Nota alerta para a ameaça de
privatização da Atenção Primária e de mudança de rumo na residência em Medicina
da Família
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Rede critica ainda o fato de o Médicos pelo Brasil não prever profissionais nas periferias das grandes cidades, como no programa anterior. / Foto: Rede de Médicos Populares |
No
documento, publicado no último sábado (3), os médicos populares consideram o
programa “contraditório” em vários aspectos, como a questão do vínculo
trabalhista, quando “o mesmo governo pretende retirar da CLT os chamados
‘custos trabalhistas'”.
Também
o consideram restrito, comparado ao Mais Médicos, por suprimir o provimento das
periferias das grandes cidades, ação que estava contemplada no programa Mais
Médicos.
A nota
também questiona a inexistência de “sinalização de aporte de recursos para
reforma e construção de novas unidades básicas de saúde pelo país, bem como
mudanças no marco da formação de especialistas, no caso tendo como principal
modelo a residência médica”.
Outro
alerta que faz o texto é sobre a privatização da Atenção Primária à Saúde. A
Medida Provisória institui a “Agência para o Desenvolvimento da Atenção
Primária à Saúde (Adaps)”, que terá plenos poderes para firmar “contratos de
prestação de serviços com pessoas físicas ou jurídicas".
O
último ponto destaca a preocupação do “desmonte" da residência em Medicina
de Família e Comunidade. “O novo modelo formativo pode ter inclusive a tutoria
de médicos com residência em Clínica Médica. Como garantir que os princípios da
Medicina de Família e Comunidade, aliados a um compromisso com práticas
populares, com enfrentamento dos determinantes sociais da doença sejam
ensinados por médicos com formação estritamente hospitalar e sem vivência comunitária?”,
questiona o conteúdo.
Leia
abaixo íntegra do documento:
Nota da Rede Nacional de
Médicas e Médicos Populares sobre a proposta do Programa Médicos pelo Brasil
Baseados na cerimônia de
apresentação do Programa Médicos pelo Brasil, no dia 01 de agosto de 2019, na
Apresentação do Secretário de Atenção Primária do Ministério – Erno Harzheim –
e na Medida Provisória nº 890, de 01 de agosto de 2019, a Rede de Médicas e
Médicos Populares vem a público trazer algumas considerações:
1. O desmonte das políticas
sociais no governo Bolsonaro
Para uma análise detida de
qualquer política de saúde se faz necessário entender o contexto na qual surge,
e o vetor geral das políticas sociais adotadas pelo Governo de plantão, no caso
brasileiro, como este interpreta ou não a Constituição de 1988.
Desta forma, antes de tecer
quaisquer comentários mais específicos sobre o Programa Médicos pelo Brasil,
recém-lançado pelo governo Bolsonaro, é importante deixar evidente que este é o
mesmo governo que vem atacando as políticas sociais garantidas na Carta Magna
com uma voracidade sem precedentes. O ataque ao ensino laico, público e
gratuito, em forma de asfixia financeira das Universidades Federais; as
políticas de meio ambiente que estão sendo absolutamente desmontadas permitindo
o avanço desmesurado do desmatamento na amazônia; o desmonte das políticas
afirmativas raciais e de proteção à população LGBTQI; os cortes sucessivos dos
orçamentos da Educação, Ciência e Teconologia; as políticas de Saúde mental que
retomam a agenda do encarceramento em massa e o estímulo à reconstrução de
Manicômios; o entreguismo da capacidade produtiva nacional com a venda dos
campos do pré-sal a preços irrisórios e, mais fundamentalmente, o ataque mais
severo aos direitos dos trabalhadores com a Reforma da Previdência.
É neste contexto de políticas
sociais que se situa o novo programa lançado pelo governo na área da saúde e,
desta forma, ele não pode ser compreendido como um raio no céu azul. O mesmo
governo que acena para um vínculo CLT hoje para os médicos, é o governo que
está preparando a mais severa reforma trabalhista com a “carteira verde e
amarela”, que pretende retirar da CLT os chamados “custos trabalhistas”, que
para os trabalhadores nada mais são do que a proteção mínima e civilizatória
que este regime ainda garante.
Por fim, se faz importante
lembrar das palavras do próprio Secretário Erno Harzheim no último Congresso
Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade: “Estamos aqui para implementar
um Sistema de Saúde liberal. O SUS não tem que ser para todos, mas apenas para
aqueles que não conseguem proteger a si próprios. Quem quiser discutir
universalidade, volte para a década de 20”. É esta a tese que embala o programa
que doravante discutiremos.
2. Apesar da nova roupagem,
novo programa reconhece êxitos do Programa Mais Médicos, porém restrito ao
provimento
Apesar das críticas do atual
Governo ao Programa Mais Médicos, considerado em seu discurso como
“improvisação”, o Programa Médicos pelo Brasil funcionará concomitante à
manutenção das atividades de ensino e extensão e integração ensino-serviço que
embasam o funcionamento do Mais Médicos, utilizando vários itens do programa, a
exemplo da vinculação com bolsa mais INSS e isenção de Imposto de Renda. Além
disso, propaga que utilizaria novos critérios para definir municípios
prioritários, não considerando as diversas evidências científicas de que o
Programa Mais Médicos alcançou regiões de extrema vulnerabilidade.
O Mais Médicos foi uma das
raras ocasiões de nossa história em que a totalidade dos Distritos Sanitários
Indígenas (DSEI) foram plenamente providos de profissionais médicos de forma
simultânea e contínua. Os mesmos critérios do IBGE e da OCDE utilizados para
dimensionar setores sociais em remota, semi-remota, rural e metropolitana
utilizados no Médicos pelo Brasil foram utilizados na estrutura de alocação de
médicos do Programa Mais Médicos, sendo que no caso da proposta anterior havia
uma maior complexificação nesta distribuição se considerando a diversidade
regional de nosso país e uma construção da proposta mais compartilhada com a
Frente Nacional de Prefeitos e com o Conselho Nacional de Secretários
Municipais de Saúde, que são aqueles entes federativos responsáveis pela gestão
dos serviços locais de atenção básica em todo o país;
Assim, o Mais Médicos já estava
fortemente presente no que agora se chama de “Brasil Profundo” do semi-árido
nordestino, região amazônica, Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Vale do Ribeira,
Contestado, Pantanal, fronteiras, cerrados e outras localidades consideradas
“remotas e semi-remotas” no país. Contudo não foi ignorado na proposta anterior
que a maior parte da população brasileira vive na periferia das grandes
cidades, que acompanham o mapa da desigualdade das riquezas.
Ao mesmo tempo, as iniciativas
de estruturação física de unidades básicas de saúde e as ações de mudanças na
formação médica estavam contidas na proposta anterior, que eram parte também do
Programa Mais Médicos, parece-nos que foi também abandonada ou colocada em
segundo plano pelo Governo Bolsonaro. Não há nenhuma sinalização de aporte de
recursos para reforma e construção de novas unidades básicas de saúde pelo
país, bem como mudanças no marco da formação de especialistas no país, no caso
tendo como principal modelo a residência médica. Dessa forma, abandonam-se as
ações estruturantes do Programa, que dispôs sobre um novo marco regulatório da
formação médica.
3. Sobre a Agência de
Desenvolvimento da APS – a porta para o Setor Privado na APS do SUS
Na Medida Provisória que institui o Programa Médicos
pelo Brasil, o governo também institui a Agência para o Desenvolvimento da
Atenção Primária à Saúde (ADAPS), numa modalidade de gestão classificada como
“Serviço Social autônomo”, na forma de pessoa jurídica de direito privado, a
qual pode – por exemplo – dispensar processos de licitação de compras públicas.
A criação desta Agência chama
atenção pela abrangência de suas atribuições, que vão muito além da simples
gestão do Programa Médicos pelo Brasil, teoricamente o objeto da Medida
Provisória. Além de executar o próprio programa, a agência poderá ela mesma desenvolver
atividades de ensino e pesquisa, prestar serviços de atenção primária e
articular-se com órgãos e entidades públicas e privadas para o cumprimento de
seus objetivos.
Mais notório ainda é o Parágrafo 1 da Seção VI da
Medida Provisória que diz: “A Adaps poderá firmar
contratos de prestação de serviços com pessoas físicas ou jurídicas, sempre que
considerar ser essa a solução mais econômica para atingir os objetivos
previstos no contrato de gestão, observados os princípios da impessoalidade, da
moralidade e da publicidade.” Como ressaltamos no início desta nota não se pode
perder de vista o contexto político do qual este programa emerge: em nossa
análise é este parágrafo que dará sustentação legal a um projeto que vem sendo
bem gestado pelo Governo e Planos de Saúde privados: a contratação direta dos
planos e operadoras para prestação de serviços de Atenção primária mediante
contrato de gestão com o poder público, neste caso, com a Agência. Ou seja:
transferência direta de recursos públicos para o setor privado, agora numa nova
fronteira e com novos atores. Se antes uma grande parte dos municípios
brasileiros resistiram à ampliação das Organizações Sociais, agora será o
próprio Ministério que poderá contratar as Operadoras de saúde para realizar
atividades-fim que deveriam ser prestadas pelo poder público.
Atentamos ainda para seu
Conselho Deliberativo, que além de membros do Ministério da Saúde, do Conselho
Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional de Secretários
Municipais de Saúde (CONASEMS), apresenta um representante do setor privado no
colegiado, sem mencionar nenhum membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS),
maior instância deliberativa com prerrogativa legal no âmbito do SUS.
Este tipo de dissociação é
fundamental para uma agenda de terceirização de responsabilidades do Estado
pela assistência, entregando a prestação direta de serviços de atenção primária
para planos de saúde, que vem acumulando expertise no campo da APS nos últimos
anos a partir da vinda de muitos médicos de família para o âmbito destas
organizações. Para nós, é muito sintomático trocar um representante do Controle
Social do SUS por um representante do mercado para entender para onde rumará a
política de Atenção Primária Brasileira.
4. O impacto do Programa
Médicos pelo Brasil na Medicina de Família e Comunidade e o desmonte da
Residência Médica
O Governo Bolsonaro aponta para
uma massificação da formação de médicos de família e comunidade no país
mediante uma especialização oferecida a todos que optarem pelo Programa Médicos
pelo Brasil. Essa especialização ocorrerá à distância, ministrado por
instituições de ensino, com apoio de um tutor médico, com carga horária
anunciada de 20 horas teóricas e 40 horas assistenciais, totalizando 60 horas
semanais de ensino-serviço. A cada dois meses, o médico ficará uma semana em
supervisão direta presencial de seu tutor. Ao final de dois anos, o médico
poderá realizar a prova de título para especialista em Medicina de Família e
Comunidade, processo equivalente ao término da Residência Médica, o qual também
permite a titulação. Normalmente, essa mesma titulação só seria possível após
quatro anos de atuação na Atenção Básica, se comprovada proficiência testada
por prova escrita, pontuando especialização na área e tempo na AB. Ou seja,
claramente é um modelo de substituição da formação tradicional e bem
consolidada em serviço, a Residência Médica, por outro modelo, sem a devida
comprovação de qualidade formativa.
Causa-nos estranheza o silêncio
das entidades médicas em relação a essa mudança do modelo de certificação para
a especialidade. Existe um claro conflito de interesses, dados os ganhos
políticos e econômicos de uma certificação em larga escala e regulação de
entrada de novos profissionais através da certificação obrigatória. Este
conflito cria um viés que deve ser melhor debatido com o conjunto da sociedade,
visto a qualidade duvidosa da nova formação de especialistas em MFC.
O processo de certificação
maciça de médicos de família e comunidade via Comissão Nacional de Acreditação
(CNA)-AMB, tendo os participantes o recebimento de proventos acima de R$
10.000,00 leva a um efeito inevitável – o esvaziamento ainda maior de Programas
de Residência em Medicina de Família e Comunidade, que permanecem com
dificuldades de ocupação de vagas. Ao tornar atrativo financeiramente a
carreira profissional com titulação facilitada, sem uma contrapartida
compensatória para os Programas de Residência em MFC, que manterão bolsas
inferiores a esse valor, naturalmente haverá indução ao abandono da residência
enquanto modelo formativo e porta de entrada qualificada da carreira
profissional.
Vários programas de Residência
em Medicina de Família e Comunidade foram criados e ampliados por força do
Programa Mais Médicos. Um dos eixos fundamentais do PMM era qualificar a
formação em MFC através da ampliação das vagas em Residência Médica. O
esperado, após a ampliação das vagas, era conseguir uma taxa de ocupação de
100% e qualificar cada vez mais esses programas em parceria com a SBMFC. A nova
proposta não trata em nenhum momento do compromisso com a residência,
estabelecida como padrão ouro para a formação médica. A SBMFC faz uma defesa
histórica de tornar a residência médica como obrigatória para egressos de
cursos de Medicina, a partir de uma determinada data, sendo que 40% das vagas
de residência médica deveriam ser destinadas à formação de especialistas em
Medicina de Família e Comunidade, como é em outros países. Contudo, esta meta
sempre foi bastante atacada por outras especialidades médicas, pelo CFM e AMB.
E agora se somam a essas forças a banalização da titulação através de um curso
de dois anos, com qualidade duvidosa, driblando a lei ao tentar equiparar sua
carga horária com a Residência. Sem consultar a Comissão Nacional de Residência
Médica e sem manter a mesma potência da supervisão presencial longitudinal e
outros processos de atividades coletivas presenciais entre residentes.
O novo modelo formativo pode
ter inclusive a tutoria de médicos com residência em Clínica Médica. Como
garantir que os princípios da Medicina de Família e Comunidade, aliados a um
compromisso com práticas populares, com enfrentamento dos determinantes sociais
da doença sejam ensinados por médicos com formação estritamente hospitalar e
sem vivência comunitária?
Importante destacar que
processos formativos vazios, sem a construção e o debate democrático
apropriados podem reforçar valores baseados no individualismo, no tecnicismo,
no gerencialismo dos processos de gestão, no autoritarismo enquanto cultura
política e no funcionalismo ou pós-modernismo alienado da compreensão sobre as
relações sociais que determinam a saúde das pessoas. Valores estes que avançam
largamente nos tempos atuais, corroborados inclusive por algumas forças no seio
da Medicina de Família e Comunidade. Precisamos contrapor esses referenciais
através da disputa de idéias, do debate e enfrentamento político, como forma de
alerta aos mais jovens sobre o que está acontecendo e sobre os processos aos
quais estão sujeitos.
Portanto, a Rede Nacional de
Médicas e Médicos Populares vê com preocupação a medida contraditória do
Governo Federal que, com uma mão oferece vínculos CLT para médicos e, com a
outra, desmonta a seguridade social e os direitos trabalhistas e aprofunda o
subfinanciamento crônico e a privatização do Sistema Único de Saúde. Somamo-nos
ainda às entidades representativas que lutam pelo fortalecimento do SUS e da
Atenção Primária à Saúde brasileira através da expansão e qualificação da
residência médica.
Em defesa do direito universal
à Saúde!
Rede Nacional de Médicas e
Médicos Populares
Fonte:
Brasil de Fato