A história contada no filme “Bank of Dave” se encaixa bem no contexto brasileiro, de ação predatória do setor financeiro sobre a população em geral
"Bank of Dave", filme da Netflix (divulgação) (Foto: Divulgação )
Por Milton Pomar (*) - O sistema financeiro existe para financiar o desenvolvimento. Lucrar com isso é resultado natural na lógica capitalista. No Brasil, a lógica criminosa do sistema financeiro resulta em “descontos de até 99% das dívidas”, e a anestesia geral, conseguida pela propaganda dos bancos e cartões e a cumplicidade da grande mídia, impede as pessoas de se perguntarem por que cargas d’água uma dívida monstruosa pode ser perdoada dessa forma absurda, justo por empresas que vivem de multiplicar dívidas no papel, com juros sobre juros, até que fiquem estratosféricas e, portanto, impagáveis, até mesmo para devedores que trafiquem armas ou drogas ilícitas.
Com executivos do setor transitando entre a direção do Banco Central e as empresas privadas com a maior desfaçatez, o domínio financeiro no Brasil segue impávido, extraindo as maiores taxas de juros e de lucros do mundo, graças ao seu controle na política e na mídia, e isso já há 50 anos pelo menos. Nem as cooperativas de crédito, que deveriam ser uma alternativa a ele, conseguiram se livrar da camisa-de-força de olhar para o passado, e de exigirem garantias e mais garantias, ao avaliarem emprestar para pequenas empresas que querem investir.
A história contada em “Bank of Dave”, filme da Netflix (em português “David contra os bancos”) lançado em 2023, se encaixa bem no contexto brasileiro, de elevada concentração de bancos e cartões e de ação predatória do setor financeiro sobre os setores produtivos e a população em geral, obrigada a pagar mais caro no comércio, que está viciado na falsidade de vender “pelo mesmo preço à vista” em não sei quantas vezes “sem juros”, e cada rede varejista com o seu cartão de crédito próprio.
Apesar de tratar da tragédia mundial que é a atuação do setor financeiro sobre as economias dos países, responsável pelo empobrecimento de bilhões de pessoas no mundo e de aumento exponencial da riqueza dos milhares de ricos e muitos ricos, “O Banco de Dave” é um filme agradável, e tão simples quanto morar na pacata cidade de Burnley (88 mil habitantes, 400 km de distância de Londres), onde se passa a maior parte da história.
Quem trabalha por conta própria se sentirá contemplada no filme, seja ela MEI, optante pelo Simples Nacional, ou o universo na “informalidade”, a maioria à margem da agiotagem “legal” praticada pelo sistema financeiro no Brasil. E Dave Fishwick, logo no início do filme, cita a bandidagem em grande escala dos bancos, cartões e seguro, que resultou primeiro na grande crise do setor imobiliário nos Estados Unidos, e em seguida do setor financeiro, em setembro de 2008, que rapidamente contaminou o mundo, com mais ou menos impactos na vida das pessoas.
Bem que ele poderia ter citado também a megafraude cometida por grandes bancos em 2011, com a Taxa Libor, definida em Londres. Corrupção em escala sideral. Como se trata de dinheiro grande e de grandes empresas, pune-se com a cobrança de muito dinheiro, através de multas bilionárias, e a condenação de alguns gatos pingados. E abafa-se o caso o mais rápido possível, com a cumplicidade da grande mídia – quem se lembra no Brasil dos casos dos Precatórios, Banestado, Panamá Papers, …?
O melhor do “Banco de Dave” é que ele mostra que é possível enfrentar a lógica dominante da concentração bancária e da dificuldade de se obter capital para pequenos empreendimentos, e que há alternativas viáveis. Infelizmente, facilitar a concessão de empréstimos de pequenos valores para autônomos e pequenos empresários não é o suficiente para melhorar de verdade a situação financeira de três quartos da população brasileira, que segue endividada, apesar da boa intenção do programa “Desenrola” do governo federal.
Aliás, enquanto o governo federal não alterar radicalmente o pagamento dos juros da dívida pública, que todos os anos drena metade dos recursos públicos federais, enriquecendo mais os donos e os executivos de bancos, cartões de crédito etc., não haverá recursos do Tesouro para o Bndes financiar a nova política industrial e a construção de ferrovias, fundamentais para o sucesso da “neoindustrialização” prometida. Sem isso, continuaremos passando longe do pleno emprego – condição necessária para melhorar o poder aquisitivo da população e reduzir o endividamento.
E… enquanto continuar a aberração de o Banco Central ser politicamente independente do Estado (apesar de sustentado por ele…) e defensor da lógica dominante do sistema financeiro, não terá a menor chance de sucesso algo semelhante a um “Banco do Dave” no Brasil. Apesar disso, vale a pena assistir o filme – nem que seja apenas para ficar com vontade.
(*) Geógrafo, Mestre em Políticas Públicas
Este artigo foi publicado originalmente no sul21