"Pode ter havido injustiças e exagero da parte de
delatores e mesmo de “salvadores da pátria”. Mas o certo é que as más práticas
atingiram o cerne do sistema de poder e levaram o povo à descrença. O governo
atual nasceu desse sentimento e da insegurança pela presença crescente do crime
organizado e da falta de bem-estar, agravada pela crise econômica", aponta
o ex-presidente FHC
247 – "Pode ter havido
injustiças e exagero da parte de delatores e mesmo de “salvadores da pátria”.
Mas o certo é que as más práticas atingiram o cerne do sistema de poder e
levaram o povo à descrença. O governo atual nasceu desse sentimento e da
insegurança pela presença crescente do crime organizado e da falta de
bem-estar, agravada pela crise econômica", aponta o ex-presidente FHC, em
artigo publicado neste domingo. Confira abaixo:
Preencher o vazio político
Por Fernando Henrique Cardoso
No mês passado o PSDB, em
congresso nacional, elegeu nova direção, que terá tarefa pesada: atualizar as
diretrizes e, principalmente, as práticas do partido. Isso no momento em que o
Brasil passa por uma tempestade e requer renovação. Com efeito, na recente
eleição presidencial a marreta cega da História destruiu o que já estava nos
escombros: o sistema político e partidário criado a partir da Constituição de
1988, que com o tempo se foi deformando. O País percebeu que as bases de
sustentação do sistema partidário e eleitoral estavam em decomposição.
Organizações empresariais, partidos e segmentos da sociedade civil chafurdavam
na teia escusa da corrupção para sustentar o poder e obter vantagens.
Pode ter havido injustiças e
exagero da parte de delatores e mesmo de “salvadores da pátria”. Mas o certo é
que as más práticas atingiram o cerne do sistema de poder e levaram o povo à
descrença. O governo atual nasceu desse sentimento e da insegurança pela
presença crescente do crime organizado e da falta de bem-estar, agravada pela
crise econômica. A campanha foi plena de negatividade: não à corrupção, não ao
crime, não ao “sistema”. Mas rala na positividade sobre o que fazer para
construir um sistema político melhor.
Reconhecer esta realidade
implica fazer o mea-culpa da parte que cabe aos políticos do “velho sistema”.
Mais do que isso, reconstruir a crença em mecanismos capazes de reforçar a
democracia e levar o País a um crescimento econômico que propicie bem-estar à
maioria da população. Será possível?
Essa é a tarefa pesada dos que
se dedicam à política e não acreditam que basta o “carisma” ou a mensagem salvadora
de um demagogo. Pior ainda quando a sociedade dispõe dos meios de comunicação
para as pessoas se relacionarem saltando organizações, partidos incluídos. O
“movimento” é desencadeado pelo contágio eventual provocado por uma mensagem
que dispara nas redes. Basta ver a dor de cabeça que a última greve dos
caminhoneiros deu ao governo, que não tinha sindicatos nem partidos com quem
negociar. Não deve ser diferente do que está acontecendo na França com o
movimento dos “coletes amarelos”.
O Estado e o poder do governo,
contudo, não se coadunam com estímulos frequentes, às vezes erráticos, que
partem das redes sociais. Requerem organização e alguma estabilidade para a
implantação de políticas. Daí que, a despeito de as sociedades atuarem “em
redes”, os partidos e o próprio Estado continuem sendo necessários à política.
Não os partidos “como eram antes”, nem sem que haja o reencantamento da
política. Árdua tarefa!
Com que meios preencher o vazio
político e evitar, ao mesmo tempo, o predomínio do mero arbítrio dos poderosos?
Vê-se no dia a dia o desencontro entre setores do governo – os da área
econômica, os com experiência da disciplina e dos valores militares, os
intoxicados por ideologias retrógradas e os que veem conspirações anticristãs,
antiocidentais, etc. E, principalmente, entre o governo e partes da população.
Disso deriva a sensação de que vivemos momentos de crise até mesmo
institucional. Começam a aparecer propostas, umas tresloucadas (é só esperar
e... haverá mais um impeachment, imaginam), outras mais institucionais
(preparemo-nos para o... parlamentarismo), e no meio tempo, aos trancos e
barrancos, a máquina pública anda, mas tão devagar que dá a sensação de estar
quase parando e o País perdendo a corrida global.
Sem trombetear alarmismo e depois
de reconhecerem que falharam, os partidos – em particular o PSDB –, devem pôr
os pés no chão. O caminho mais imediato e disponível para religar o poder aos
eleitores seria mudar a legislação eleitoral e instituir o voto distrital
misto. Há projetos em andamento no Congresso que poderiam ser aprovados antes
das próximas eleições municipais. Esse é o passo viável, por duas razões
fundamentais: cabe aos parlamentares federais tomar a decisão, que não afetará
de imediato o futuro de cada um deles, mas, sim, o dos vereadores, o que
facilita a aprovação. Segundo, no nível municipal é mais visível a teia que
liga os vereadores com os eleitores, mecanismo indispensável para fortalecer os
partidos. Sem tais vínculos a tarefa de governar se confunde com a de formar
coligações ocas. Mais ainda: a experiência mostra que querer resolver tudo de
uma só vez mais desorganiza do que institui novas práticas. Melhor, pois, antes
de falar em parlamentarismo fortalecer os partidos, mudando a circunscrição em
que os representantes disputarão o eleitorado.
Além das medidas já aprovadas
que dificultam a criação de partidos – os quais no geral são mais sopas de
letras do que instituições para orientar o voto do eleitor –, é conveniente
aumentar as exigências doutrinárias para a sua formação. Os partidos, para
sobreviverem, terão de ser capazes de viver “nas redes” e explicitar a que
vieram para além delas. Um partido como o PSDB pode mudar de nome, mas de pouco
adianta se não atualizar seus propósitos e práticas.
Hoje, quando não há mais “muros
de Berlim”, os partidos podem proclamar que o Estado não deve substituir o
mercado e que este não resolve, por si, os problemas da desigualdade. E
deveriam saber que, sem aceitar a diversidade e a regra da maioria, as
ditaduras podem chegar longe na economia. Mas, vivendo como nós nos ares da
liberdade, a troca não vale a pena, mesmo que traga solução rápida do
crescimento e, com ele, a da pobreza: seu custo humano e político é muito alto.
Democracia, crescimento,
emprego, inclusão social e segurança são os temas a serem enfrentados. Se um
partido sozinho não consegue transformar esses ideais em políticas públicas,
que faça alianças e crie força formando parte de um centro progressista que
aponte ao eleitorado o rumo do futuro.