Satisfeito
com o desmonte do estado brasileiro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
diz, em seu artigo mensal que "do poder ninguém escapa, seja exercendo-o,
seja sofrendo-o"
(Foto: Reuters | PR)
247 – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,
que tramou o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff e a prisão política do
ex-presidente Lula, e que atua como mensageiro das elites em seu artigo mensal,
diz, em seu texto de fevereiro, que os brasileiros devem se contentar em sofrer
com o degradante Bolsonaro. No artigo, ele não menciona a palavra impeachment,
sinalizando que está satisfeito com o desmonte do estado brasileiro. Confira
abaixo:
As difíceis
escolhas
Além da pandemia, temos de vivenciar o
jogo degradante de sempre de quem manda
Fernando Henrique
Cardoso – Dias
difíceis estes pelos quais passamos. Além da pandemia, o jogo do poder. Eu não
me posso queixar: fique em casa, dizem os que mais sabem sobre os contágios.
Isso é possível... para quem tem casa, como eu. E os que não a têm, ou a têm
precária, e são muitos, na casa dos milhões? E os que estão no poder e,
diferentemente de minha situação atual, precisam meter-se no dia a dia da
política?
O
bichinho persistente, o novo coronavírus, mata indiscriminadamente, é verdade,
jovens ou velhos, ricos e poderosos tanto quanto pobres e sem alavancas de
poder nas mãos. Mesmo assim, na minha faixa de idade, quando os 90 anos se
aproximam celeremente, é triste viver dentro de casa, por mais confortável que
seja, e ver a cidade murchando. E é tristeza para todos.
Mas não
desanimemos. Se algo o tempo ensina, é como diz o velho ditado: não há mal que
sempre dure nem bem que nunca acabe.
Às vezes,
raramente, sinto certo desânimo. Olho em volta e vejo: meu Deus, outra vez! É o
Congresso em seu ritmo habitual: dá cá, toma lá. Certa vez perguntei a Bill
Clinton, então presidente dos Estados Unidos: mas é sempre assim? Tratava-se da
prática de pegar no telefone e falar com cada um dos deputados que o apoiavam,
para pedir: é preciso votar a favor, ou contra, tal ou qual projeto.
Era o
habitual. Mas vale a pena. Sem democracia é pior: a barganha, quando existe,
não é vista nem comentada. Mas existe. Melhor que se a faça às claras.
Digo
isso não para referendar o que está acontecendo (nem sei de fato), e sim para
dizer que é melhor suportar tanto horror perante os céus do que amargar a falta
de liberdade. Mas é preciso lutar. Por mais que se “entenda o jogo”, é
necessário repudiá-lo do fundo da alma. Se for indispensável jogar, que se
limite a barganha ao máximo. Fácil dizer, difícil fazer.
Ainda assim, com o
peso dos anos e a experiência de haver passado pelos altos e baixos do poder,
não deixa de ser triste ver isso a que estamos assistindo: o poder, nu e cru,
com suas mazelas expostas. Ainda que se dê o desconto e se imagine que “a
mídia” exagera (pobre dela, paga o preço), a cada episódio de mudança de
comando no Congresso vê-se pouco uma luta de ideais, e se vê, a perder de
vista, um jogo de interesses. Eu sei que a tessitura da política não é feita só
com valores e que os interesses contam; mas a cada vez que tudo isso aparece dá
vontade de fechar-se na vida pessoal e ponto.
Só que
ninguém é de ferro e no dia seguinte, novamente, volta o “interesse público”.
Sejamos francos: mesmo entre os que barganham, nem por isso o interesse público
desaparece ou deixa de contar. A realidade cobra o seu preço, os fatos falam
mais alto, as urgências se impõem. O que parece ser diferente em nossas plagas,
comparando com outras (que talvez tenhamos a sorte de conhecer menos), é que
nas democracias, imagina-se, existem mais valores do que interesses. Será?
Espero, mas não sou ingênuo (gostaria de o ser). Acho melhor olhar para o que,
apesar dos procedimentos criticados, se pode fazer em liberdade, em
contraposição ao que é feito em regimes autoritários, por mais “fazedores” que
sejam.
Espero,
apesar de tudo, que os novos dirigentes do poder parlamentar não se esqueçam de
que, além de colaborar com o que lhes pareça positivo no governo federal,
continuem fazendo o que dizem ser necessário: as reformas (dependendo sempre de
quais e para quê) e, sobretudo, projetos para a volta dos empregos, com uma
nova onda de crescimento da economia. E, por favor, sem esquecer que a tão
falada redistribuição de renda não ocorre sem que haja (perdoem-me a má
palavra) vontade política.
E isso – a tal
vontade política – é necessário em qualquer forma de poder. A diferença entre
elas é que, quando são democráticas, o cidadão comum fica sabendo o que
acontece, pois a mídia anuncia e denuncia. Eventualmente, ele pode reagir nas
eleições futuras. Enquanto, sem liberdade, os donos do poder mandam mais “à
vontade”, ou seja, fazem das suas e ninguém toma conhecimento.
Não
convém, portanto, apenas se recolher. Ao contrário, já que pelo menos temos
liberdade, não compactuemos com erros e exerçamos, dentro da lei, o poder de
escolha. Se errarmos, pagaremos o preço. Pior, quem escolhe é a maioria, que
nem sempre acerta. Se é que acertar quer dizer estar de acordo com o ponto de
vista de quem hoje reclama. Mais do que nunca, precisamos de lideranças. Na
política não adianta o sentimento sem ter quem o expresse. Líder é quem
simboliza um sentimento.
Não
escrevo para me consolar, nem para consolar os leitores. Creio que é assim
mesmo: a democracia é sempre imperfeita, embora melhor que as outras maneiras
de governar. Verdade simples e fácil de ser enunciada. Mas difícil, reconheço,
de ser vivida. Pior ainda, como agora, quando, além da pandemia, temos de
vivenciar o jogo degradante de sempre, sejam quais forem, tenham sido ou vierem
a ser “los que mandan”.
Livremo-nos
ao menos do vírus (se possível), já que do poder ninguém escapa, seja
exercendo-o, seja sofrendo-o.