Nessas plataformas mais subterrâneas, como o Telegram, é dominância total da direita", diz Letícia Cesarino, professora essora no Departamento de Antropologia da UFSC
Caroline Oliveira, Brasil de Fato - Uma das pautas que não sai da boca do presidente Jair Bolsonaro (PL) é a suposta fragilidade das urnas eletrônicas, como forma de deslegitimar o processo eleitoral brasileiro. Na mesma linha, o assunto também é dominante nos grupos de extrema-direita do Telegram.
Letícia Cesarino, professora no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), estuda a fundo o comportamento bolsonarista em grupos, e aponta: “os [assuntos] mais compartilhados, as pautas e as narrativas que se sobressaem no conjunto dos grupos e canais que a gente analisa, têm a ver não necessariamente com alegação direta de fraude nas urnas, mas com a deslegitimação da institucionalidade que garante o resultado da eleição”.
“E é justamente a extrema-direita, aliada do presidente Jair Bolsonaro, que domina esse ambiente. Nessas plataformas mais subterrâneas, como o Telegram, é a dominância total da direita. O modo como eles se vendem, como produtores de conteúdo, tem a ver com estar revelando verdades que a mídia esconde. E é assim que eles ganham fidelidade desses seguidores”, complementa.
A ideia de "revelar a verdade" também dá a tônica da atuação de Bolsonaro. Em julho do ano passado, o capitão reformado prometeu apresentar provas de suposta fraude no sistema eleitoral durante o pleito de 2018. Na época, o hoje presidente disse que, na verdade, teria vencido o pleito já no primeiro turno. Logo depois, no entanto, a "verdade" revelada não passou de alegações antigas e falsas de que as urnas eletrônicas completaram o voto no número do PT à revelia da escolha dos eleitores.
Confira abaixo a entrevista com Letícia Cesarino.
Brasil de Fato: Das eleições presidenciais de 2018 para cá, o que mudou em relação à produção e difusão de desinformação nas redes sociais no Brasil, principalmente pensando na extrema-direita?
Letícia Cesarino: A máquina está funcionando a todo vapor, mas tem um aspecto diferente de 2018, quando teve um caráter expansivo. Depois da facada, ela [a máquina] conseguiu uma expansão e capilaridade para além daqueles grupos segmentados e influenciadores mais raiz do bolsonarismo. Através do WhatsApp, principalmente, se vê uma capilaridade muito grande para campanha.
Este ano, em se tratando de reeleição, com quatro anos de governo, pandemia, a volta do Lula para a corrida eleitoral, o bolsonarismo está em um momento ruim. O ecossistema foi diminuindo de tamanho em comparação ao que chegou a ser na campanha. Mas, ao que tudo indica, eles estão “repivotando” a máquina para eleição em si, como fizeram em 2018.
Agora o que mudou foi esse padrão para usar a máquina não só para tentar aumentar a base eleitoral, mas para desestabilizar a própria legitimidade da eleição. Isso sempre esteve colocado, inclusive com essa pauta da fraude nas urnas. Sempre foi uma das narrativas, mas não era importante naquele momento, porque Bolsonaro tinha vencido e estava com apoio grande.
Esse ano a pauta ganhou corpo e, pelo menos nos dados que a gente trabalha da plataforma Telegram, sem dúvida é a pauta dominante neste ano. Os [assuntos] mais compartilhados, as pautas e as narrativas que se sobressaem no conjunto dos grupos e canais que a gente analisa, têm a ver não necessariamente com alegação direta de fraude nas urnas, mas com a deslegitimação da institucionalidade que garante o resultado da eleição.
No 7 de setembro, por exemplo, uma pauta que ganhou proeminência foi o passaporte sanitário, mas numa espécie de crossover com a pauta de fraude nas urnas. Eram boatos de que pessoas não vacinadas seriam impedidas de votar. Então mesmo que não seja a pauta deles [naquele momento], o tema está sempre circulando pelo menos desde setembro.
O ambiente da internet onde são produzidas e difundidas as notícias falsas parece ser de domínio da extrema-direita. A esquerda, por outro lado, aparenta não ter domínio sobre esse território. É isso? É possível encontrar também setores da esquerda por trás dessa produção e difusão?
Nessas plataformas mais subterrâneas, como o Telegram, é dominância total da direita, é outra escala. É um nicho da direita, e vai continuar sendo, porque é ali que eles operam. A esquerda política tem uma interface com a grande mídia, que essa direita, dos deputados para baixo, não têm. Eles não têm onde ter visibilidade que não na internet. O nicho é deles. Então, por mais que a esquerda cresça, esse continua sendo um nicho deles.
O modo como eles se vendem, como produtores de conteúdo, pseudojornalistas, tem a ver com estar revelando verdades que a mídia esconde. Não faz sentido eles saírem disso, porque é assim que eles atraem os consumidores, com essa alegação de que depois da internet a mídia nunca mais vai conseguir esconder nada. E é assim que eles ganham fidelidade desses seguidores.
É intrínseco à mídia. Na esquerda não tem muito disso. Tem um ou outro canal conspiratório, mas não tem nem comparação em escala.
É possível a esquerda fazer frente a esse domínio de alguma maneira?
Dá para aumentar bastante a ocupação, mas chegar ao nível deles é difícil sem cruzar certas linhas éticas e até legais. Eles sempre vão estar na frente, porque não tem limite nenhum de distorção e sensacionalismo, porque é baseado na eficácia. Se uma mídia viraliza, o conteúdo vai seguir na mesma linha, e a tendência é o sensacionalismo viralizar. É o diferencial dessa mídia com relação à grande mídia.
Mas é importante disputar pelo menos para tirar parte dessa vantagem que a extrema-direita tem. A esquerda está melhorando, mas é questão de organicidade. A esquerda precisa de canais orgânicos.
Não adianta o PT ter uma ótima estratégia de comunicação para falar a linguagem da internet se não tem a rede de criadores orgânicos.
Bolsonaro segue à risca a estratégia adotada pela extrema-direita norte-americana, insistindo na alegação de fraude na votação que o elegeu presidente em 2018 / Antônio Augusto/Ascom/TSE
A direita conseguiu a rede orgânica através desse apelo normal. A questão da ameaça é bem importante, porque isso mantém as pessoas ligadas, além da questão da revelação. Agora é possível ter isso na esquerda, e precisa ter isso também. Esse viés da revelação pode ser mais aproveitado.
Em 2018, o WhatsApp foi uma plataforma muito importante para a disseminação de notícias falsas relacionadas a conteúdos políticos e eleitorais. Isso mudou de alguma maneira? Podemos citar novas plataformas significativas para essa rede de produção e difusão de desinformação?
Mudou, mudou bastante. As plataformas que foram importantes em 2018, o WhatsApp e o Facebook, continuam importantes, mas o ecossistema como um todo se diversificou. A gente tem, por exemplo, o TikTok, que apesar de não ser grande, tem um investimento do bolsonarismo. O próprio Instagram, que não expressa muito esse uso político, tem uma incidência adjacente ao bolsonarismo, com desinformação sobre tratamento precoce, ciências alternativas, a pauta antivacina.
O bolsonarismo foi se diversificando em plataformas diferentes. Por exemplo, o Telegram é um dos mais subterrâneos, com grupos muito fechados e radicalizados. A gente está tentando olhar a relação entre esses segmentos mais fechados, que a gente chama de refratados, com o segmento de superfície, como o Facebook, o Instagram e o WhatsApp, que, ao que tudo indica, é mais importante que o Telegram em termos de capilaridade.
É visível esse investimento do bolsonarismo no TikTok. O Youtube tem um caráter de produção de notícias falsas e o WhatsApp, de difusão. Pensando nisso, qual é a o papel do TikTok?
No TikTok já existem conteúdos dedicados. Só que geralmente são conteúdos camuflados, que ficam naquela zona cinzenta, entre o entretenimento e a propaganda política. A rede tem esse perfil, mas quantitativamente ainda não é importante. Agora os vídeos do TikTok também circulam no WhatsApp, então tem esse trânsito também.
E de outras plataformas mais alternativas e utilizadas pela extrema-direita?
Esse é um outro padrão mais claro que não tinha em 2018: as plataformas alternativas como Gettr, Rumble, BitChute e outras que copiam outras plataformas “mainstreaming” [dominantes] na medida em que começaram a enrijecer a moderação de conteúdo, banindo canais, banindo conteúdo do próprio Twitter. Então eles começaram a migrar para essas plataformas alternativas, que é algo que realmente não tinha em 2018.
Uma coisa que mudou é o fato de que o conteúdo parece estar mais espontâneo, no sentido de que ali em 2018 foi uma novidade esse estilo de campanha ou esse tipo de linguagem para política.
Então, num primeiro momento, o conteúdo foi muito associado ao que a imprensa chamou “gabinete do ódio”, que a gente não sabe ainda exatamente quem está exatamente por trás. Quatro anos depois, os próprios apoiadores do presidente organicamente já incorporaram esse modus operandi, por cópia mesmo. E aí tem um outro padrão também que já estava ali em 2018, mas está cada vez mais claro, que é a questão da monetização, principalmente ligada ao YouTube.
Então pra muitos desses ativistas, virou realmente um tipo de empreendedorismo. Está acontecendo até mesmo uma certa “mainstreamização” de parte dessa direita. Eles já estão colonizando nichos de mídia dentro da própria esfera pública.
Você falou do Youtube. Qual é o tamanho e a importância do Youtube hoje na criação e distribuição da desinformação?
Circula muito link de canal de vídeo do YouTube no Telegram. O YouTube presume que tem um controle sobre a plataforma que não tem, porque está conectado com todas as outras. O bolsonarismo se aproveita disso.
A gente vê uma incidência do Youtube dentro do Telegram de cinco a seis vezes maior do que a segunda plataforma, que é o próprio Telegram. Em outras palavras, a segunda plataforma mais comum é o próprio Telegram, e o Youtube é o primeiro, só que ele está muito à frente. Tem uma relação aí que é estrutural mesmo entre os dois. Então o papel do YouTube é muito grande, porque é o YouTube que monetiza.
O que é e o que significa a cauda longa?
A cauda longa são os pequenos. É uma estrutura de rede muito fragmentada entre muitos pequenos e poucos grandões [produtores de conteúdo, sejam grupos ou indivíduos] ali. Dentro do YouTube, a gente vê o mesmo padrão: três ou quatro grandes canais do bolsonarismo pegando boa parte dos links e entre 60% e 70% estão dispersos em canais pequenos ou médios que estão tentando ganhar atração e escala dentro do ecossistema da extrema-direita, que é o ambiente deles, para eventualmente virar um desses canais grandões para monetizar.
Qual é a interface entre o Telegram e Youtube? De 100 canais, 10 são grandes canais com centenas de milhares de visualizações, e a grande maioria, a cauda longa, são canais menores que ainda não têm essa escala para monetizar, mas eles estão tentando essa escala.