, a toda prova, significar que um investigado não poderá tratar sobre assuntos referentes aos delitos investigados com outro investigado e, portanto, está impedido de conversar por qualquer modo com o outro investigado, aí incluída a possibilidade de trocar recados por meio de seus advogados.
Há sigilo absoluto entre a comunicação do advogado e seu cliente, garantido pelo Estatuto da Ordem dos Advogados ao definir como direito do advogado a comunicação com seus clientes de forma pessoal e reservadamente (artigo 7º, inciso III, da Lei 8.906/94), além do artigo 25 do Código de Ética e Disciplina da OAB, ao esclarecer que o sigilo profissional é inerente à profissão, impondo-se o seu respeito.
A decisão como dito, não ingressa no sigilo dessa comunicação e muito menos veda aos advogados se comunicarem. Mais ainda, não impede nem poderia impedir, a escolha de investigados pelo mesmo advogado. Isso é papel exclusivo da defesa vedado somente na hipótese de interesses conflitivos.
A reação da OAB
A questão levanta uma série de ponderações, não só sobre prerrogativas, mas sobre independência, dever ético e limites na atuação da advocacia. Isso no mesmo dia em que a própria OAB foi, de certa forma, achincalhada por Bolsonaro em vídeo objeto de investigação em que, ainda como presidente, Bolsonaro, ao planejar o golpe de Estado, diz que a OAB apoiaria o intento.
De forma acertada, e imediatamente, o presidente da OAB Federal, Beto Simonetti, se manifestou dizendo que:
“Essa fala é um acinte a todo trabalho e empenho da OAB durante as eleições presidenciais. Fomos a primeira entidade a afirmar a lisura do pleito, atestando a inviolabilidade das urnas eletrônicas”, ainda que: “A OAB não toma lado nas disputas político-partidárias e mantém posição técnico-jurídica. A atual gestão da Ordem tem como prioridade atuar em temas do dia a dia da advocacia, como as prerrogativas da profissão. Por não assumir lado na disputa ideológica e partidária, a OAB recebe críticas de setores das diversas linhas ideológicas que tentam obter apoio da entidade para seus diferentes pleitos” [1]. Na mesma data, o presidente da Ordem, se referindo à decisão do ministro Alexandre, afirma que “advogados não podem ser proibidos de interagir nem confundidos com seus clientes”.
Defesa do Estado Democrático de Direito
O momento exige esclarecimento histórico, e mais aprofundado. A OAB chegou a pedir ao ministro a revogação da decisão. Data vênia, não há o que se revogar a decisão. Na realidade, nela não se encontra qualquer ataque à advocacia. O presidente Simonetti tem razão ao dizer que as falas de Bolsonaro contra a democracia, e que arrastam a Ordem para a tentativa de golpe de Estado, são um acinte à advocacia, absolutamente.
Seu pronto esclarecimento enquanto Bâtonnier da advocacia brasileira é, nesse sentido, fundamental. Mas estamos num momento histórico que não permite à Ordem ater-se no “dia a dia da advocacia”, mantendo-se isenta em “disputa ideológica e partidária”. Não se trata de disputa “político-partidária” que obrigasse a OAB ter uma “posição técnico-jurídica”, mas sim um risco à democracia que impõe, por sua história, papel e obrigação estatutária, defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito. (Art. 44, I da Lei 8.906/94).
É de se recordar o ato em defesa do Estado de Direito, intitulado “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!” [2] realizado na USP, em que estavam os autores presentes, acompanhados de Roberto Batochio e do presidente do IAB, Sidney Sanches. A carta foi um movimento em defesa da democracia, em momento em que esta se encontrava atacada. Nela não se viu a participação da OAB Federal. A defesa da democracia foi além de mera defesa formal da regularidade da urna eletrônica. A presidente da OAB de São Paulo, Patrícia Vanzolini, não titubeou, ou o presidente do IAB, Sidney Sanches, em demonstrar firmeza na defesa das instituições.Não se pode olvidar que a decisão de Alexandre de Moraes indica a existência de um “núcleo jurídico”; “Forma de atuação: assessoramento e elaboração de minutas de decretos com fundamentação jurídica e doutrinária que atendessem aos interesses golpistas do grupo investigado; Integrantes: FILIPE GARCIA MARTINS PEREIRA, ANDERSON GUSTAVO TORRES, AMAURI FERES SAAD, JOSE EDUARDO DE OLIVEIRA E SILVA e MAURO CESAR BARBOSA CID”. No centro disso também se encontra Ives Gandra Martins, que nessa oportunidade se tornou o Olavo de Carvalho do Direito e teria sido, inclusive, consultado sobre a minuta de golpe [3].Registre-se aqui que a OAB Federal emitiu parecer contra a deturpação jurídica de que o artigo 142 da Constituição Federal permitiria um poder moderador dos militares [4].É importante investigar a participação de advogados nos projetos golpistas. Vimos a vergonha desqualificada de ataques à Suprema Corte na tribuna da Casa, com o despreparo de confundir-se Pequeno Príncipe com Maquiavel. E não é de se esquecer que o governador Ibaneis Rocha, que exerceu a presidência da OAB do DF entre 2013 e 2015, foi no mínimo omisso no ataque à sede dos Poderes, em 8 de janeiro — quando estava de férias, tendo sido afastado cautelarmente do cargo em 8 de janeiro deste ano por causa dos atos que ocorreram em Brasília, pelo ministro Alexandre de Moraes.
O verdadeiro ataque às prerrogativas
Nem se pode esquecer dos ataques realizados por Bolsonaro à advocacia, durante a série de rompantes feitos contra o então presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, em razão da resistência de seu pai brutalmente assassinado na ditadura, e sua resistência mesma, na defesa do Estado Democrático de Direito. Seu governo autoritário, sim, fora quem atacou as prerrogativas da advocacia. Registre-se que a Lei 14.365/22, promulgada por seu governo, possui erro legislativo grosseiro que alterou o § 2º do artigo 7º da Lei 8.906/94, revogando instituto que prevê a imunidade do advogado! A advocacia aguarda o julgamento da ADI 7.231, proposta pela OAB em 22/8/2022, contra tal equívoco.
Recentemente, sob o comando de Jorge Messias, a AGU mudou o parecer requerendo a procedência da ação, uma vez que o advogado-geral da União anterior foi indiferente a esse retrocesso grave, em clara demonstração de insensibilidade para com a classe em meio ao governo com aspirações golpistas. O autoritarismo sempre encontrou, no Brasil, a brava resistência da advocacia.
Mera “balbúrdia”?
Parte dos itinerários golpistas consiste em um persistente ataque à Suprema Corte. Por óbvio que, como uma instituição humana, esta não deve estar imune a críticas. No entanto, é preciso separar a crítica jurídica e política de ataque que visam extinguir a democracia a partir do fortalecimento da ideia de que nunca houve tentativa de golpe, que os ataques do dia 8 de janeiro seriam mera “balbúrdia”, sem potencialidade de derrubada do poder e que, ao fim, o Supremo é que estaria a extrapolar de suas funções e abusando do poder.
A interpretação dissociada da decisão, de que os advogados estariam impedidos de se comunicarem, enquadra-se nessa estratégia e, portanto, infelizmente, nesse ponto a OAB Federal acabou sendo por ela instrumentalizada. Melhor seria opor mero embargos de declaração a fim de deixar claro o que já parece estar, i.e, a ordem não se destina ao exercício da advocacia. Nem por isso nenhum advogado estará imune a extrapolar a legalidade em nome de suposto exercício advocacia. Esta deve ser defendida e tem direito, prerrogativas, imunidade, e nem um centímetro pode ceder.
Aprender com o passado
A Ordem apoiou, 60 anos atrás, em termos históricos, o golpe de 1964. O próprio site da entidade relata este momento nefasto: “Dessa forma, a Ordem recebeu com satisfação a notícia do golpe, ratificando as declarações do presidente Povina Cavalcanti, que louvaram a derrocada das forças subversivas” [5]. Reconhecer os erros nos engrandece enquanto instituição, permitindo que aprendamos com passado. Rememorar a carta-bomba na sede da OAB, que vitimou Lygia Monteiro, e a luta de Eduardo Seabra Fagundes, de Raymundo Faoro e de tantos outros, contra os abusos da ditadura, dão norte às nossas ações. E o episódio em que a OAB pediu o impeachment de Dilma Rousseff, na gestão Claúdio Lamachia, é algo que jamais devemos repetir.
O artigo 133 da Constituição Federal dispõe que o advogado é indispensável à administração da justiça e exerce sua profissão nos limites da lei. A imunidade do advogado é absoluta no exercício da profissão. Mas se alguém estava ligado ao presidente Bolsonaro “vendendo” o apoio para atos golpistas, isso precisa ser investigado a fundo, pois extrapola a legalidade e avilta a OAB, em seu papel de defesa do Estado de Direito.
Em entrevista concedida ao projeto Voz Humana, pelo advogado Belisário dos Santos Junior, ele nos contou que em determinada ocasião se recusara a diretamente esvaziar um “aparelho” (como se chamava os imóveis para atividades de resistência à ditadura militar). O defensor dos presos políticos, durante dura fase da ditadura de 64, entendeu que não deveria confundir a atuação na defesa de seu cliente com práticas alheias ao estritamente jurídico [6]. O advogado não deve se identificar com a causa, mas manter distanciamento profissional e ético.A Ordem dos Advogados tem papel muito maior que a defesa corporativa, igualmente, ainda que não se questione sua importância. A OAB é uma entidade sui generis política profissional. E construiu sua legitimidade ao longo gas décadas de existência a partir da defesa das liberdades democráticas. Esta reside acima das questões partidárias, a democracia, em nosso Olimpo. Quando alguém se opõe à democracia, opõe-se à OAB, à Constituição e às razões da existência da Ordem dos Advogados.
A decisão do ministro Alexandre de Morais, contudo, não está direcionada a advogados. Estamos vivendo um momento histórico e decisivo para o futuro da democracia, a história não permite vacilo. Desde 27 de fevereiro de 2023, no Inquérito 4.923, o ministro deferiu à Polícia Federal a atribuição e à justiça civil a competência para julgar militares envolvidos nos atos contra a democracia. Entendendo que a Justiça Militar deve julgar exclusivamente os bens juridicamente protegidos pelo mundo castrense.
Competência da Justiça Militar
Algo que merece atenção na ADI 5.032, ainda não concluída quanto à alteração da Lei Complementar 97/1999, é a atração, para competência da Justiça Militar, de crimes de homicídio de militar contra civil. A ampliação de competência da Justiça Militar é inconstitucional.
É a primeira vez na história do país que a Justiça comum julga crimes contra o Estado Democrático de Direito cometidos por militares. É importante salientar que a Constituição prevê a existência de três Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário (artigo 2º CF). E todos os seus poderes emanam pela Carta Magna do Povo (artigo 1º da CF). Não sendo, assim, as Forças Armadas um Poder, pois que servem aos Poderes civis na forma do artigo 142 da CF. Por isso o artigo 124 da CF prevê a Justiça Militar para julgar crimes militares definidos em lei. Já os crimes de ataque à democracia foram estabelecidos no projeto 14.197/21, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Assim fogem ao âmbito da Justiça Militar à medida que são inseridos no rol de crimes comuns.
Conclusão
O Supremo não abusa ou extrapola de sua competência, como assistiu-se na famigerada operação “lava jato”, que completa dez anos, desde seu início, no próximo mês. Sobre a competência, há decisões sobre sua permanência no STF, por atração a outras ações. As instituições democráticas devem sempre aperfeiçoar-se, por óbvio, e o Supremo deveria revisitar o tema do artigo 84 julgado inconstitucional pela Adin 2.797, que previu o foro de prerrogativa mesmo após a cessação do mandato. O fato é que os crimes cometidos com abuso de poder, em especial do presidente da República, devem permanecer no foro correspondente ao cargo; não tendo a corte ainda enfrentado esse tema.
É preciso enfrentar esta e outras matérias, da reconstrução democrática de nosso país, como se fez com a presunção de inocência: com a coragem tradicional da advocacia, que sempre impôs óbice aos golpismos e os autoritarismos. De ontem, hoje e sempre.
Fonte: Brasil 247 com informações do Conjur