Em mais um capítulo da Vaza Jato, novas mensagens revelam que o procurador Deltan Dallagnol fez pressão sobre um Poder independente, o Judiciário, para conseguir a indicação de um juiz "amigo" à frente da Lava Jato, depois da saída de Sergio Moro. Pressão não tem precedentes. O MP nunca havia feito pressão do tipo sobre o Judiciário
Rafael Neves e
Rafael Moro Martins, Intercept Brasil -
Os procuradores da Lava Jato no Paraná atuaram nos bastidores para interferir
na sucessão do ex-juiz Sergio Moro nos processos da operação em primeira
instância. A força-tarefa do Ministério Público Federal fez lobby num outro
poder, o Judiciário, para garantir que o novo escolhido para a cadeira do então
recém-nomeado ministro do governo de Jair Bolsonaro fosse alguém que agradasse
aos investigadores.
As articulações estão explícitas em duas mensagens de áudio do então
coordenador da força-tarefa, o procurador Deltan Dallagnol. Nelas e em várias
mensagens de texto trocadas pelo Telegram em janeiro de 2019, ele elenca os
principais candidatos à vaga de Moro, elege os preferidos da força-tarefa e
esboça o plano em andamento para afastar quem poderia “destruir a Lava Jato”,
na opinião dele.
Quando Moro abandonou a carreira de juiz,
em novembro de 2018, logo após a eleição de Bolsonaro, deixou vaga a cadeira de
responsável por julgar os processos da Lava Jato na primeira instância. A
sucessão ou substituição de um magistrado é um processo comum no poder
Judiciário, que tem autonomia para decidir – obedecendo a um regimento interno.
O que é no mínimo incomum, nesse caso, é a
pressão e a interferência de um órgão externo, o Ministério Público Federal. Em
mensagens de texto e áudio, Dallagnol também pede a colegas familiarizados com
o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o TRF4, responsável
pela Justiça Federal do Paraná, que tentassem “advogar” junto a ele por uma
solução que agradava à força-tarefa.
A ideia
compartilhada por Dallagnol e por juízes federais do Paraná era colocar três
magistrados na posição de assessores de um quarto, o veterano Luiz Antônio
Bonat, num esforço para convencê-lo a disputar a vaga de Moro. “Ele colocou ali
o nome dele por amor à camisa”, narrou Dallagnol. “Então a gente tem que
conseguir um apoio. A ideia talvez seria de ter juízes assessores ali
designados junto a ele”.
A Lava Jato considerava que Bonat, um juiz
com 64 anos e de perfil extremamente discreto (jamais deu palestras ou
entrevistas desde que assumiu o comando da operação, há quase dois anos),
precisaria de ajuda para dar conta das dezenas de processos que corriam no
Paraná. Assim, Dallagnol e equipe buscaram uma forma de garantir que nem todo o
trabalho da operação cairia sobre ele.
O plano articulado
para montar o time de juizes acabou por não sair do papel, mas o principal foi
feito: Bonat foi convencido a disputar a vaga. “Aí ontem os juízes estavam
preocupados e conseguiram fazer, conseguiram convencer o número 1 da lista, o
que é ótimo para nós, assim, simbolicamente, a aceitar o desafio de ir para a
13ª”, celebrou Dallagnol, em áudio.
E, como era previsto pelos procuradores,
Bonat herdou a cadeira de Moro por ser o mais antigo juiz federal em atividade
na jurisdição do TRF4.
Nas conversas, fica claro que o juiz
resistiu a entrar na disputa e que ele foi convencido a concorrer por colegas e
procuradores que “estavam preocupados” com a vitória iminente de alguém visto
com desconfiança pela Lava Jato: Julio Berezoski Schattschneider, um juiz que
atuava em Santa Catarina. Procurados, nenhum deles quis dar entrevista.
A candidatura de
Bonat surpreendeu a comunidade jurídica. Magistrado com 25 anos de carreira, à
época, ele estava afastado da área criminal havia 15 anos. Até um juiz federal
que atua na região do TRF4, e que falou ao Intercept sob a condição de anonimato,
diz ter estranhado: “Era uma vara difícil, cheia de trabalho, daquelas que
habitualmente ninguém quer pegar e acaba sobrando nas mãos de um juiz mais
novo. E aí aparece um monte de gente mais antiga [na disputa]”, ele observou.
Sergio Moro foi o primeiro grande nome
confirmado por Bolsonaro para seu governo após a vitória nas urnas. A adesão do
então juiz ao político de extrema direita se deu meros três dias após o segundo
turno: ele viajou ao Rio, visitou Bolsonaro em sua casa na Barra da Tijuca,
ouviu o convite para ser ministro da Justiça e Segurança Pública e disse sim
poucas horas depois.
Com a entrada formal na política, Moro foi
obrigado a passar o bastão dos processos da Lava Jato. Temporariamente, a
operação passou a ser conduzida pela juíza substituta Gabriela Hardt até que um
novo magistrado assumisse a vaga de titular.
Pelas regras de funcionamento da justiça
no Brasil, os processos seguiriam com a 13ª Vara Federal de Curitiba. Com a
saída de Moro, a vaga de titular dessa vara entrou em disputa. Qualquer juiz da
4ª região da Justiça Federal – que abrange Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná – poderia disputar o posto. O escolhido seria quem tivesse mais tempo de
carreira entre os inscritos, seguindo o regimento do TRF4.
No dia do anúncio de Moro, procuradores da
Lava Jato já especulavam no Telegram quem sucederia o magistrado. Mas a
interferência da força-tarefa no Judiciário só ganhou forma em janeiro de 2019,
quando Dallagnol fez um comunicado aos colegas:
9 de janeiro de
2019 – Chat Filhos do Januario 3
Deltan Dallagnol –
18:56:19 – Caros,
vamos visitar as pessoas que seria bom que assumissem a 13ª Vara para
convencê-las. Vou levantar nomes bons e vou convidar quem puder pra irmos
estimular rs
Dallagnol –
18:56:24 – Isso
é crítico para nosso futuro
Dallagnol parecia obcecado. No dia
seguinte, o então coordenador da força-tarefa apresentou aos colegas um
prognóstico sobre os potenciais postulantes, endereçado especificamente a
Januário Paludo, um dos veteranos da força-tarefa e com quem Dallagnol contava
para ajudá-lo no lobby:
10 de janeiro de
2019 – Chat Filhos do Januario 3
Deltan Dallagnol –
18:18:59 – Jan,
fizemos a reunião. Segue mapeamento
Dallagnol –
18:20:06 – Luiz
Antonio Bonat, 1 (21ª Vara Federal de Curitiba) (dois vão conversar) Taís
Schilling Ferraz, 2 (Moro considerava uma opção – ligada a Gilmar) Eduardo
Vandré, 6 (seria péssimo) Loraci Flores (irmão do Luciano Flores), 8 Marcelo
Malucelli, 10 Artur César de Souza, 11 (Londrina) Julio Guilherme Berezoski
Schattschneider, 19 (péssimo, mas parece que não quer mais) Nivaldo, 37,
impedimento ? Danilo, 64, impedimento mas com interpretação pq de execução
Friedmann, 70 Claudia Maria Dadico, 95 (Diretora foro SC, perigosos vínculos)
Antonio César Bochenek, 106 Marcos Josegrei, 111 Bianca Arenhart, 112
Dallagnol – 18:20:38 – Welter, Jan ou Je, Vcs conhecem a Taís Schilling?
Dallagnol –
18:21:42 – Ou
conhecem algum destes de POA? Algum é bom? Vcs sondam?
Dallagnol –
18:21:45 – [Imagem
não encontrada]
Jerusa Viecili –
18:29:01 – esses
se inscreveram? o que são os númeors ao lado?
Viecili – 18:29:32
– conheço
o Hermes, fui estagiária dele há mil anos. parece que ele sempre atuou mais no
cível. está no CEJUSCON agora.
Viecili – 18:29:41
– a
Tais conheço de vista só. ela é bem conceituada, até onde sei.
Dallagnol –
18:39:02 – não.
O risco é a posição 6, o Vandré. precisamos de um coringa, alguém que se
disponha a vir até o número 5 e renuncie se o vandré não se inscrever
Dallagnol –
18:39:18 – o
número do lado é a posição na lista de antiguidade
Viecili – 18:40:05
– entendi
Viecili – 18:47:21
– http://www.gaz.com.br/conteudos/regional/2018/11/08/133864-juiz_de_santa_cruz_pode_substituir_sergio_moro_na_lava_jato.html.php
Ali Dallagnol expôs o primeiro alvo da
força-tarefa e uma estratégia para tirá-lo da disputa. Tratava-se do juiz
Eduardo Vandré, que trabalhava numa vara federal de Santa Cruz do Sul, no
Rio Grande do Sul. Ele ocupava o sexto lugar na lista de antiguidade, mas
“seria péssimo” para a Lava Jato, segundo o coordenador.
Os motivos para a
desconfiança foram descritos por Paludo, que afirmou na mesma conversa, mais
tarde, que Vandré era “pt e não gosta muito do batente”.
Com isso em mente, Dallagnol buscava fazer
uma espécie de seguro: garantir a candidatura de um dos cinco juízes mais
antigos, de forma que Vandré ficasse sem chances na disputa. Paludo detalhou o
plano pouco depois:
10 de janeiro de
2019 – Chat Filhos do Januario 3
Januário Paludo –
19:17:36 – Tais
já foi cnj. Vínculos politicos.
Paludo – 19:20:55
– Loraci
diz que não quer. Tentei convence-lo. Seria nossa melhor opção. Bonat é ótimo,
mas não tem pique. Alexandre lippel nem pensar. Vandre e pt e não gosta muito
do batente. Marcelo de nardi não é de todo ruim, tem trânsito, assi, como o
Hermes.
Paludo – 19:21:57
– em
que ser o bonat. Depois faz permuta.
Deltan Dallagnol –
19:50:21 – super
próxima do Gilmar, segundo o Malucelli
Dallagnol –
19:50:57 – Mas
qual a posição do Loraci?
Dallagnol –
19:51:12 – O
Bonat pode assumir e pessoas trabalharem por trás, como Gabriela e Bianca,
talvez…
Os comentários
mostram que Paludo e Dallagnol viam Bonat (o juiz federal com mais tempo de
serviço em toda a região Sul) como um instrumento para impedir que um nome
indesejável ficasse com a vaga de Moro. Mas havia um problema: justamente pela
idade, achavam que ele não teria “pique” para assumir os processos da Lava
Jato. Por isso, Dallagnol aventou a possibilidade de que Bonat fosse escolhido,
mas deixasse outros “trabalharem por trás” dele, como juízes assessores.
O assunto voltou ao Telegram quase uma
semana depois, em 16 de janeiro. Dallagnol encaminhou aos colegas a mensagem de
um juiz que chamou de “nosso preferido” para ocupar a cadeira de Moro: “estou
avaliando, sim….temos até segunda…. Conversei com o Malucelli ontem e ele me
disse que conversou com Bonat, e ele disse que não vai pedir e que nem cogita”,
escreveu o magistrado, segundo o relato de Dallagnol.
A mensagem não deixa claro quem era o
“preferido”, mas as tratativas nos dias seguintes indicam tratar-se do juiz
Danilo Pereira Júnior, que já atuava noutra vara federal de Curitiba. Malucelli
é o juiz Marcelo Malucelli, então diretor do foro da Seção Judiciária do Paraná
– na prática, o administrador da unidade.
Àquela altura, Eduardo Vandré já desistira
de concorrer, mas a Lava Jato tinha outra preocupação. O nome dela era Julio
Berezoski Schattschneider, que trabalhava em Santa Catarina, outro a receber a
alcunha de “péssimo” na lista de Dallagnol.
O chefe da força-tarefa afirmou ter
conversado sobre o assunto com a juíza Gisele Lemke, de uma vara federal de
Curitiba, e narrou aos colegas o que foi discutido:
Segundo o áudio,
Schattschneider havia informado o Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
instância máxima da Justiça Federal no Sul do país, que desejava ser
transferido para Curitiba, mas não fazia questão de ficar com o lugar de Moro.
Assim, a Lava Jato planejava convencê-lo a aceitar outra posição que não fosse
a de Moro. Se ele não topasse, haveria um problema: por ser mais antigo,
Schattschneider teria preferência sobre Danilo Pereira Júnior, o favorito da
Lava Jato. O juiz Bonat continuava decidido a não concorrer.
Esse quadro permaneceu até 21 de janeiro
de 2019, último dia para inscrição dos interessados. A força-tarefa estava
tensa porque o desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, então
presidente do TRF4 (que ironicamente foi cotado para suceder Moro no ministério
de Bolsonaro por ser próximo aos militares), havia anunciado que os dois nomes
preferidos da Lava Jato estavam impedidos de entrar no páreo.
A razão era um item do regimento do
tribunal que vedava a transferência de juízes para uma vara com a mesma
especialidade daquela em que já atuam.
Dallagnol se afligiu e pediu lobby sobre
Thompson Flores:
21 de janeiro de
2019 – Chat Filhos do Januario 3
Deltan Dallagnol –
15:27:23 – Welter,
mensagem do Danilo: “Oi…vou conversar com o Marcelo e descobrir. Mas, em
princípio, o presidente sinalizou que eu e Nivaldo temos impedimento
regimental, pois são caras de mesma especialidade.
Dallagnol –
15:27:31 – Você
não consegue falar com o presidente por aí?
Dallagnol –
15:27:37 – Welter/Jan
Laura Tessler –
15:30:31 – Danilo
é da Vara de Execuções Penais e juizado…13ª é vara de lavagem…nada a ver esse
impedimento..salvo engano, no cível eles não colocam impedimento para remoção
entre Vara Civel geral e Vara especializada (previdenciária, p.ex)
Tessler – 15:30:59
– Presidente
do TRF tá viajando na maionese….
Antônio Carlos
Welter – 15:32:48 – Quando
falei com o Lenz semana passada ele comentou desse impedimento. Parece que ele
entende dessa forma. De qualquer modo, se eles tem interesse na remoção, podem
pedir e depois contestar no órgão especial a interpretação
Dallagnol –
15:33:30 – O
problema é que acho que Danilo não vai querer aparecer como o “juiz que está
lutando pra ir pra LJ”
Dallagnol –
15:33:35 – Pode
cair mal né…
Dallagnol –
15:33:55 – O
ideal seria tentar reverter isso na conversa com o presidente, dizendo que ele
é de todos quem mais tem perfil etc
Dallagnol –
15:34:19 – sacanagem
isso…independente de LJ, o cara não pode estar condenado a ficar o resto da
vida na Vara de Execuções Penais…
O clima só desanuviou quase dez horas da
noite. Januário Paludo avisou ao grupo que Luiz Antônio Bonat havia mudado de
ideia e decidido se inscrever. No dia seguinte, o TRF4 divulgou a lista dos
inscritos com ele na cabeça. Se Bonat não mudasse de ideia até a meia-noite do
dia 24, dali a três dias, a vaga seria dele. Mas Schattschneider vinha na segunda
posição. Por isso, a articulação continuou para que Bonat não desistisse.
As mensagens indicam que procuradores da
Lava Jato trataram pessoalmente desse assunto com a cúpula da Justiça Federal
do Paraná. Eles mencionam um encontro em 22 de janeiro, um dia após o
encerramento das inscrições. Ao final da reunião, Dallagnol fez um resumo aos
colegas:
Em viva voz, o procurador faz duas grandes
confissões. Juízes federais alinhados à Lava Jato “estavam preocupados” com a
possibilidade de que Schattschneider ficasse com a vaga de Moro, segundo
Dallagnol, e, por isso, conseguiram convencer Bonat a se inscrever de última
hora, “por amor à camisa”.
Esses magistrados,
que não são identificados por Dallagnol no áudio, lançam uma suspeita sobre
Schattschneider: a de que ele havia tentado iludir a corregedoria da Justiça
Federal sobre sua intenção de suceder Moro. Procuramos Schattschneider em seu
gabinete para que comentasse a suspeita levantada pela corregedoria, mas ele
não respondeu às tentativas de contato.
Para manter o interesse de Bonat no cargo,
os juízes e o MPF decidiram tentar algo que Dallagnol havia sugerido em 10 de
janeiro: transformar o magistrado numa espécie de líder de um grupo de três
outros juízes que ajudariam a dar agilidade aos processos. Segundo o áudio de
Dallagnol, quem estava à frente desse plano era o juiz Marcelo Malucelli, mas a
cúpula do TRF-4 já tinha se manifestado contra a ideia.
Procuramos Malucelli para que comentasse a
declaração de Dallagnol, mas o juiz disse não saber que Bonat foi convencido de
última hora e não esclareceu se articulou ou não o plano de designar juízes
assessores para ele. “Várias medidas de auxílio foram tomadas pela corregedoria
do TRF4 para a 13ª Vara de Curitiba, antes e depois da saída do juiz Moro. À direção
do foro incumbe apenas cumpri-las”, respondeu.
A preocupação dos procuradores se dissipou
no dia seguinte, 23 de janeiro, quando eles ficaram sabendo que Schattschneider havia
desistido da vaga. No fim das contas, Bonat assumiu a 13ª
Vara no dia 6 de março.
Entregamos a
transcrição integral dos áudios e um resumo cronológico detalhado das mensagens
de texto ao TRF4, à Justiça Federal do Paraná e ao MPF. Aos órgãos do
Judiciário, perguntamos se eram verdadeiras as afirmações de Dallagnol de que
os juízes só convenceram Bonat a concorrer à vaga de Moro de última hora porque
“estavam preocupados” com a chance de vitória de Schattschneider e de que a
direção do tribunal discutiu nomear três juízes assessores para “dar um apoio”
ao magistrado veterano à frente da Lava Jato.
Também perguntamos se o tribunal não
considera que as conversas narradas por Dallagnol são uma interferência
indevida no Judiciário e fizemos o mesmo questionamento à força-tarefa da Lava
Jato. Ao MPF, perguntamos se os procuradores chegaram a visitar candidatos para
a vaga de Moro, como disse Dallagnol, e se o órgão não considerava inadequado o
lobby sobre os juízes para viabilizar os nomes de sua preferência e, depois que
esse plano falhou, para garantir que Bonat não desistisse da vaga.
Todas as questões ficaram sem resposta.
Além de não se manifestar institucionalmente, o TRF4 não emitiu posicionamento
de nenhum dos juízes citados nas conversas, aos quais direcionamos perguntas
específicas. O MPF também preferiu não se manifestar.