Dezenas de fotógrafos se unem para organizar leilão de
imagens do ex-presidente, captadas desde o final dos anos 1970. Evento será no
dia 3 de abril, com participação presencial e online; leia reportagem da Rede
Brasil Atual
Por Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual – Era noite de
sábado, 19 de abril de 1975, no centro de convenções da prefeitura de São
Bernardo do Campo, no ABC paulista. Diante de 5 mil pessoas – incluindo o
governador, Paulo Egidio Martins –, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo e Diadema, Paulo Vidal, transmite o cargo ao sucessor, ainda no
período da ditadura. A posse coincidia com o período do feriado de Tiradentes,
patrono dos metalúrgicos. Pouco conhecido, o novo presidente integrava a
diretoria desde 1972. Tinha 29 anos – completaria 30 em outubro – e era um
torneiro-mecânico da Villares. Viúvo, havia casado novamente em 1974, com
Marisa Letícia, também viúva. Nessa época, usava apenas bigode, ainda sem a
barba que se tornaria característica.
Luiz Inácio da Silva, o Lula, encabeçava a chapa
única das eleições daquele ano, vitoriosa com 97,5% dos válidos, ou pouco mais
de 14 mil votos. Receberia 52,7 milhões em 2002 e 58,3 milhões em 2006, eleito
e reeleito presidente da República. Esses 40 anos de história serão resumidos
em 50 imagens, que irão a leilão no próximo dia 3, a partir das 19h, em um bar
da Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, que pode ter participação online, além de presencial. (Confira,
ao final do texto, vídeo com todas as fotografias.). Dezenas de
fotógrafos, de diferentes vivências e com olhares sensíveis, cederam as 50
imagens, em preto e branco.
Todas as fotografias foram autografadas pelo
ex-presidente em sua cela na Superintendência da Polícia Federal no Paraná –
Lula está preso em Curitiba desde 7 de abril do ano passado. As fotos foram
levadas para lá em três lotes. A maior parte foi assinada nos dias de Natal e
ano-novo. O último chegou à capital paranaense na semana da morte de um de seus
irmãos, Genival Inácio da Silva, o Vavá, cujos
velório e enterro Lula não conseguiu presenciar.
Os profissionais da imagem também assinam suas
obras. As fotos cobrem um período amplo: começa na redemocratização brasileira,
com os célebres flagrantes de assembleias no estádio de Vila Euclides, hoje com
o nome 1º de Maio, em São Bernardo. Contam um pouco da história dos movimentos
sociais, mostram encontros com personagens como Dom Paulo Evaristo Arns, Barack
Obama, Fidel Castro, Leonel Brizola e José (Pepe) Mujica, as eleições
presidenciais e os governos protagonizados por Lula.
Mostram, inclusive, momentos de intimidade, como a
de um Lula despenteado, camisa meio aberta e descalço, ao lado de Marisa, em
1983. Ou engraçados: em um festival da juventude na Bahia, em 2017, perto dos
72 anos, ele mostrou jovialidade – e agilidade – e não teve dúvida em entrar na
roda e dançar ao ritmo de Sarrada no Ar (Passinho do Romano), de Mc Crash, um clique
inesquecível de Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial de Lula.
E, claro, estão ali as imagens de 7 de abril de
2018, o sábado em que Lula se entregou à Polícia Federal, após extensas e
tensas negociações. Correu mundo a foto em que o ex-presidente é carregado pela
multidão, no curto trajeto do caminhão de som até a entrada do Sindicato dos
Metalúrgicos.
Para a história
O gaúcho Paulo Pinto, que veio para São Paulo no
final dos anos 1980, conta que viveu naquele dia um de seus momentos de
maior emoção, pessoal e profissional. "Gravei em vários HDs. É uma imagem
que não pode ser perdida." Um instante que não chegou a dois minutos e
meio, segundo sua cronometragem, mas que será falado "daqui a 50, 100
anos".
Hoje com 39 anos de profissão, Paulo lembra que
tinha ido à sede do sindicato no dia anterior, véspera de um ato ecumênico que
seria celebrado na rua, diante da entidade, já sob a expectativa de
"rendição" à PF. "Desci para o primeiro andar, tinha uma janela
que me dava a dimensão exata de onde seria a missa. A minha ideia era ficar no
mesmo nível", recorda o fotógrafo, que no sábado chegou às 7h e, na hora
do ato, posicionou-se no lugar escolhido previamente. Trocou a lente 70/200 por
um grande angular e se preparou.
"Eu tinha a consciência de que aquela imagem
era uma coisa histórica. Foi muito emocionante, o pessoal aplaudindo e chorando,
gritando 'não se entrega'", lembra Paulo. "Fui dosando, foi clique a
clique, pensando na história."
Uma das organizadores do leilão, Mônica Zarattini
conta que a preocupação era garantir "imagens históricas, icônicas ou
inusitadas". Ela participa com duas, com intervalo de 12 anos: na primeira
eleição para presidente após a ditadura, em 1989, Lula beija a cédula – ainda
não havia urna eletrônica, e a contagem era no papel. Ali, ele perdeu no
segundo turno, para Fernando Collor. A outra mostra o petista sorridente,
subindo a rampa do Palácio do Planalto, no dia de sua posse como presidente da
República, em 2003.
Mônica começou a fotografar em 1981, ainda
estudante, e acompanhou muitos dos passos de Lula como dirigente sindical. Teve
foto de um ato sobre a anistia publicada no jornal Tribuna Metalúrgica. Em 1988, entrou na Agência Estado,
pela qual cobriu a eleição do ano seguinte. Paulistana, tem formação em
História, e leva essa perspectiva para o trabalho profissional.
"No momento que a gente está fotografando, tem
muita preocupação técnica, de um bom enquadramento, a leitura da luz, se está
tudo correto... Agora, quando se trata de Lula, você tem uma carga de emoção
muito grande, pelo carisma que esse homem tem", conta. "Obviamente,
como historiadora, sei do papel que eu estava cumprindo naquele dia, em 1989 e
2003. Era o papel de estar registrando um momento histórico. Além de ter uma
estética boa, sempre pensei nisso, esse momento histórico tinha que ser
captado."
Pela democracia
Ela lembra que em 2016, ano do impeachment de Dilma
Rousseff, organizou-se um grupo, Fotógrafos contra o Golpe, que se mobilizou
contra a posse de Michel Temer, com direitos a manifestações como o Varal da
Resistência, com fotografias penduradas na Avenida Paulista. No ano passado,
surgiram os Fotógrafos pela Democracia. "Nosso intuito é dar visibilidade
à campanha pela libertação de Lula, preso sem provas", afirma o
grupo.
Roberto Parizotti tinha quase 20 anos quando Luiz
Inácio tornou-se presidente do Sindicato dos Metalúrgicos pela primeira vez. O
próprio Lula acostumou-se a chamá-lo pelo apelido de Sapão. Militante desde a
adolescência, como conta, distribuía jornais na periferia, vendia sanduíche
natural e "era rato de teatro, cinema e biblioteca". Jovem, morava
perto do Teatro Municipal de Santo André. "Isso me propiciou ver ciclos de
cinema", conta Parizotti/Sapão, citando vários autores e diretores.
A imagem, o olhar, sempre despertou interesse, e
ele foi fazer um curso no Museu Lasar Segall, em São Paulo. Posteriormente, se
tornaria auxiliar de fotografia. Suas primeiras imagens saíram em publicações
do Sindicato dos Químicos do ABC, em meados dos anos 1980. Reconhecido em todo
o meio sindical – e fora dele –, Sapão hoje trabalha para a CUT. Faz questões
de lembrar de alguns de seus mestres na área jornalística, como Roberto Baraldi
e Júlio de Grammont.
Na foto cedida para o leilão, Lula segura com as
duas mãos uma bandeira do PT. A imagem foi tirada em uma festa na sede da
Associação dos Metalúrgicos Aposentados (AMA), em São Bernardo, ao lado do
sindicato da categoria, durante a campanha eleitoral de 1989. Mas Parizotti
gosta, particularmente, de uma fotografia tirada anos depois, com Lula e a
bandeira brasileira. "Já estava com essa foto na cabeça fazia tempo, e
colei nele. Já sabia que era 'a' foto. Lula mandava fazer de 100 (para
distribuir)." Outro momento marcante da vida profissional foi durante a
greve dos chamados "golas vermelhas" da Ford de São Bernardo, em
1990. Só ali foram 1.200 fotogramas.
Antes da prisão
Dez anos antes, em abril de 1980, Hélio Campos
Mello estava no Sindicato dos Metalúrgicos, trabalhando pela IstoÉ, "então uma revista combativa", como
lembra, que em 1978 já havia colocado Lula na capa, com foto dele e entrevista
para os jornalistas Bernardo Lerer e Mino Carta. Naquele 1980, já com o último
general-presidente, João Figueiredo, no poder, os metalúrgicos estão em greve e
o governo decreta intervenção no sindicato. "Fotógrafos e repórteres
praticamente acampávamos por lá", recorda.
Na foto tirada em 1980, aparece um Lula de boina,
cobrindo-se para deitar em um sofá, sob as vistas dos jornalistas. Ele e outros
sindicalistas seriam presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. O
movimento operário chamou a atenção do mundo – e a imagem de Hélio, tirada dias
antes da prisão, reserva uma curiosidade. "A greve repercutiu internacionalmente
e trouxe para o Brasil jornalistas de vários países, entre eles o fotógrafo
brasileiro Sebastião Salgado, contratado pela revista francesa Actuel, uma mensal dirigida pelo pessoal que teve
participação destacada nos movimentos de maio de 68 na França." Salgado,
que ainda não havia se tornado ícone, tinha 34 anos. Ele aparece sobre a mesa,
em pé, mexendo em seu equipamento.
Outro momento de Lula em 1989 foi acompanhado por
Douglas Mansur: o futuro candidato e o cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom
Paulo Evaristo Arns, encontraram-se na Igreja São Domingos, no bairro de
Perdizes. "Eles conversavam muito. Dom Paulo tinha um respeito muito
grande pelo Lula", lembra Douglas, que conhecia muito bem o universo da
religião. "Como fui diácono, seminarista, mesmo antes de ser
repórter-fotográfico eu acompanhava Dom Paulo, ia nas pastorais, na Casa de
Detenção..."
Ele entrou definitivamente para a fotografia em
1987, ao sair da Igreja, mas sempre gostou de tirar imagens. Tinha registro
profissional e era sindicalizado desde 1984. Especializou-se em acompanhar
movimentos sociais – onde há uma atividade, certamente Douglas estará lá. Ele
fez, inclusive, uma mestrado cujo tema era a importância da fotografia na
documentação desses movimentos, tendo como objeto de pesquisa os trabalhadores
sem-terra do Brasil e do Paraguai. Nascido em Timburi, no interior, e com
título de cidadão paulistano, vê a imagem como "um instrumento
pedagógico".
"Grudando" em Lula
Pelo jornal O Estado de S. Paulo,
Luludi havia acompanhado Lula em uma das Caravanas da Cidadania, realizada em
1994. Fotografou o candidato em cima de um ônibus, no interior do Ceará. A
outra imagem que faz parte do leilão é de janeiro de 2002, quando ela já
trabalhava para a revista Época e o
diretor de redação, Paulo Moreira Leite, imaginou uma pauta para aquele ano
eleitoral.
Segundo Luludi, era para "grudar" nos
candidatos. Ele (PML) queria fotos de intimidade", conta a fotógrafa, que
"grudou" no petista. E fez uma imagem de Lula preparando um coelho,
no sítio Los Fubangos, em São Bernardo, às margens da represa Billings. O único
que realmente pertence à família, como observa a profissional. O avental usado
pelo presidente, que acabou virando presente, adquirido na Fundação Casa de
Jorge Amado, em Salvador, foi levado pela própria Luludi, para quem Lula, que
conhecia desde 1989, sempre foi tranquilo em relação a fotografias. Ele só se
aborrecia, conta, "se o fotógrafo quisesse dirigir ele".
No caso de Eliária Andrade, 31 anos de profissão, a
sorte ajudou um pouco. Em 21 de março de 2011, Lula recebeu uma premiação no
Clube Sírio Libanês, e participava de um jantar. A cerimônia oficial terminou
depois das 23h. "Como já estava tarde para o fechamento, e o local
reservado para imprensa era a galeria superior e sem iluminação, todos
resolveram sair para transmitir (as fotos)",
lembra a fotógrafa, que trabalhava para O Globo. Como o
jornal fechava mais cedo e o notebook já estava aberto, ela decidiu permanecer
ali mesmo.
"Quando eu estava acabando de transmitir as fotos,
entram algumas pessoas dançando e em volta do Lula, e na sequência colocam o
turbante nele", conta Eliária. "Era quase meia-noite e eu já havia
recebido uma mensagem que o jornal estava fechado. Como achei a foto
interessante, liguei para o jornal, que já estava rodando. Eles cancelaram a
foto anterior e colocaram esta na capa", acrescenta a fotógrafa, que com
essa imagem inusitada acabou fazendo com que sua publicação "furasse"
as concorrentes.
Em 7 de abril de 2018, o acaso acabou propiciando a
Paulo Pinto, então no Imagens Públicas, outra fotografia histórica, embora ele
lamente o desfecho daquele dia. Começando no jornal gaúcho A Plateia, com cinco anos de Diário Popular e 17 de Estadão, coberturas de Copa do Mundo e Olimpíadas e
inúmeros acontecimentos políticos no Brasil, ele já sabia que tinha feito uma
imagem histórica. "Essa foto só vai ser superada quando ele sair (da
prisão). Espero estar junto."