"A última eleição foi um tsunami que varreu o sistema
político brasileiro. Terminou o ciclo político-eleitoral iniciado depois da
Constituição de 1988. Ruiu graças ao modo como se formaram os partidos, o
sistema de voto e o financiamento das campanhas. A vitória da candidatura
Bolsonaro funcionou como um braço cego da História: acabou de quebrar o que já
estava em decomposição", aponta o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
247 – "A última eleição foi um tsunami que varreu o
sistema político brasileiro. Terminou o ciclo político-eleitoral iniciado
depois da Constituição de 1988. Ruiu graças ao modo como se formaram os
partidos, o sistema de voto e o financiamento das campanhas. A vitória da
candidatura Bolsonaro funcionou como um braço cego da História: acabou de
quebrar o que já estava em decomposição", aponta o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso. Leia, abaixo, seu artigo deste domingo:
Um novo caminho
Por Fernando Henrique Cardoso
A
última eleição foi um tsunami que varreu o sistema político brasileiro.
Terminou o ciclo político-eleitoral iniciado depois da Constituição de 1988.
Ruiu graças ao modo como se formaram os partidos, o sistema de voto e o financiamento
das campanhas. A vitória da candidatura Bolsonaro funcionou como um braço cego
da História: acabou de quebrar o que já estava em decomposição. Há muitos cacos
espalhados e há a necessidade de reconstrução. Ela será feita pelo próximo
governo? É cedo para dizer.
O
sistema político-partidário não ruiu sozinho. As fraturas são maiores. Antes, o
óbvio: a Lava Jato mostrou as bases apodrecidas que sustentavam o poder,
sacudiu a consciência do eleitorado. Qualquer tentativa de reconstruir o que
desabou e de emergir algo novo passa pela autocrítica dos partidos, começando
pelo PT, sem eximir o MDB e tampouco o PSDB e os demais. Na sua maioria, os
"partidos" são sopas de letras, e não agremiações baseadas em
objetivos e valores. Atiraram-se na captura do erário, com maior ou menor gula.
Visto
em retrospectiva, é compreensível que um sistema partidário sem atuação na base
da sociedade se desmonte com aplausos populares. Os mais pobres encontram nas
igrejas evangélicas – e em muito menor proporção na Igreja Católica e em outras
religiões – recursos para se sentirem coesos e integrados. O povo tem a
sensação de que os parlamentos e os partidos não atendem aos seus interesses. O
eleitorado, contudo, não desistiu do voto e imaginou que talvez algo "novo",
inespecífico, poderia regenerar a vida pública.
Não
foi só isso que levou à vitória o novo presidente. Basta conhecer mais de perto
a vida dos mais pobres nas favelas e nas periferias carentes de quase tudo para
perceber que pedaços importantes do território vivem sob o domínio do crime
organizado, violência que não se limita a essas populações, pois alcança partes
significativas da população urbana e rural.
Inútil
imaginar outros motivos para a vitória "da direita". Não foi uma
direita ideológica que recebeu os votos. Estes foram dados mais como repulsa a
um estado de coisas em geral e ao PT em particular. O governo foi parar em mãos
mais conservadoras, e mesmo de segmentos abertamente reacionários, não pelas
propostas ideológicas que fizeram, e sim pelo que eles simbolizaram: a ordem e
a luta contra a corrupção. Não venceu uma ideologia, venceu o sentimento de que
é preciso pôr ordem nas coisas, para estancar a violência e a corrupção e
tentar retornar a algum tipo de coesão social e nacional.
Enganam-se
os que pensam que "o fascismo" venceu. Enganam-se tanto quanto os que
veem o "comunismo" por todos os lados. Essa polarização marcou a
pugna política em outra época de antes da 2.ª Grande Guerra, ao fim da qual foi
substituída pela polarização entre capitalismo liberal e socialismo.
Os
problemas básicos do País continuarão a atazanar o povo e o novo governo. Este
não será julgado nas próximas eleições por sua ideologia
"direitista", mas por sua capacidade, ou não, de retomar o
crescimento, diminuir o desemprego, dar segurança à vida das pessoas, melhorar
as escolas e os hospitais, e assim por diante.
Com
isso não quero justificar a "direita", dizendo que se for capaz de
bem governar vale a pena apoiá-la, mas também não posso endossar a
"esquerda", quando ela deixa de reconhecer seus erros, conclama a
votar contra tudo o que o novo governo propuser, sem considerar o que realmente
conta: quais os efeitos para o bem-estar das pessoas, para o fortalecimento dos
valores democráticos e para a prosperidade do País.
As
mudanças pelas quais passamos, aqui e no mundo, são inúmeras e profundas.
Pode-se mesmo falar numa nova "era", a da conectividade. Se houve
quem escrevesse "cogito ergo sum" (penso, logo existo), como fez
Descartes, se depois houve quem dissesse que o importante é saber que
"sinto, logo existo", em nossa época, sem que essas duas afirmativas
desapareçam, é preciso adicionar: "Estou conectado, logo existo".
Vivemos a era da informática, das comunicações e da inteligência artificial,
que sustentam o processo produtivo e formam redes entre as pessoas.
As
novas tecnologias permitem formas inovadoras de enfrentar os desafios
coletivos, assim como acarretam alguns inconvenientes, como a dificuldade de
gerar empregos, a propagação instantânea das fake news, a formação de ondas de
opinião que mais repetem um sentimento ocasional do que expressam um
compromisso com políticas a serem sustentadas em longo prazo. Elas dependem de
instituições, partidos, parlamentos e burocracias para serem efetivas.
As
questões centrais da vida política não se resumem, no mundo atual, à luta entre
esquerda e direita. No passado o espectro político correspondia a situações de
classe, interpretadas por ideologias claras, assumidas por partidos. Na
sociedade contemporânea, com a facilidade de relacionamento e comunicação entre
as pessoas, os valores e a palavra voltaram a ter peso para mobilizar
politicamente. Isso abre brechas para um novo populismo e uma exacerbação do
personalismo. O desafio está em recriar a democracia. O que chamo de um centro
radical começa por uma mensagem que envolva os interesses e sentimentos das
pessoas. E essa mensagem, para ser contemporânea, não deve estancar num
palavreado "de direita" nem "de esquerda". Deve, a despeito
das divergências de classe que persistem, buscar o interesse comum capaz de
cimentar a sociedade. O País não se unirá com o ódio e a intransigência
cultural existentes em alguns setores do futuro governo.
Há
espaço para propostas que juntem a modernidade ao realismo e, sem extremismos,
abram um caminho para o que é novo na era atual. Esse percurso deve incorporar
a liberdade, especialmente a de as pessoas participarem da deliberação dos
assuntos públicos, e a igualdade de oportunidades que reduzam a pobreza. E há
de ver na solidariedade um valor. Só juntos poderemos mais.