A
presença de evangélicos na política cresce de forma exponencial. De 1982 para
cá, o número de parlamentares declaradamente evangélicos passou de 12 para 90,
segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP). A
mudança se explica parcialmente pelo aumento vultoso da população evangélica no
Brasil, que, no mesmo período, passou de 7,8 milhões para 26,2 milhões
Do Brasil de Fato - São quase
sete e meia da noite em uma das unidades da Igreja Pentecostal Deus é Amor, na
região central de São Paulo. Depois de uma chuva intensa, os fiéis demoram a
chegar. Enquanto o culto não começa e os irmãos não chegam, Serafina Ribeiro,
de 36 anos, anda de um lado para o outro, colocando as coisas nos lugares,
passando um pano úmido no chão, limpando os ventiladores e sorrindo para quem
adentrava ao espaço.
Empregada doméstica, ela está ali há
quatro anos, desde que passou por um processo de depressão depois da morte da
mãe, na Bahia, enquanto Serafina vivia em São Paulo – chegou na capital
paulista acompanhada de sua patroa, com quem sempre morou. Na Igreja, sentiu o
“amor de Deus”, parou de sentir angústia e se sente “curada”.
Serafina é o rosto evangélico brasileiro:
mulher, negra e de baixa renda. Na Igreja relativamente pequena, se comparada ao
Templo Salomão da Igreja Universal, a maioria ali presente
confirmou o que levantaram os dados de uma pesquisa de janeiro de 2020, do
Instituto Datafolha: um rosto feminino, negro, que ganha até dois salários
mínimos por mês e tem apenas o ensino médio completo é rosto da religião
evangélica hoje.
Bem diferente, no entanto, é o perfil dos
líderes evangélicos que decidem atuar na esfera política, seja nos bastidores
ou sob os holofotes.
Um exemplo é o pastor Edir Macedo, líder
da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada no terreno de uma antiga
funerária, em 1977, no Rio de Janeiro, tem uma fortuna declarada de
aproximadamente R$ 2 bilhões, segundo a Revista Forbes. Ele foi um dos
apoiadores da campanha de Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018.
Resultado: cerca de 70% dos evangélicos declararam voto no
candidato abençoado da extrema-direita.
A presença de evangélicos na política não
é de hoje, mas cresce de forma exponencial. De 1982 para cá, o número de
parlamentares declaradamente evangélicos passou de 12 para 90, segundo o
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP). A mudança se
explica parcialmente pelo aumento vultoso da população evangélica no Brasil,
que, no mesmo período, passou de 7,8 milhões para 26,2 milhões. Mas não é só
isso.
Jair Bolsonaro é
abençoado pelo pastor Edir Macedo (Foto: Igreja Universal do Reino de Deus)
Um projeto de
poder
Especialistas e evangélicos ouvidos pelo Brasil de Fato explicam que o avanço
dos evangélicos sobre na política responde a um projeto de poder, instigado
pelos líderes religiosos e em aliança com a direita brasileira.
“Com o
crescimento dos evangélicos, muitos mais se apresentarão para a política
partidária. Isso é natural e esperado. Com a Universal, no entanto, isso
mudou”, afirma o pastor Ariovaldo Ramos, de 64 anos, líder da Comunidade Cristã
Renovada e um dos coordenadores nacionais da Frente de Evangélicos pelo Estado
de Direito, formada em 2016. Para ele, a igreja de Edir Macedo se transformou
em uma “agência política”, com uma lógica de lógica de ascensão ao poder.
Em 2008,
o pastor Edir Macedo publicou o livro “Plano de Poder”, citando Maquiavel,
apresentando Deus como um estadista e Adão e Eva como elementos de um estado de
natureza ou de selvageria. “Os cristãos precisam despertar ao toque da
alvorada. (…) A emancipação começa com o amadurecimento individual, o
inconformismo com certas situações, o consenso em um ideal e a mobilização
geral.”
Dez anos
depois, nas eleições de 2018, o plano de poder estava em pleno andamento: foram
os pastores, apoiados por candidatos da direita, que levaram parte da população
brasileira para as ruas, defende o pastor Ariovaldo Ramos. Aqueles que melhor
souberam surfar a onda do crescimento dos evangélicos foram as siglas de
direita e extrema direita.
Como
parte da apuração para o livro, em 2015, Dip foi assistir a um culto evangélico
no Congresso Nacional, quando Dilma Rousseff (PT) ainda era presidente. “Até
então não sabia que ocorriam cultos evangélicos nesse espaço. O Eduardo Cunha
estava lá orando, com a Bíblia na mão. Ali eu percebi que havia um projeto de
poder se desenvolvendo.” Entre os valores evangélicos e os da direita, nasceu a
esteira necessária para o desenvolvimento desse projeto de poder.
O pastor
Ariovaldo Ramos relata a participação de evangélicos na política partidária
desde o fim da ditadura militar. As Igrejas Evangélicas, no entanto, tendiam a
se manter distantes da lógica partidária. “Nunca passou pela lógica evangélica
assumir o poder, influenciar na política. Até porque a fé protestante é a que
mais atuou na construção do Estado laico, justamente porque é um cristianismo
tardio, que vai ser perseguido, na Cortina de Ferro e, depois, no mundo
islâmico”, afirma.
A lógica,
entretanto, passou a entender que “era preciso estar no poder para garantir o
avanço da fé, principalmente por causa das perseguições”. Com a chegada da
Teologia da Prosperidade, explica Ramos, a mudança seria inevitável. Agora, “se
você foi eleito por Deus, você tem prosperidade econômica. Aí virou a coluna
que você vê na mensagem da Universal e de todas as neopentecostais. Isso é o ovo da serpente, criou um ambiente que nós
temos hoje”.
“Os
cristãos precisam despertar ao toque da alvorada", afirma Edir Macedo, no
livro, "Plano de Poder" (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Por que o
número de evangélicos cresce tanto?
De acordo
com Marcos Fernandes, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP)
e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, para entender o
que levou o número de evangélicos a aumentar tanto é necessário estudar as
mudanças ocorridas na sociedade brasileira nas três últimas décadas ligadas à
precarização da vida da classe trabalhadora.
“Diante
disso, o que as igrejas oferecem para as pessoas? Primeiro, a possibilidade de
pertencer a uma comunidade. As Igrejas funcionam como um centro cultural nas
periferias. Se um jovem quer aprender a tocar algum instrumento, por exemplo,
vai para a Igreja Universal do Reino de Deus”, que, atualmente, têm cerca de 15
programas sociais destinados aos fiéis. De acordo com dados oficiais da Igreja,
de 2018, cerca de 10,8 milhões de pessoas foram alcançadas por esses programas.
Outra
constatação listada pelo pesquisador é o acolhimento emocional que esses
espaços promovem. De acordo com um estudo feito pela Associação Nacional de
Medicina do Trabalho (ANAMT), em 2017, os transtornos mentais estão entre as
maiores causas de afastamento do trabalho.
“Onde
esses trabalhadores vão procurar alívio? Na Igreja. E, de fato, elas melhoram
de depressão, ansiedade. Quem cura o alcoolismo hoje nas classes populares são
as Igrejas”, afirma Fernandes. Da mesma maneira, “é onde vão achar também um
alívio material, mesmo que seja uma cesta básica alimentar no fim do
mês”.
Para
Fernandes, as instituições religiosas evangélicas acabam, desse modo, por
organizar a vida em sociedade, principalmente em espaços onde o Estado não
chega, como nas periferias.
“A mulher
negra que está na periferia não tem acesso à cultura, saúde e educação. Aí a
Igreja traz saúde, cultura e educação.
Ao passo
que a religião evangélica se expande pelo país, o catolicismo perde espaço.
Ainda de
acordo com o Datafolha, os católicos ainda são 50% da população, mas em 1980
eram 90%. A diferença, segundo Fernandes, se explica pela melhor penetração das
igrejas evangélicas entre a classe trabalhadora, com um discurso e um formato
mais próximo da realidade do que a Igreja Católica.
Para se
ter uma ideia, apenas na década de 1960 a Igreja Católica deixou de pregar a
missa em latim e de costas para os fiéis. Do outro lado, os evangélicos
espalham a narrativa por meio da música, dos canais de rádio e TV e nas pequenas casas que transformam
em templo, em todas as periferias.
A
educadora social evangélica Rachel Daniel, de 24 anos, diz que a Igreja
Evangélica acolhe as pessoas “de uma forma perfeita”. “Você é abraçado, se
sente acolhido, as pessoas estão preocupadas se você tem o que comer em casa,
sobre a sua saúde, te ligam no seu aniversário”, afirma.
“A mulher
negra que está na periferia não tem acesso à cultura, saúde e educação. Aí a
Igreja traz saúde, cultura e educação. O filho aprende a tocar um instrumento,
faz teatro. Ela consegue ir ao médico, consegue os remédios. A Igreja tem um
pré-vestibular comunitário. Tudo o que o Estado não traz, a Igreja traz.”
A maioria
evangélica é feminina, negra e de baixa renda, segundo o Datafolha (Foto:
Rovena Rosa/Agência Brasil)
Esquerda
não fez a lição de casa
“A
esquerda não ouviu Paulo Freire, não foi ensinar o sujeito a escrever a partir
do tijolo, da argamassa, que é o que Paulo Freire ensinava sobre a educação
libertadora. A base ficou solta e foi virando religiosa”, argumenta Ariovaldo
Ramos.
Para o
pastor, o erro da esquerda é esquecer que “abaixo da linha do Equador nós todos
somos religiosos". "Todo mundo fala ‘Graças a Deus’. Pensar que todo
mundo, à medida que for ganhando a sua de dignidade econômica vai deixar a
religião é imaginário. A fé é uma coisa mais profunda do que isso, é um jeito
de se enxergar na vida.”
Política
é afeto, é relação, e a religião também. A esquerda deixou de fazer isso e a
direita usou esses pastores
Ramos
alerta que, enquanto a esquerda não tratar da dignificação da mulher e do homem
negro, seguirá perdendo votos para qualquer movimento que “empreste aos pobres,
aos negros e aos miseráveis senso de dignidade, que não tem a ver com a grana
que ele tem no bolso, porque ele vai colocar água no feijão de qualquer jeito.
O que ele não vai aceitar é ser tratado como escravo”.
“Não dá
para chegar na senhora de 90 anos que vai na minha Igreja e falar assim: eu sei
que o pastor te levou no médico quando você precisou, conversou com você quando
você precisava, visitou o seu filho na prisão, mas ele está errado, vota na
outra pessoa. Porque é construção de afeto. Política é afeto, é relação, e a
religião também. A esquerda deixou de fazer isso e a direita usou esses
pastores”, sentencia a educadora evangélica Rachel Daniel.
Edição:
Rodrigo Chagas