O professor Pedro Mara vive sob ameaça dos assassinos de
Marielle Franco, do senador Flávio Bolsonaro e da Secretaria de Educação do Rio
de Janeiro, que abriu processo contra ele alegando "abandono de
função" por ele ter ficado 15 dias escondido depois que se tornou público
o fato de que ele tinha sua vida investigada por Ronnie Lessa. Numa longa carta,
ele relata os detalhes da perseguição de que é vítima - leia a íntegra
247 - O
professor Pedro Mara vive sob ameaça dos assassinos de Marielle Franco, do
senador Flávio Bolsonaro e da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, que
abriu processo contra ele alegando "abandono de função" por ele ter
ficado 15 dias escondido depois que se tornou público o fato de que ele tinha
sua vida investigada por Ronnie Lessa. Numa longa carta, publicada
originalmente pelo Intercept, ele relata os detalhes da perseguição de que é
vítima.
Leia a íntegra:
Em
14 de março, quando se completou um ano do assassinato da Marielle, eu fui
informado pela mídia que o meu nome estava na lista dos pesquisados por Ronnie
Lessa, o assassino da vereadora. Enquanto todo o mundo se perguntava quem mandou
matar Marielle, eu me fazia a pergunta "por que meu nome está nessa
lista?"
Foi
um fato assustador por natureza descobrir que seu nome está em uma lista da
organização criminosa mais sofisticada do Rio de Janeiro. Foi pior ainda
descobrir que poucas pessoas tiveram sua vida, em maior ou menor grau,
vasculhadas por Lessa. A periculosidade da organização não diminuiu com a
prisão dos assassinos, tem muitos milicianos ainda soltos.
Na
véspera, eu estava trabalhando, me despedi da escola e das pessoas que eu
gosto. No outro dia eu volto para o trabalho e, de repente, estou na lista de
uma organização criminosa. Tinha de deixar o estado urgentemente. De
sexta-feira para o domingo, não pude sair de casa, com medo do que pudesse
acontecer e de eventuais ações. Os volumes das notícias também me deixavam
vulnerável frente às pessoas que acompanhavam o noticiário: não tinha mais
garantias de que não iam me agredir na rua.
E eu
não faço ideia da razão de aparecer nessa lista do Lessa, mas o relatório da
Polícia Civil é muito claro. Quando faz a referência a mim, fala: "O
professor Pedro Mara, diretor do CIEP 210, em Belford Roxo, que teve atrito, na
época, com o deputado estadual Flávio Bolsonaro". Isso é o que está
escrito no inquérito. Se foi o Flávio que mandou, se não foi o Flávio que
mandou, não sei.
Tenho
uma história imensa de luta na educação do Rio de Janeiro. Eu fiz parte do
movimento estudantil, sou professor, fui comandante de greve, fui de sindicato.
Só que a minha militância inteira foi no campo da educação. E só no campo da
educação. Nunca militei em nada que não fosse isso. Nunca mexi com interesses
econômicos de milicianos, nunca denunciei excesso das polícias na comunidade.
Eu nunca fui líder comunitário.
Desde
o dia que descobri, naquela quinta-feira, fiquei em casa até o domingo, e
apenas na segunda tomamos providências administrativas. Após fazer reuniões,
criamos um protocolo de segurança, feito pela OAB, a Comissão de Direitos
Humanos da Alerj e o Sepe-RJ. Nesse protocolo, eu teria que me afastar do Rio
de Janeiro. Tive que ir para outro lugar, longe das pessoas que eu gosto,
totalmente desamparado.
O
secretário de educação do estado do Rio, Pedro Fernandes, foi comunicado pelo
presidente da Comissão de Educação, Flávio Serafini, da necessidade do meu
afastamento, e foi pedido um prazo de afastamento de duas semanas para tomarmos
medidas avaliativas. Mas, surpreendentemente, apesar de ter ciência do que
estava acontecendo, o secretário optou por aceitar um processo de exoneração e
deu início a ele em tempo recorde.
O
processo teve início no dia 25, mas recebi a notificação oficial apenas no dia
29 de março. Descobri primeiro pela mídia. Estou sofrendo um processo de
exoneração por ter faltado duas semanas de aula na qual estava cumprindo um
protocolo de segurança. O que você justifica para exonerar um servidor por
faltas é se ele teve a intenção de faltar. Eu não estou afastado para tirar
férias e, sim, porque corro risco de vida e informei a secretaria sobre a minha
situação. Eu tenho riscos reais: não foi uma ameaça de uma ligação anônima, foi
um inquérito da Polícia Civil que constatou que meu nome era procurado por uma
organização de milicianos. De uma hora para a outra, apareci no meio do crime
mais sofisticado do Brasil nas últimas décadas.
Hoje, estou
formalmente afastado da escola e sem receber salário porque, quando a
secretaria entra com um processo de exoneração, seu salário é bloqueado
automaticamente. Como exonerar um professor, um diretor, que teve que sair do
estado por conta de ameaça de vida? O dinheiro já era curto com o salário de
professor. Sem ele, é uma situação desesperadora. Tive de sair do Rio às
pressas, alugar um apartamento fora do estado e depois tive de retornar para me
defender, quebrando o protocolo de segurança.
E já
percebo a hostilidade na rua. No domingo, saí de casa para ir à feira e parei
para falar ao telefone com uma amiga, e observei que uma mulher xingava, mas
pensei que ela estava reclamando de outras pessoas que estavam passando. Quando
me dei conta, estávamos só nós dois na quadra, e a senhora xingando. Ela
continuou caminhando e olhando pra mim, me encarando e me insultando. Quando
ouvi algumas palavras como “maconheiro, veado”, e outras coisas assim, pensei,
é comigo.
Mas
a perseguição da Secretaria de Educação não é de agora. Conheci o clã Bolsonaro
em 2017, em uma audiência pública sobre o Escola sem Partido, na Câmara
Municipal de Niterói, na Semana de Niterói. Na época, eu era professor e já
tinha sido eleito diretor de escola. Havia uma divergência moral entre nós, os
professores de escola pública, e a família Bolsonaro, porque do lado de lá,
eles nunca botaram um filho em escola pública, falam de problemas que são
inexistentes, criam um pânico moral, se estruturam em cima de fake news.
Enquanto isso, as escolas públicas seguem caindo, com falta de professores, sem
estrutura adequada, com turmas e escolas sendo fechadas. De um lado estava quem
defende a escola pública e gratuita de qualidade e, do outro, quem está
querendo destruir, usando os argumentos mais absurdos possíveis, como é o caso
do clã Bolsonaro.
Em
julho de 2017, após essa audiência pública, o hoje senador Flávio Bolsonaro
abriu processo judicial e administrativo com algumas calúnias contra mim. Foi
aberta uma sindicância na Secretaria de Educação e teve um processo no
Ministério Público. Nesse processo, no qual ele me acusava de fazer apologia às
drogas na sala de aula, ocorreu até outubro, e o próprio Ministério Público
mandou arquivar a ação, por falta de provas.
Mas
não houve apenas a sindicância sobre a apologia às drogas: também abriram, na
Secretaria da Educação, uma sindicância para investigar insubordinação contra a
antiga diretora, que havia perdido a eleição para mim, e também investigava o
descumprimento de regras em geral, se havia lançamento de notas, se os diários
estavam corretos. Após três investigações em uma só, nós também vencemos. Esse
foi o primeiro indício de perseguição.
Além
das sindicâncias, após minha chapa vencer a eleição para o cargo de diretor, a
secretaria tentou impugná-la, alegando que os outros dois integrantes
praticavam nepotismo por terem um grau de parentesco. Mas a Secretária de
Educação havia homologado a candidatura, e só encontrou problema depois que
vencemos a eleição.
No
início deste ano, tentaram fechar cinco turmas na nossa escola, mesmo com uma
evasão baixíssima, e ignorando todos os novos estudantes. Denunciei os cortes
de vagas e a dificuldade de se fazer a matrícula, e o RJ2 fez uma reportagem
sobre o assunto. Quando se começa a incomodar, surgem reprimendas. Da segunda
semana letiva em diante, praticamente todos os dias, um fiscal da secretaria
visitou minha escola para ver o que estava acontecendo, verificar se as aulas
estavam ocorrendo, procurar algum problema de merenda, ver se havia alguma
irregularidade.
Esse
processo de exoneração por abandono de cargo prova ainda mais a perseguição que
venho sofrendo. Eu fui investigado pelo assassino da Marielle. Tive que sair do
estado por segurança. Hoje estou sem salário. Estou numa situação difícil
financeiramente, emocionalmente e funcionalmente. Preciso do auxílio de amigos,
desenvolvi depressão, e o governo não tem nenhuma sensibilidade com a situação.
Além
de tudo, eu ainda tenho que respeitar o protocolo de segurança. É assustador
quando você descobre que seus momentos de vida, até os mais triviais, estão na
mão de uma organização criminosa. Isso é muito violento.
Eu
tentei durante esses anos todos me desvencilhar e achar que o episódio com o
clã Bolsonaro tinha sido um detalhe da vida. Em 2017, apesar de alguns ataques,
não fiquei com tanto medo. Eram ataques pontuais de pessoas na rua, que
acreditaram na mentira. Registramos as ameaças na Comissão de Direitos Humanos
com o deputado Marcelo Freixo e voltei a trabalhar, porque definiram que não
tinha nenhum risco maior à época. Apesar de ser difícil ver a sua biografia e a
sua trajetória profissional caluniadas, dilaceradas por uma mentira que foi
inventada, naquela época a vida seguiu.
Hoje,
não dá para dizer que foi um detalhe. Quando as pessoas me encontravam e diziam
"você é aquele que teve um problema com Bolsonaro", eu explicava que
o episódio era apenas uma parte do processo. Minha militância nunca tinha sido
definida por esse episódio. Hoje, não. Hoje é diferente, porque toda minha vida
mudou por causa disso.
Esse
processo me levou a ter medo. O governo, que a gente espera que nos proteja,
que nos ampare, que nos dê segurança, de repente, ignora todos os fatos que são
de conhecimento do Brasil inteiro, e abre um processo que pode me levar à
exoneração. A Sepe-RJ, a OAB, e os responsáveis pelo meu protocolo de segurança
chegaram a enviar uma notificação a ONU explicando a situação e pedindo a
suspensão dos processos.
Eu
gostaria de ver uma atitude do governador do estado para tentar barrar esse
processo. Eu gostaria que o secretário de educação demonstrasse que compreende
seus servidores, que os protege em vez de os perseguir.