Em novos
diálogos da Vaza Jato, o procurador Carlos Fernando Lima, parceiro de Deltan
Dallagnol, admitiu aos colegas que usava a imprensa para forjar um ambiente
hostil aos investigados e, com isso, conseguir delações por meio de manipulação
— o que interfere em seu caráter voluntário
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Ex-procurador da Lava Jato, que mandou ir na 'jugular' de Lula usando Marisa, ataca The Intercept (Foto: GISELE PIMENTA) |
Do Blog da Cidadania, a partir de
reportagem do Intercept – Procuradores
da força-tarefa da Lava Jato usaram vazamentos com o objetivo de manipular
suspeitos, fazendo-os acreditar que sua denúncia era inevitável, mesmo quando
não era. O intuito, eles disseram explicitamente em chats do Telegram, era
intimidar seus alvos para que eles fizessem delações.
Além de ética
questionável, esse tipo de vazamento prova que o coordenador da Lava Jato,
Deltan Dallagnol, mentiu ao público ao negar
categoricamente que agentes públicos passassem informações da
operação. Dallagnol participou de grupos nos quais os vazamentos foram
planejados, discutidos e realizados. Em um deles, o próprio coordenador efetuou
o tipo exato de vazamento que ele negou publicamente que partisse da
força-tarefa.
Um exemplo ilustrativo desse método
ocorreu relativamente cedo nas operações. Em 21 de junho de 2015, o procurador
da Lava Jato Orlando Martello enviou a seguinte pergunta ao colega Carlos
Fernando Santos Lima, no grupo FT MPF Curitiba 2, que reúne membros da
força-tarefa: “qual foi a estratégia de revelar os próximos passos na
Eletrobrás etc?”. Santos Lima disse não saber do que Martello estava falando,
mas, com escancarada franqueza, afirmou: “meus vazamentos objetivam sempre
fazer com que pensem que as investigações são inevitáveis e incentivar a colaboração.”
Pela lei das organizações criminosas (que
estipulou regras para as delações premiadas), o acordo só pode ser aceito caso
a pessoa tenha colaborado “efetiva e voluntariamente”. Mas o procurador
confessou aos colegas que usava a imprensa para forjar um ambiente hostil e,
com isso, conseguir delações por meio de manipulação — o que interfere em seu
caráter voluntário.
21
de junho de 2015 – Grupo FT MPF Curitiba 2
Orlando
Martello – 09:03:04 – CF(leaks) qual foi a estratégia de revelar os
próximos passos na Eletrobrás etc?
Santos Lima –
09:12:21 – Nem sei do que está falando, mas meus vazamentos objetivam
sempre fazer com que pensem que as investigações são inevitáveis e incentivar a
colaboração.
Santos Lima –
09:15:37 – Li a notícia do Flores na outra lista. Apenas noticia
requentada.
Santos Lima –
09:18:16 – Aliás, o Moro me disse que vai ter que usar esta semana o
termo do Avancini sobre Angra
Martello –
09:25:33 – CFleaks, não queremos fazer baem Angra e Eletrobrás? Pq
alertou para este fato na coletiva?
Martello –
09:26:00 – Para não perder o costume?
A conversa ocorreu
dois dias depois da 14ª fase da Lava Jato (voltada às
empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez). Os procuradores estavam debatendo
estratégias para conseguir um acordo de delação com Bernardo Freiburghaus,
apontado como operador de propinas da Odebrecht. Freiburghaus escapou da
operação, porque havia se mudado para a Suíça em 2014 e já havia contra ele uma
ordem de prisão preventiva com alerta da Interpol.
No chat, Santos Lima assume, sem qualquer
constrangimento, que vazava informações para a imprensa. Além disso, o seu
próprio comentário, insinua que se tratava de uma prática habitual, dado que
ele se refere aos vazamentos no plural — “meus vazamentos”. E o procurador
afirma com aparente orgulho e convicção que agia assim com objetivos bem
definidos: induzir os suspeitos a agirem de acordo com seus interesses.
É relevante
ressaltar que o comentário do procurador não suscitou qualquer manifestação dos
outros membros da Lava Jato. No decorrer das conversas, os demais membros do
grupo permaneceram calados.
No mesmo dia, Deltan e Orlando anunciaram no
chat terem vazado a informação de que os Estados Unidos iriam ajudar a
investigar Bernardo para repórteres do Estadão, como forma de pressionar o
investigado. Eles estavam antecipando a um jornalista uma movimentação da
investigação. Foi Dallagnol o responsável pelo vazamento, como mostra sua
conversa como o repórter do jornal.
21
de junho de 2015 – Chat privado
Deltan
Dallagnol – 11:43:49 – O operador da Odebrecht era o Bernardo, que está
na Suíça. Os EUA atuarão a nosso pedido, porque as transações passaram pelos EUA.
Já até fizemos um pedido de cooperação pros EUA relacionado aos depósitos
recebidos por PRC. Isso é novidade. Vc tem interesse de publicar isso hoje ou
amanhã,SUPRIMIDO, mantendo meu nome em off? Pode falar fonte no MPF. Na
coletiva, o Igor disse que há difusão vermelha para prendê-lo, e há mesmo. Pode
ser preso em qualquer lugar do mundo. Agora com os EUA em ação, o que é
novidade, vamos ver se conseguimos fazer como caso FIFA com o Bernardo, o que
nos inspirou.
SUPRIMIDO –
11:45:44 – Putz sensacional! !!!! Publico hj!!!!!!!
A conversa prossegue, e o repórter avisa que a matéria sobre
a ajuda dos americanos no caso Odebrecht (que não estava formalizada à época)
seria manchete do Estadão no dia seguinte.
De volta ao grupo FT MPF Curitiba 2, uma conversa entre os
dias 21 e 22 detalha as intenções da força-tarefa em relação a Bernardo:
21
de junho de 2015 – Grupo FT MPF Curitiba 2
Deltan
Dallagnol – 20:33:52 – Amanhã cooperação com EUA pro Bernardo é
manchete do Estadão
Dallagnol –
20:34:00 – Confirmado
Carlos Fernando
dos Santos Lima – 20:55:16 – Tentei ler, mas não deu. Amanhã vejo.
Vamos controlar a mídia de perto. Tenho um espaço na FSP, quem sabe possamos
usar se precisar.
22
de junho de 2015 – Grupo FT MPF Curitiba 2
Deltan
Dallagnol – 01:56:40 – Acho que temos que aditar para bloquear os bens
dele na Suíça
Dallagnol –
01:56:48 – Conta, Imóvel e outros ativos
Dallagnol –
01:57:00 – Ir lá e dizer que ele perderá tudo
Dallagnol –
01:57:20 – Colocar ele de joelhos e oferecer redenção. Não tem como ele
não pegar
No fim das contas,
a estratégia fracassou, e Bernardo Freiburghaus não delatou.
O que faz disso ainda mais relevante é que
Dallagnol tem negado publicamente que os membros da Lava Jato tenham feito
qualquer vazamento. Numa entrevista para a
BBC Brasil, após um discurso que ele proferiu em Harvard, em abril
de 2017, Dallagnol “disse que agentes públicos não vazam informações — a brecha
estaria no acesso inevitável a dados secretos por réus e seus defensores”.
Quando perguntado diretamente se a força-tarefa havia cometido vazamentos, o
procurador respondeu: “Nos casos em que apenas os agentes públicos tinham
acesso aos dados, as informações não vazaram”.
A assessoria de imprensa da Lava Jato
negou que os procuradores tenham vazado informações no caso do Estadão, dizendo
ao Intercept que a força-tarefa “jamais vazou informações sigilosas para a
imprensa, ao contrário do que sugere o questionamento recebido”. Para
justificar essa negativa, a força-tarefa argumenta que uma informação passada à
imprensa deve ser ilegal ou violar uma ordem judicial para ser caracterizada
como “vazamento”. Nesse sentido, a força-tarefa argumenta que o material
enviado por Dallagnol ao Estadão não violou, na sua visão, nem a lei nem ordem
judicial, e que por isso não pode ser considerado vazamento.
Entretanto, essa reportagem não alega nem
sugere que Dallagnol ou Santos Lima tenham cometido o crime de violação do
sigilo funcional ou desobedecido ordens judiciais ao vazar para a imprensa
informações que não eram de conhecimento público. O argumento da reportagem é
que eles fizeram exatamente o que Dallagnol afirmou à BBC que nunca faziam:
vazaram informações privilegiadas sobre as investigações que o público e a
mídia desconheciam para atingir seus objetivos.
Para defender Dallagnol das evidências
claras de que ele mentiu, a força-tarefa está tentando inventar uma nova
definição de “vazamento”, um significado que só considera vazamento o que
envolve uma violação da lei ou de uma ordem judicial. Mas não é isso que a
maioria das pessoas entende como vazamento. Em sua entrevista à BBC Brasil,
Dallagnol não negou que a força-tarefa realizasse vazamentos ilegais: ele negou
que a força-tarefa tenha realizado quaisquer vazamentos: “agentes públicos não
vazam informações”, ele disse, completando: “Nos casos em que apenas os agentes
públicos tinham acesso aos dados, as informações não vazaram”.
A insistência da força-tarefa de que nunca
realizou nenhum vazamento é especialmente bizarra tendo em vista que o próprio
Santos Lima alardeou ter feito exatamente isso, usando a justamente palavra
vazamento: “meus vazamentos objetivam sempre fazer com que pensem que as
investigações são inevitáveis e incentivar a colaboração”, escreveu, o que
demonstra que nem os próprios procuradores entendem a palavra “vazamento” da
forma que eles agora definem. Além disso, em sua conversa com o repórter do
Estadão, Dallagnol descreveu a informação que ele estava enviando, sobre a
proposta de colaboração com os EUA, como “novidade”, e por essa razão insistiu
que a informação que ele enviou só poderia ser publicada “mantendo meu nome em
off”. Se a informação já era pública, como defende a Lava Jato por meio de sua
assessoria, por que pedir off?
Além disso, a própria nota enviada ao
Intercept admite que os procuradores adiantaram uma ação da investigação ao
Estadão – uma informação privilegiada, portanto, ainda que não protegida por
sigilo judicial formalizado. “O único caso mencionado na consulta à
força-tarefa se refere a uma reportagem do Estadão que combinava dados
disponíveis em processos públicos e uma informação nova, igualmente sem sigilo,
sobre possíveis estratégias que se cogitavam adotar no futuro, em relação à
formulação de pedido de cooperação a ser enviado, o que não caracteriza
vazamento”, diz a nota. De fato, a colaboração com a Suíça citada na reportagem
era pública, mas a “informação nova” (o pedido de ajuda aos EUA que foi a
manchete do jornal) não era pública porque nem sequer havia sido formalizada
até a publicação do texto.
Dessa forma, a negativa da força-tarefa de
que os procuradores fizeram exatamente o que Deltan falsamente insistiu que
nunca fizeram — vazar para a mídia informações que não eram de conhecimento
público — é desmentida pelas próprias palavras dos procuradores, conforme
publicadas no chat acima, em que eles mesmos descrevem suas ações como
“vazamentos”. É também desmentida pela insistência de Dallagnol ao repórter que
as informações passadas ao Estadão não fossem atribuídas a ele. É desmentida
ainda pelos repetidos episódios em que os procuradores admitem ter vazado à
mídia informações sobre as investigações, quase sempre usando especificamente a
palavra “vazamentos” que eles agora buscam redefinir. E é desmentida, por fim,
pela nota enviada ao Intercept.
ESSES VAZAMENTOS
NÃO ERAM casos
isolados. Em 2016, procuradores da Lava Jato falavam abertamente sobre o uso de
“vazamento seletivo” para mídia com a intenção de influenciar e manipular um
suposto pedido de liberdade para o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha:
12
de dezembro de 2016 – Grupo Filhos do Januario 1
Carlos Fernando
dos Santos Lima – 18:45:31 – Recebi do russo : Off recebi uma notícia
que não sei se é verdadeira que haveria uma articulação no STF para soltura do
Cunha amanhã
Roberson
Pozzobon – 18:51:49 – Essa info está circulando aqui a PGR tb
Paulo Roberto
Galvão – 18:57:24 – O Stf seria depredado. Não acredito
Athayde Ribeiro
Costa – 18:57:40 –toffi, lewa e gm. nao duvido
Santos Lima –
18:58:37 – É preciso ver quem vai fazer a sessão.
Jerusa Viecilli
– 18:58:39 – Pqp
Santos Lima
–19:00:58 – Alguma chance de soltarmos a notícia da GOL?
Costa –
19:01:35 – vazamento seletivo …
Os
diálogos provam que ele mentiu à BBC. A negativa aconteceu depois de Dallagnol
ter participado de várias conversas nas quais seus colegas de força-tarefa
discutiram explicitamente fazer aquilo que ele negava publicamente. Isto é,
promover vazamentos e usar a mídia para seus próprios interesses. Ironicamente,
o próprio Dallagnol observou à BBC o quão complexa é a tarefa de provar que
houve vazamentos, pois, segundo ele, os envolvidos sempre negam: “É muito
difícil identificar qual é o ponto (de origem do vazamento), porque se você
ouvir essas pessoas, elas vão negar”, afirmou.
As
conversas fazem parte de um pacote de mensagens que o Intercept começou a revelar em 9 de junho —
série conhecida como Vaza Jato. Os arquivos reúnem chats, fotos, áudios e
documentos de procuradores da Lava Jato compartilhados em vários grupos e chats
privados do aplicativo Telegram. A declaração conjunta dos editores do The
Intercept e do Intercept Brasil (clique para ler o texto completo) explica
os critérios editoriais usados para publicar esses materiais.