A fraca fiscalização não é o único obstáculo que Lula terá pela frente
(Foto: REUTERS/Adriano Machado)
Rio de Janeiro (Reuters) - Quando quatro policiais federais foram prender Roberto Jefferson, um aliado próximo do presidente Jair Bolsonaro, o político veterano deixou claro que não iria a lugar nenhum.
"Corram", ele disse aos policiais. "Vocês vão se machucar."
O ex-parlamentar federal então jogou três granadas adulteradas de efeito moral contra a polícia e alvejou o carro blindado das forças de segurança com mais de 50 tiros vindos de seu rifle Smith & Wesson 5,56 mm, de acordo com o depoimento dele próprio e o dos policiais que o prenderam. Dois homens foram hospitalizados com ferimentos de estilhaço e Jefferson só se rendeu após uma negociação que durou oito horas.
A troca de tiros que gerou imensa repercussão no dia 23 de outubro, apenas uma semana antes de Bolsonaro perder a eleição, reforçou o que virá a ser um dos maiores desafios para seu adversário de esquerda, Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente eleito prometeu "desarmar" um país cada vez mais armado, onde armas de fogo pessoais se tornaram um símbolo da base conservadora de Bolsonaro.
“Acho que a gente viu, por exemplo no caso do Roberto Jefferson, como é grave você ter civis com armas mais potentes. Essa é uma coisa que coloca em risco a própria polícia e a sociedade”, disse Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, que está informalmente compondo a equipe de transição de Lula como consultor.
A Reuters entrevistou outras oito pessoas trabalhando ou aconselhando a equipe de transição de Lula no que diz respeito ao reforço do controle de armas assim que ele assumir o cargo no dia 1º de janeiro. Embora os planos ainda não estejam totalmente definidos, a equipe pretende revogar dezenas de decretos assinados por Bolsonaro para afrouxar a legislação sobre armas, o que provocou um aumento na posse de armas de fogo no país.
Quase três quartos dos brasileiros se opõem ao afrouxamento da legislação sobre armas conduzido por Bolsonaro, mostrou uma pesquisa do Datafolha em maio.
A prioridade será restabelecer as proibições civis de certas armas de grosso calibre, incluindo o rifle usado por Jefferson, disseram as fontes.
O futuro governo também planeja tornar mais difícil a obtenção de novas licenças de armas de fogo e mais caro e oneroso renovar as antigas. A equipe de transição também está procurando maneiras de simplificar os opacos bancos de dados administrados pelo Exército e pela Polícia Federal, disseram as fontes.
Mas essa é a parte fácil.
Existem, neste exato momento, cerca de 1,9 milhão de armas privadas registradas no Brasil, de acordo com os institutos Igarapé e Sou da Paz, contra cerca de 695.000 em 2018, quando Bolsonaro foi eleito. Reduzir esse vasto estoque de armas de fogo, muitas das quais pertencem a fanáticos por Bolsonaro que detestam Lula e contestam sua vitória eleitoral, será "desafiador", disse Gabriel Sampaio, advogado membro da equipe de transição.
O contexto político atual não poderia ser mais diferente do que o período anterior de Lula na Presidência, entre 2003 e 2010, quando ele aprovou leis abrangentes sobre armas para combater crimes violentos. Essas medidas incluíram um esquema de recompra voluntária que removeu cerca de 650.000 armas de circulação.
A equipe de Lula está agora discutindo uma recompra obrigatória para tirar os fuzis de assalto das mãos de civis e entregá-los às forças de segurança, disseram fontes de transição.
Langeani, do Instituto Sou da Paz, estima que existam entre 40 mil e 70 mil fuzis legais nas mãos de civis. Uma recompra obrigatória e com preços competitivos, com o governo pagando de 15 mil reais a 20 mil reais por fuzil, removeria algumas das armas de fogo mais perigosas do país, disseram Langeani e outros assessores de Lula.
Cerca de 700 mil brasileiros aproveitaram as leis mais brandas de Bolsonaro para se registrar como "colecionadores, atiradores desportivos e caçadores" ou "CACs" e armazenar armas. O número de licenças CAC cresceu quase 500% desde 2018.
No entanto, a supervisão em cima desses proprietários de armas é minúscula. No ano passado, auditores do Exército realizaram 622 visitas presenciais a proprietários de armas com carteiras vencidas ou inativas e apreenderam cerca de 400 equipamentos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em pelo menos 10 Estados, onde vivem cerca de 80 milhões de pessoas, eles não realizaram nenhuma visita.
O incidente com Jefferson é um exemplo.
Apesar de ser um dos presos mais conhecidos do Brasil, em prisão domiciliar por supostamente organizar "atos antidemocráticos", ele tinha em seu arsenal caseiro um fuzil de assalto, uma pistola Tanfoglio 9mm, "muita munição" e granadas proibidas, de acordo com seu testemunho.
Jefferson também disse à polícia que tinha de 20 a 25 armas e que já foi proprietário de até 100 armas de fogo.
O Exército disse que ele possuía uma licença CAC desde 2005, que foi suspensa após a troca de tiros em outubro.
O advogado de Jefferson, Luiz Gustavo Cunha, disse que seu cliente exercia o direito legal de ter esses equipamentos em casa.
“Ele entende que todo político que quer desarmar sua população quer transformar seu povo em escravo”, disse Cunha.
INUNDAÇÃO DE ARMAS
A fraca fiscalização não é o único obstáculo que Lula terá pela frente.
Fontes do time de transição esperam contestações legais de detentores de licenças CAC que compraram armas de fogo estrangeiras de boa fé.
Os brasileiros importaram cerca de 75 milhões de dólares, uma quantia recorde, em revólveres e pistolas nos primeiros 11 meses de 2022, quase o dobro do total do ano passado.
Bolsonaro transformou o Brasil em um dos dez principais destinos de armas de fogo civis fabricadas nos Estados Unidos, de acordo com dados oficiais dos EUA compilados pelo Security Assistance Monitor, subindo da 26ª posição em 2018 para a nona este ano. As exportações de armas de fogo dos EUA para o Brasil atingiram valor recorde de 13,3 milhões de dólares até outubro de 2022, contra 3,2 milhões de dólares há quatro anos.
A demanda crescente também se refletiu em um eleitorado vocal a favor de legislações pró-armas.
A eleição do último mês de outubro viu o surgimento de uma nova onda de parlamentares pró-armas, eleitos dentro de um Congresso mais conservador, que planejam impor leis pró-armas ao estilo norte-americano.
Marcos Pollon, deputado federal recém-eleito que lidera o grupo de lobby PROARMAS, inspirado na Associação Nacional do Rifle nos EUA, disse que lutará contra os esforços de Lula na supressão deste novo e vibrante setor da indústria brasileira.
"Destruir da noite para o dia toda uma indústria por vingança política... é uma medida ditatorial", disse ele. "Acreditamos que a nova Legislatura responderá para garantir os direitos das pessoas de praticar seus esportes e exercer legítima defesa."
Antes da eleição, Bolsonaro incentivou seus seguidores a se armarem como um seguro contra possíveis irregularidades eleitorais. Ele ainda não reconheceu publicamente a derrota, e sua politização da posse de armas contribui para uma atmosfera tensa, com grupos de apoiadores acampados do lado de fora de quartéis militares, instando as Forças Armadas a reverter o resultado das eleições.
Na noite de segunda-feira, apoiadores de Bolsonaro tentaram invadir a sede da Polícia Federal em Brasília, entrando em confronto com as forças de segurança e ateando fogo em veículos, depois que o Supremo Tribunal Federal ordenou a prisão de um líder indígena que teria "convocado pessoas armadas para impedir a diplomação" de Lula.
Ele não é o único apoiador de Bolsonaro a pedir uma resposta armada ao resultado da eleição.
Em um vídeo de protesto no mês passado, o empresário Milton Baldin convocou os proprietários de licenças CAC a se dirigirem até Brasília para protestar contra a cerimônia de diplomação eleitoral de Lula. "Venha e marque presença", disse ele, acrescentando que a bandeira verde e amarela do Brasil "pode muito bem acabar se tornando vermelha, mas com meu sangue".
Baldin, que foi preso na semana passada por seus supostos comentários antidemocráticos, não quis comentar o episódio.
Um número crescente de armas legais acabou nas mãos de alguns dos traficantes mais violentos do Brasil, informou a Reuters. Essa tendência só se acelerou, disseram fontes da polícia federal.
No último dia 8 de novembro, a Polícia Federal desbaratou uma suposta quadrilha de tráfico de cocaína e de armas e de lavagem de dinheiro. Das 110 pessoas presas, 30 tinham licença CAC, disseram dois policiais à Reuters, falando sob condição de anonimato para discutir questões que não são públicas.
VIOLÊNCIA DO COLARINHO BRANCO
Roberto Jefferson não é um criminoso obstinado, mas é perfeitamente ilustrativo de como a retórica de Bolsonaro e o afrouxamento das leis de armas podem levar a crimes violentos, disse Claudio Mannarino, prefeito de Comendador Levy Gasparian, cidade 140 quilômetros ao norte do Rio de Janeiro.
Ele estava tomando café em sua casa por volta do meio-dia de 23 de outubro, quando ouviu o que pareciam ser fogos de artifício. Logo depois, Mannarino começou a receber mensagens de que Jefferson, seu vizinho, havia disparado contra a Polícia Federal.
Jefferson foi preso no ano passado por ameaçar instituições democráticas. Em janeiro, o político, lutando contra um câncer, obteve permissão para prisão domiciliar, mas foi banido das redes sociais.
No dia 21 de outubro, a filha de Jefferson publicou um vídeo em sua conta no Twitter no qual seu pai chamava a juíza Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, de "prostituta", entre outros insultos.
Dois dias depois, quatro policiais federais foram até sua casa para detê-lo por quebrar os termos de sua prisão domiciliar.
Ele deu as boas vindas com uma saraivada de balas.
Após a rendição, Jefferson pediu desculpas aos policiais feridos, dizendo em seu depoimento que não havia atirado com dolo.
Os procuradores federais não se comoveram. Na semana passada, eles tornaram Jefferson réu por acusações de quatro tentativas de homicídio, resistência qualificada, posse de arma de fogo e munição de uso restrito e permitido, além de posse e adulteração de granadas.
Cunha, advogado de Jefferson, disse que seu cliente era inocente, alegando que sua prisão inicial e o subsequente mandado de prisão eram ilegais.
“Eles se tornaram criminosos ao cumprir uma ordem ilegal”, disse Cunha sobre a polícia.