Barracas no quintal, varanda que vira cozinha comunitária, banheiro público.
Para moradores, compartilhar a casa com pessoas da vigília foi festa. E
idealismo de fazer alguma diferença pelo Brasil
Regiane e a mãe Marililda: "Fiquei de boca aberta de saber o trabalho desse pessoal. Aqui tem professora, jornalista, metalúrgico. É a união. Eles estão lutando, por todo o Brasil, por todo o povo". |
Curitiba – “Se as
pessoas aqui na rua se dessem a mesma chance que eu me dei de conhecer o
trabalho desse povo, de ver a garra, de ver a luta, de ver a solidariedade, a
humanidade que tem, cada pessoa estaria pensando diferente e abrigaria duas ou
três pessoas na sua casa.” Regiane do Carmo Santos, de 53 anos, fez mais
que isso. É dona da casa onde tia Zélia, a famosa cozinheira de Brasília, preferida do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, distribuiu seu famoso boi ralado para centenas de pessoas.
Mas a festa, na casa onde Regiane vive com
a mãe Marililda Bandeira dos Santos, de 74 anos, não foi somente nesse dia. Há
mais de uma semana a residência simples – sala, cozinha, dois quartos e dois
banheiros – está tomada por centenas de pessoas: homens, mulheres, jovens,
idosos, que nesta sexta-feira (20) completam 14 dias de vigília pela libertação de Lula.
Barracas estão montadas pelo quintal, a
varanda virou uma das cozinhas comunitárias que produz refeições para os
acampados. Os dois banheiros da casa se tornaram públicos: valores simbólicos
de R$ 2, e R$ 5 para quem quer tomar banho, são cobrados de quem pode pagar,
para ajudar a cobrir despesas.
Centenas de pessoas circulam diariamente
pelo quintal de Regiane e dona Marililda, mas para elas, não há problema. E
elogiam este “idealismo” para tentar fazer alguma diferença pelo Brasil.
“Eu era absolutamente bitolada, me
informava pela imprensa e tinha uma visão muito limitada do mundo. Até votei no
Lula nas duas primeiras eleições, porque ele é gente do povo como a gente, mas
não tinha partido”, conta Regiane. “Quando comecei a ver esse movimento aqui na
vila, na rua, chegando os ônibus e descendo gente do MST, o povo todo pensando: tão
chegando, pessoal, vão invadir. E desciam as malas. 'Tão armados, tem bomba,
tem isso, tem aquilo' E a gente vai ficando com medo, né? Mas como vou
continuar tendo uma ideia dessa, dessas pessoas se eu não for lá saber como é a
verdade."
Ela conta que "no máximo"
caminhava até a unidade policial próxima à Praça Olga Benário, centro do Acampamento Lula Livre e voltava.
"Uns três dias eu fui assim. Aí falei: então vou me jogar no meio desse
povo pra ver como é que é. Menina, me apaixonei, me encontrei. Tanto é que
minha casa está aberta para todo mundo."
Corrigindo injustiças
Regiane diz ser uma pessoa muito idealista,
que não gosta de injustiça, de ver como está o mundo. “Então pensava comigo: eu
tenho tantas ideias na minha cabeça, tenho tanto idealismo, tenho tanta vontade
de poder fazer alguma coisa por alguém e graças a Deus hoje estou podendo fazer
alguma coisa para todos os meus companheiros... meus irmãos. São minha família.
Eles que me adotaram, não fui eu que adotei eles”, define.
E se emociona ao falar de empatia. “E
eu falo isso, eu choro de emoção de ver o quanto eu fui injusta de ter um
pensamento de ser tão radical. O que estamos precisando é disso, de exemplo.
Independente de partido, nós estamos precisando de humanidade, de respeito, de
se colocar no lugar do próximo. Eu estou muito feliz, pra mim é uma festa.
Minha casa está cheia, é como se fosse um churrasco que convidei toda minha
família e estão em festa!”
Cerca de 400 pessoas passam pela casa,
diariamente. “Se mais espaço eu tivesse, mais eu colocaria”, reforça Regiane.
“Quando eu vejo uma pessoa que não tem lugar pra ficar, como me disse uma
senhora que chegou hoje... se eu pudesse, se tivesse condições, levantava um
prédio e começava a puxar todo mundo: vem, que aqui tem espaço. Já cedi minha
cama para uma pessoa mais idosa dormir, que não tem condição de dormir numa
barraca. Sofrido é, gente. Pra esse povo é sofrido: você dormir embaixo de sol,
de chuva, numa barraca, não ter lugar pra tomar um banho decente, não ter um
banheiro. Mas eu acho incrível a união. Trabalham, se lascam, sofrem, vão
dormir, mas no dia seguinte tá todo mundo assim, ó: alegre, contente, feliz. É
o humanismo, o companheirismo e o idealismo pra tentar fazer alguma diferença
nesse nosso Brasil.”
Não tem nada que desabone
A mãe de Regiane, de início, também teve
receio dos novos "vizinhos". "No começo eu confesso que nós
ficamos com medo, porque boato que se ouvia era terrível. Mas graças a Deus não
tem nada que desabone. Totalmente inverso do que falaram."
Dona Marililda se refere a alguns vizinhos
que até “viraram a cara” para ela e fazem comentários. “Que eu sou louca, onde
é que você está com a cabeça, é tudo vândalo. Não tem vandalismo nenhum. Não se
ouve algazarra, não tem briga, não tem bebedeira. Eles poderiam achar ruim se
eu tivesse aberto as portas para um tráfico de drogas, um ponto de droga, uma
prostituição. Daí eles poderiam falar. Mas não está acontecendo nada, graças a
Deus tudo em paz, não tem nada que desabone, nada.”
Regiane atribui o preconceito à falta de
iniciativa que ela mesma teve, de se aproximar e conhecer o que estão no
acampamento, nessa vigília por Lula livre e pela retomada da democracia.
“Pensam que é vagabundo, mas ninguém vem perguntar. Todos são trabalhadores. O
pessoal do MST são trabalhadores, plantam. Eu fiquei de boca aberta de saber o
trabalho desse pessoal. Aqui tem professora, jornalista, metalúrgico. É a
união. Eles são povo e estão lutando por uma melhora pra todos. E quando eles
conseguirem, todo Brasil vai se beneficiar, não vai ser só a classe deles. Mas
quem está na luta, quem tá aqui sofrendo, são eles. E ninguém se conscientiza
disso, né?”