BRASÍLIA,DF (FOLHAPRESS) - O documento com informações falsas
sobre mortes por Covid-19, divulgado por Jair Bolsonaro como se fosse oficial
do TCU (Tribunal de Contas da União), foi manipulado após ter sido recebido
pelo presidente da República. É o que afirmou o auditor do TCU Alexandre
Figueiredo Costa Marques, autor do documento original.
Marques prestou depoimento no último dia 28 à comissão
constituída no tribunal para investigar sua conduta por meio de um processo
disciplinar aberto pelo TCU.
A oitiva, de 43
minutos, foi compartilhada com a CPI da Covid no Senado. Diante do teor do
depoimento, considerado grave, a comissão decidiu ouvir o auditor nesta
terça-feira (17). A existência do depoimento ao TCU e seu teor foram divulgados
pela TV Globo na sexta (13) e obtidos pela Folha.
Em 7 de junho, em conversa com apoiadores
na porta do Palácio da Alvorada, Bolsonaro afirmou que tinha em mãos um
documento do TCU que atestava que metade dos registros de mortes pela doença
não teriam ocorrido por Covid-19.
Haveria supernotificação, segundo o
presidente, citando um relatório que foi logo distribuído a publicações
alinhadas ao Palácio do Planalto e nas redes bolsonaristas.
O documento era falso. O presidente foi
desmentido pelo TCU, numa nota divulgada no mesmo dia. Quase 570 mil
brasileiros já morreram por Covid-19 desde o início da pandemia.
Após ser desmentido, Bolsonaro recuou
sobre as afirmações feitas em relação ao relatório. Mas, sem nenhuma prova,
seguiu dizendo existir uma fabricação de registros das mortes por Covid.
Um relatório foi de fato elaborado pelo
servidor do TCU, mas sem se constituir documento oficial do tribunal. O auditor
Marques elaborou e o compartilhou com seu pai, o coronel da reserva do Exército
Ricardo Silva Marques. O coronel e Bolsonaro estudaram juntos na Aman (Academia
Militar das Agulhas Negras).
Aos integrantes da comissão do TCU o auditor confirmou ter repassado o
documento ao pai e também que foi o pai o responsável por encaminhá-lo ao
presidente da República no mesmo dia. Mas, segundo ele, tratavam-se apenas de
duas páginas escritas em Word, sem data, sem timbre do TCU, sem assinatura.
O pai repassou as páginas da mesma forma
ao presidente, sem manipulação, segundo o auditor.
Foi somente após Bolsonaro receber o
material pelo WhatsApp que surgiram alterações para tentar dar ao documento um
aspecto oficial, como, por exemplo, a inscrição "Tribunal de Contas da
União" no cabeçalho.
As duas páginas foram escritas em 31 de
maio, uma segunda-feira, e mostradas a uma equipe de auditores do TCU no mesmo
dia, por meio de um sistema interno, conforme o depoimento. Os argumentos
colocados no papel foram logo descartados pela equipe.
No domingo seguinte, dia 6 de junho,
Marques mandou o arquivo ao pai, que o repassou a Bolsonaro no mesmo dia. O
auditor estava em Jundiaí (SP). O pai, no Rio.
O presidente divulgou o relatório como se
fosse oficial e verdadeiro já na segunda seguinte, dia 7, logo de manhã, em uma
das conversas diárias com apoiadores em Brasília, transmitidas por redes
bolsonaristas.
Os integrantes da comissão interna
apontaram, no depoimento, a existência de alterações no documento, como o
cabeçalho e o surgimento de parágrafos para se fazer uma conclusão. Eles
questionaram o auditor investigado sobre a razão dessas manipulações.
"O que preparei não tinha qualquer
menção ao TCU, não tinha cabeçalho, identidade visual, data, assinatura, não
tinha destaques grifados com marca-texto, não tinha nada disso. Meu pai acabou
repassando e ele poderia ser editado por qualquer pessoa", afirmou o auditor.
A conclusão teria surgido a partir de
acréscimos feitos pelo próprio auditor antes de enviar o material ao pai,
segundo ele. O restante surgiu depois de o material ser recebido por Bolsonaro,
afirmou.
A comissão questionou textualmente se
Marques acreditava que as alterações teriam sido feitas após o envio do
documento ao presidente. "Exatamente", respondeu. "Ele [o pai]
me falou que encaminhou pelo WhatsApp o mesmo arquivo em Word."
"Redigi
esse arquivo em Word, em duas páginas, como um rascunho para provocar um debate
junto à equipe de auditoria. Peguei informações públicas na internet, fiz
simplesmente um arrazoado, para gerar essa discussão. Minha preocupação era com
a qualidade dos dados de saúde", afirmou o auditor.
Não há
nenhuma evidência de que gestores e médicos supernotificam casos de mortes por
Covid-19, conforme o técnico. "O assunto [no grupo de auditores] acabou
sendo afastado, e o debate não prosperou."
A entrega
do rascunho ao pai se deu em uma "conversa íntima, privada,
familiar", afirmou Marques. "Em nenhum momento imaginei que ele
encaminharia isso a outra pessoa", completou no depoimento.
Quando
viu Bolsonaro fazer a afirmação sobre mortes por Covid-19, o auditor diz ter
ficado "atônito".
"Meu
pai veio me explicar que ele encaminhou aquele arquivo de Word de duas páginas
para o presidente Bolsonaro, e a partir desse arquivo o presidente fez aquela
fala." O pai não explicou o propósito de ter repassado o documento ao
presidente, segundo Marques.
Os
auditores que conduzem a investigação interna quiseram saber por que houve essa
abordagem de supernotificação, sendo que isso não fazia parte da matriz de
planejamento da área responsável no TCU.
Além
disso, os repasses federais são feitos com base no número de casos, não de
mortes, conforme os auditores. "Minha preocupação foi simplesmente fazer
uma provocação. Quanto mais casos, mais mortos. Estava preocupado com a
qualidade dos dados como um todo", respondeu Marques.
O auditor
deu detalhes sobre como o presidente atua para garantir cargos a amigos em seu
governo. O próprio Bolsonaro encaminhou um currículo do auditor -providenciado
pelo pai- ao presidente do BNDES, para cargo de diretor no banco.
A
indicação não foi adiante porque o TCU barrou. Já o colega de Aman ganhou uma
gerência na Petrobras, também por indicação do presidente. Mesmo assim, Marques
negou ter qualquer relação com a família Bolsonaro.
"Foi
total irresponsabilidade do mandatário da nação, sair falando que o tribunal
tinha um relatório publicado, falando que mais da metade das mortes por Covid
não era por Covid. Achei uma afronta a tudo que a gente sabe que acontece, às
informações públicas, à ciência", disse.
Fonte: Noticias ao
Minuto