Coordenador do programa de governo de Lula, Fernando Haddad
anunciou que o próximo governo do PT irá atacar com prioridade a concentração
dos meios de comunicação, em confronto direto com a Globo, e a concentração do
sistema bancário brasileiro; mudará o perfil tributário do país, aliviando a
carga sobre os pobres e cobrando dos ricos; revogará a reforma trabalhista e
implementará um ousado programa de crescimento; Haddad deixou claro que Lula é
o candidato do PT e que não há qualquer "plano B"
247 - Coordenador
do programa de governo da candidatura Lula, Fernando Haddad anunciou que o
próximo governo do PT irá atacar com prioridade a concentração dos meios de
comunicação, o que significa um confronto direto com a Globo, e a concentração
do sistema bancário brasileiro. Além disso, mudará o perfil tributário do país,
aliviando a carga sobre os pobres, que são punidos pelo sistema regressivo
atual, e cobrando dos ricos, que pagam pouquíssimo imposto no Brasil. Haddad
deixou claro que Lula é o candidato do PT, que não há qualquer "plano
B" e que o partido está preparado para sustentar a candidatura Lula em
todas as instâncias judiciais.
Haddad
concedeu uma entrevista ao jornal Valor Econômico e apontou outros temas
prioritários: na área tributária, o programa prevê a criação de um imposto
sobre dividendos (o Brasil é o único país do mundo ao lado da Estônia que não
tributa impostos sobre os lucros distribuídos a acionistas de empresas),
aumentar a alíquota do imposto sobre sobre herança, que é hoje um dos mais
baixos do mundo; para implantar um programa de aceleração do crescimento serão
usados 10% das reservas cambiais do país (hoje da ordem de R$ 380 bilhões) em
projetos de investimento; retomada do Minha Casa, Minha Vida; revogação da
reforma trabalhista; mudanças na Previdência Social atacando privilégios e
rejeitando o sistema de capitalização ao estilo chileno, que arruinou com os
aposentados; ele anunciou também que o tema da ecologia terá grande relevância
no programa.
Leia a
íntegra da entrevista a seguir ou no link (aqui):
Valor: Como está organizado o plano de governo do PT?
Haddad: Tem três dimensões: a econômica, a social e a
política. E tem uma quarta, que é a coisa da ecologia, que a gente está dando
uma ênfase muito grande.
Valor: Uma análise política conhecida diz que uma força será mais radical
quanto mais isolada estiver. O PT poderá fazer a campanha mais isolada de sua
história. A proposta é a mais radical?
Haddad: Entendo que a encomenda que o presidente Lula me
fez não tinha como pressuposto o isolamento. O pressuposto era a radicalidade
da crise, muito agravada pelas medidas de Temer. Um governo claramente
anti-nacional e antissocial, que faz todo o peso da crise recair sobre os mais
vulneráveis. Em virtude disso, da posição de um governo ilegítimo, a encomenda
foi de enfrentar os problemas estruturais para tirar o país da crise. Vamos
trabalhar para reunir os partidos de centro-esquerda em torno da candidatura
Lula. Agregar.
Valor: O que o plano estabelece sobre os meios de comunicação?
Haddad: Tem dois aspectos em que o programa é
radicalmente liberal. Já que você usou o termo radical, estou qualificando a
radicalidade. É de uma radicalidade liberal. Quais são? Um deles é concentração
dos meios de comunicação. Concentração vertical, horizontal, propriedade
cruzada. Vamos propor uma regulamentação que aumente o pluralismo e a
diversidade dos meios. Apesar de serem concessões públicas, rádios e TVs sequer
têm contrato de concessão com caderno de encargos. Toda concessão pública no
Brasil - rodovias, hidrelétricas, linhas de transmissão, distribuidoras,
telefonia - todas têm cadernos de encargos.
Valor: Tem parâmetros. Cumprir tantas horas de jornalismo, um percentual
de produção própria...
Haddad: A maioria dos quais nem cumprido é. Não
tem nem agência para aferir o compromisso das emissoras com diversidade.
Sobretudo não permitir que os poderes político e econômico se imiscuam na
comunicação, deixando-a a mais livre possível. Compromisso com diversidade, com
o contraditório, com liberdade de expressão de camadas vulneráveis, com
representatividade étnica. Nada disso tem previsão nas concessões. Mesmo do
ponto de vista regional, é tênue o compromisso com temas locais.
Valor: Quem auxiliou a equipe na elaboração desse capítulo?
Haddad: Quem coordenou foi o João Brant
[pesquisador, ex-secretário executivo do Ministério da Cultura], mas muita
gente participou, inclusive o [jornalista e ex-ministro] Franklin Martins. É
uma proposta liberal. Entendemos que isso faz parte do patrimonialismo brasileiro,
a maneira como está regulado o setor é parte de um problema, digamos, quase que
genético do país. Queremos dar um choque liberal.
Valor: Defende criar uma agência da comunicação, é isso?
Haddad: Estou dizendo a linha geral. Inaugurar
esse debate sobre um choque liberal anti-patrimonialista no setor. Toda
concessão exige um órgão regulador que monitore o cumprimento de compromissos
que toda concessão tem. O foco é evitar concentração da propriedade, sobretudo
propriedade cruzada.
Valor: Tem uma discussão sobre o modelo de agências reguladoras no país.
Pretendem rever o modelo?
Haddad: Estão todas capturadas, né? E isso vem
desde o governo FHC. Não se criou um ambiente regulatório propício para
concessões. O caso mais recente é o do setor de saúde: o governo Temer está
promovendo uma capitulação nesse setor muito grave.
Valor: O que propõe mudar?
Haddad: Forma de indicação é uma questão. Mas
avanço para outros temas. Os controles externos têm pouca participação da
sociedade. Isso vale para CNJ (Conselho Nacional de Justiça), conselho do
Ministério Público, para polícias. Há pouca permeabilidade na composição dos
órgãos de controle. Então é ter controles externos que garantam a não-captura
das agências. A não-captura precisa ser assegurada por uma nova governança. O
Brasil tem o hábito de colocar os iguais para se vigiarem. Não funciona. O
interesse corporativo prevalece sobre os outros.
Valor: O senhor disse no início que eram duas propostas
"radicalmente liberais". Qual é a segunda?
Haddad: Crédito. Aí também cabe um choque liberal contra
o patrimonialismo oligopólico. É o que faz com que os spreads no Brasil sejam
talvez o segundo maior do mundo. E spreads altos, como sabemos, espoliam os
mais pobres. Há 60 milhões de pessoas com cadastro negativo no país.
Valor: O que será feito?
Haddad: Pretendemos estabelecer um sistema de
prêmios e punições. Bancos que se adequarem às regras terão vantagens
tributárias. Quem não se adequar terá desvantagem. Ou seja: vamos introduzir o
conceito de progressividade nos tributos para induzir comportamentos desejáveis
no sistema bancário.
Valor: Mas como é isso? Isenção fiscal para banco?
Haddad: Não, não, não.
Valor: O que seria uma vantagem tributária para um banco?
Haddad: Se você aumenta os tributos para spreads
elevados e diminui para spreads civilizados, você introduz mecanismos indutivos
de um comportamento adequado perante a população.
Valor: Subsidiar os juros?
Haddad: Não. O que importa é para onde vai o sarrafo.
Valor: É do que tem [de tributo hoje] para cima?
Haddad: Sim, para cima.
Valor: Qual é a inspiração disso? Tem em algum país?
Haddad: Não há sistema bancário como o brasileiro.
Do ponto de vista do sistema de crédito, o brasileiro é certamente o pior do
mundo. Mas é um sistema moderno, informatizado, maravilhoso em serviços. Não é
o único mecanismo. Vamos utilizar os bancos públicos. Caixa e Banco do Brasil
respondem por boa parcela do crédito. Mas isso tem sido insuficiente sem um
sistema de incentivos e punições.
Valor: Isso seria uma dimensão de uma reforma tributária, certo? Quais
são as outras?
Haddad: Nosso pressuposto, como o Lula já fez, é
manter a carga tributária, sobretudo a carga líquida, estável. E promover uma
mudança de composição. Todos os estudos, inclusive os da direita, dão conta de
que o sistema tributário é regressivo. Mais uma vez estamos falando de uma
proposta liberal [risos]. É corrigir uma distorção, que é cobrar
proporcionalmente mais dos mais pobres. O objetivo central é ter uma mudança de
composição, garantindo que os entes federados mantenham, em termos reais, sua
cota-parte. Então vamos criar uma trava durante a reforma que impede entes
federados de perderem receita. E aí promover uma simplificação com a criação do
IVA (Imposto sobre Valor Agregado). Paralelamente a essa transição, diminuindo
alíquotas de impostos ruins e aumentando de um imposto racional, promover uma
diminuição da carga sobre consumo e um aumento sobre renda e patrimônio. O
Brasil é um dos únicos países do mundo que não cobra imposto sobre lucros e
dividendos.
Valor: A ideia é criar um imposto sobre distribuição de dividendos?
Haddad: Posso ter um tributo sobre dividendos se
houver diminuição do imposto sobre consumo. Da cesta básica ou geral.
Valor: Sempre equivalente?
Haddad: Sempre no sentido de reequilibrar a carga
a favor dos mais pobres. Poderia criar IPVA para helicópteros, aeronaves e
embarcações se, na mesma medida, reduzir a carga daqueles que estão
efetivamente pagando.
Valor: O imposto sobre dividendos seria compensado como?
Haddad: Provavelmente acompanhado de redução da
carga sobre pessoa jurídica, favorecendo o investimento das empresas.
Valor: Onde mais vai mexer?
Haddad: Criar imposto de renda progressivo sobre
herança. Hoje nós temos uma das mais baixas alíquotas sobre herança. Não
queremos aumentar para todos. Tem pessoas que têm patrimônio de classe média,
deixou apartamento para o filho... Estamos falando de, a partir de certo
patamar, ter progressividade.
Valor: E imposto sobre fortunas?
Haddad: Esse tem o desenho menos fechado. O de
herança é bem mais fácil de se organizar, a experiência internacional é mais
rica. O imposto sobre herança é mais alto fora do Brasil, França, EUA, por
razões liberais e meritocráticas: não criar uma casta de pessoas que nunca
produziram nada e que não contribuem com o fundo público. É mais uma situação
em que a direita no Brasil, patrimonialista desde 1500, tem dificuldades de
entender.
Valor: Tem algum instrumento de regulação de saída de capital?
Haddad: Do ponto de vista de liberalização de
fluxos, demos passos sem nenhuma cautela. Se não fossem as reservas cambiais
acumuladas durante os governos Lula e Dilma, o Brasil estaria numa situação
muito complicada hoje. A prudência que nós tivemos em fazer isso antes da crise
de 2008 demonstrou ser uma das medidas mais acertadas da economia. Não temos
tantos problemas na conta capital como tem Argentina e outros. Tanto que o
[presidente argentino Mauricio] Macri caiu nos braços do FMI.
Valor: Lula falou em usar parte das reservas para investimento. Isso foi
mantido no programa?
Haddad: A ideia é buscar aumento da remuneração
das nossas reservas. Que possam propiciar, inclusive, joint ventures,
investimentos privados, PPPs em infraestrutura. Nosso programa prevê um uso
inicial de 10% das reservas, o que não mexe em nada no "hedge" contra
crise internacional. São US$ 380 bilhões.
Valor: E onde seriam investidos os 10%, US$ 38 bilhões, portanto?
Haddad: Há uma lista de obras prioritárias que serão retomadas.
E podem ser com PPPs. Inclusive a Petrobras, recuperando seu papel estratégico
de empresa integrada.
Valor: Quais são os exemplos?
Haddad: As refinarias Comperj, Abreu e Lima.
Retomar. Esse descalabro que ocorreu com o sistema de preços da Petrobras,
desconhecendo o poder de mercado, criando essa volatilidade, crise dos
caminhoneiros...
Valor: Abreu e Lima e Comperj trazem a lembrança de Paulo Roberto Costa e
Renato Duque [ex-diretores condenados por corrupção]. Como evitar a repetição
disso?
Haddad: Eles foram afastados pela Dilma. Pelo mero rumor
de que pudesse haver coisa errada. Há 85% do Comperj pronto. Não vai terminar?
Qual o sentido de deixar aquilo parado e importar derivados? Pretendemos também
retomar o Minha Casa Minha Vida com outra feição.
Valor: Como seria?
Haddad: A localização do programa tem que ser nas
grandes metrópoles. Construir mais casas onde tem mais infraestrutura. Para
quem diz que a terra é muito cara, a resposta vem com força de que o estoque de
terras públicas nestas localidades é expressivo.
Valor: Reforma da Previdência. A esquerda parece questionar a prioridade
que deve ser dada ao tema.
Haddad: Não devemos fazer deste tema um tabu. Lula e
Dilma promoveram mudanças. O Psol surgiu como oposição a uma reforma da Previdência,
em 2003. Um desserviço que Temer prestou foi combinar no mesmo saco seguridade
social e Previdência.
Valor: Depois ele recuou. O que está no Congresso foi modificado.
Haddad: Depois de um ano? Aí acabou o governo. São
três assuntos a serem tratados: regime próprio, regime geral e sistema único de
assistência social. Vamos retomar o debate pelo regime próprio, sobretudo dos
Estados e municípios. Começando por privilégios. As pessoas entendem.
Privilégios como os mil auxílios que criam para furar teto.
Valor: Foco no regime próprio?
Haddad: O problema está no regime próprio daqueles
que não foram afetados pelas reformas de Lula e Dilma.
Valor: Dos que entraram no serviço público antes de 2003?
Haddad: Exatamente. Rever regras sobre
privilégios.
Valor: Fere o direito adquirido?
Haddad: Na minha opinião, privilégios ferem a
Constituição.
Valor: E a assistência social?
Haddad: Vamos isolar o sistema de assistência da
discussão.
Valor: Do jeito que ficou o parecer do deputado Arthur Maia, essas
questões já não foram isoladas?
Haddad: A pressão sobre o projeto, não vou negar, o
melhorou. Agora vamos discutir com governadores e prefeitos. A impressão errada
é a seguinte: a direita é a favor da reforma, a esquerda é contra. Ajuste de
regime previdenciário é rotina. É assim porque as pessoas, graças a Deus, as
pessoas estão vivendo mais. O que não pode é misturar todos os temas num balaio
só e não ter foco no maior problema.
Valor: A capitalização da Previdência pode ser examinada?
Haddad: Recebi um estudo interessante sobre previdência
pública do professor Reinaldo Fernandes. Prevê uma taxa de remuneração das
contribuições como base. Então você tem respeitadas as contribuições que você
deu tendo como base uma taxa de retorno pré-estabelecida. É um elemento que tem
que vir para a mesa. Trabalhadores têm interesse em um sistema previdenciário
sustentável.
Valor: E a ideia de capitalização?
Haddad: Não estamos trabalhando com essa proposta. Agrava
o problema fiscal a curto prazo. Muito. Transição é muito cara. Só faz quando
está com crescimento econômico exponencial.
Valor: E a reforma trabalhista?
Haddad: Não temos compromisso com a reforma feita goela
abaixo do trabalhador. Até por princípio. O que foi relevante desta reforma?
Caiu o número de ações trabalhistas. Por quê? Há estudos demonstrando que, com
a imposição do pagamento de sucumbência e custas, caiu a ação do trabalhador
pobre. Quem é pobre perdeu o acesso. Isso não foi discutido. Estímulo à
pejotização também é equivocado. Acabou a contribuição sindical. Era
reivindicação do movimento sindical sério, mas poderia ter sido de forma
gradual. Essas regras serão revogadas.
Valor: O senhor fala desses temas como se essa fosse uma eleição normal.
Mas essa eleição tem características que fogem da normalidade.
Haddad: Nosso candidato está preso sem provas, em uma
prisão considerada inconstitucional por 6 dos 11 ministros do STF. Não
aceitamos isso. Como explicar isso para as futuras gerações?
Valor: O que espera do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) quando pedir o
registro de candidatura?
Haddad: Se o TSE recusar o registro, contrariando a
própria jurisprudência, cabe liminar ao STF. E se ele observar a
jurisprudência, vai deixar Lula concorrer. E se ele ganhar, pacifica o país.
Valor: Se vocês acham que o judiciário está politizado e contra o PT, não
é razoável supor que isso não acontecerá dessa forma?
Haddad: Não podemos abdicar do estado democrático
de direito. Como é que o PT vai se antecipar a uma decisão? Por que abdicar? O
PT está indo no entendimento pacífico dos tribunais superiores.
Valor: Alguns já falaram em avaliar a possibilidade de lançar um outro
candidato até 17 de setembro, para não correr o risco de ficar fora da eleição.
Isso mudou?
Haddad: Estamos falando de uma decisão do TSE que
deve acontecer entre 5 e 10 de setembro, seguindo os prazos. Aguardamos uma
decisão favorável. Se não for favorável, vamos por uma liminar do STF. Isso
será feito.
Valor: Liminar pode ser negada.
Haddad: Se a liminar não sair, teremos três ou quatro
dias de prazo para o Lula ser consultado. Seria uma mudança de entendimento do
que foi decidido até aqui. Diante de duas negativas, do TSE e do STF,
consultaria-se o Lula. É decisão que cabe a ele. Creio que se o Lula optar por
indicar uma pessoa, será do PT. Creio eu. É a minha opinião.
Valor: O senhor crê em mais algo mais? Por exemplo: quem seria?
Haddad: Sinceramente, não.
Valor: Falam do seu nome.
Haddad: Dentro do PT não é verdade isso.