|
Lula em Palmeira das Missões, Rio Grande
do Sul. Foto: Ricardo Stuckert
|
Intensificam-se as análises, inclusive de
magistrados, a respeito do registro da candidatura do ex-presidente da
República Luiz Inácio Lula da Silva, que parecem convergir num pré-julgamento
inusitado no sentido de considerar, de antemão, que ele está inelegível.
Já que não concebemos a Justiça Eleitoral como mero
departamento protocolar de verificação dos documentos apresentados pelos
candidatos, nossa intenção é incluir, nesse debate de tamanha envergadura,
alguns elementos fundamentais de caráter preliminar e com viés constitucional,
visando contribuir para as discussões que em breve enfrentarão nossas cortes
superiores e serão pauta de interesse nacional.
Como primeiro ponto, alertamos que a Constituição
Federal estabelece a filiação partidária como condição de elegibilidade e, por
consequência, veda as candidaturas avulsas. O Partido dos Trabalhadores é
titular do direito constitucional à participação no pleito presidencial, por
ser um partido político que está legalmente constituído e em pleno funcionamento.
O PT pode, portanto, pleitear o registro da candidatura do ex-presidente Lula.
Eis a primeira inversão a que assistimos hoje, já
com reflexos no processo eleitoral. É o PT o agente legitimado a escolher sua
chapa presidencial e solicitar o registro perante o TSE. Se é certo que o PT
pode concorrer, também é regra basilar do Direito Eleitoral, em respeito ao
princípio da igualdade de condições na disputa, que o partido tenha os mesmos
direitos dos demais concorrentes, para que efetivamente possa participar dos
atos de pré-campanha das eleições presidenciais. Aos demais partidos foi
assegurada a participação nos debates em rádio, TV e internet, mas, em
desrespeito aos princípios constitucionais supramencionados, tais direitos
estão sendo negados ao PT em nome de seu pré-candidato.
Outros fatos relacionados à condenação e prisão do
ex-presidente Lula, com destaque aos eventos das últimas semanas, revelam uma
conjuntura de ofensas reiteradas a princípios constitucionais. Não à toa, a
cada dia aumentam as manifestações de juristas de renome, dentro e fora do
país, de entidades e personalidades políticas internacionais que o consideram
um prisioneiro político, todos a denunciar, com provas, as tantas ilegalidades
decorrentes de um processo penal que muitos definem como farsa judicial.
Ganha relevância, nesse contexto, a decisão do
Comitê Internacional de Direitos Humanos da ONU que resolveu analisar a
denúncia apresentada pela defesa do ex-presidente Lula, com provas robustas de
abusos de poder na condução do processo pelo magistrado de primeiro grau (com
reflexos no sistema judicial como um todo), apontando para a ausência das
garantias de independência no julgamento do processo penal a que Lula está
sendo submetido.
Todas essas questões refletem diretamente no
julgamento do pedido de registro de candidatura a ser apresentado pelo PT, e
merecem ser consideradas. Ainda que se faça vistas grossas às violações das
garantias no processo penal, cabe à Justiça Eleitoral o papel constitucional de
evitar que as tantas ilegalidades já perpetradas estendam-se agora à esfera
eleitoral, de forma a garantir que o preceito fundamental e mais importante da
democracia — o da soberania popular — seja preservado sem vícios ou fraudes,
afastando as tantas artimanhas que surgem a cada dia para tolher os direitos
políticos de um ex-presidente, que pretende novamente disputar o cargo eletivo
de mais alta importância da República Federativa do Brasil.
Para que tenhamos a concepção plena dos reflexos de
todo esse aparato de violações perante a Justiça Eleitoral, condensamos em dois
tópicos, de forma resumida, alguns aspectos práticos que dizem respeito ao
processo de registro da chapa presidencial do PT às próximas eleições:
I. Quanto aos direitos políticos do
ex-presidente Lula
No momento da discussão a respeito da plenitude dos direitos políticos do
ex-presidente Lula, deve ser considerado o teor da decisão do Comitê
Internacional de Direitos Humanos da ONU, que mencionou o artigo 25, “b”, do
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que estabelece “o direito a
qualquer cidadão de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas,
realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que
garantam a manifestação da vontade dos eleitores”.
Tal decisão já foi comunicada ao Estado brasileiro,
que por ser signatário está obrigado a assegurar tais garantias a Lula.
Trata-se, pois, de matéria passível de análise pelo TSE, eis que se refere ao
exercício dos direitos políticos, requisitos e condições de elegibilidade, questão,
pois, de conteúdo constitucional.
Além disso, um dos princípios constitucionais mais
importantes do ordenamento jurídico brasileiro é a preservação da plenitude dos
direitos políticos que não podem, em hipótese alguma, ser suspensos enquanto
não houver o trânsito em julgado de sentença condenatória, algo que ainda está
longe de se concretizar no caso de seu processo penal. Trata-se, igualmente, de
matéria constitucional que somente poderá ser apreciada no pedido de registro
da candidatura, eis que o partido certamente apresentará, no momento oportuno,
as provas do preenchimento dessa condição de elegibilidade.
Sendo assim, não pode haver indeferimento sumário,
de plano, como já anteciparam alguns magistrados em notícias publicadas na
imprensa nacional. Qualquer tentativa de apreciação dessa matéria antes do
julgamento do pedido de registro (ou sob o aspecto da condenação em segunda
instância, quitação eleitoral ou pela Lei das Inelegibilidades) caracteriza
grave ofensa à Constituição Federal e deverá ser objeto dos recursos próprios
perante a suprema corte, não apenas pela violação patente dos princípios da
ampla defesa e do contraditório, como também por conflitar com a manifestação
do Comitê Internacional de Direitos Humanos da ONU.
II. Quanto à Lei da Ficha Limpa
Não há dúvida de que as eleições configuram a principal expressão de nossa
democracia. Nesse contexto é que deve ser compreendida a Lei da Ficha Limpa,
que não foi aprovada pelo Congresso Nacional para ser utilizada como inimiga da
soberania popular ou como arma contra os eleitores.
A Justiça Eleitoral, ao julgar impugnações ao
registro de candidaturas, deve se nortear pelo princípio de que o melhor
julgamento é sempre o do povo nas urnas, para que não retire do páreo
candidatos que consigam demonstrar o efetivo preenchimento das condições de
elegibilidade. E essa avaliação não se dá apenas pela análise linear dos
documentos apresentados pelos candidatos, até porque a Justiça Eleitoral não é
um balcão cartorário, mas pelo exame conjunto de todos os elementos
apresentados, eis que questões tangentes podem ter surgido justamente com o
intuito de interferir indevidamente no processo eleitoral.
Por outro lado, não se pretende aqui fazer qualquer
abordagem quanto à constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, mas, sim,
discutir os elementos teleológicos no que tange ao alcance do disposto no
artigo 1º, I, alínea “e” da Lei Complementar 64/90, sempre à luz dos preceitos
constitucionais.
Sem titubeios, a literalidade desse dispositivo não
pode ter aplicação automática, sob pena de serem anulados outros princípios da
Constituição Federal com maior peso na interpretação das normas eleitorais. Se
a intenção da Lei da Ficha Limpa foi banir da disputa eleitoral os que
cometeram crimes de teor relevante para impedir que se tornem representantes do
povo, por outro lado a própria Lei das Inelegibilidades prevê a competência
específica da Justiça Eleitoral para analisar o enquadramento do candidato nas
hipóteses previstas na lei, que não pode ocorrer de forma automática.
Para servir como parâmetro, tomemos como exemplo o
que já faz a Justiça Eleitoral quando analisa, caso a caso, a matéria de
impugnação do registro de candidatura com fundamento na alínea “l”, atinente à
condenação por improbidade administrativa, ao definir, apenas no momento do
julgamento do registro, se existe ou não ato doloso, dano ao erário e
enriquecimento ilícito, independentemente de decisão já proferida em outras
esferas da Justiça comum.
Da mesma maneira, no tocante à alínea “e” do mesmo
artigo, não se pode aplicar a Lei da Ficha Limpa de forma aritmética nem
considerar que se trata de mera transposição de decisão judicial de outra
esfera que nem mereça ser analisada pela Justiça Eleitoral.
Também nesse quesito, a singularidade de cada caso precisa
ser analisada à luz da violação ou não de preceitos constitucionais, com a
apreciação, pela própria Justiça Eleitoral, da possibilidade de não se
sustentar nas cortes superiores a condenação criminal do candidato,
autorizando-o, em consequência, a disputar o pleito eleitoral.
Além de a Justiça comum apreciar a plausibilidade
dos recursos a teor do disposto no artigo 26-C da Lei das Eleições, deve a
própria Justiça Eleitoral analisar o registro sob esse enfoque, sobretudo em
casos de flagrantes violações a dispositivos constitucionais, inclusive para
verificar se a condenação criminal teve, por via direta ou indireta, o objetivo
de atingir ou interferir no processo eleitoral. E tal análise somente pode ser
efetuada pela Justiça especializada como instância originária e competente.
Em outras palavras, é fundamental que a
plausibilidade a que se refere a Lei das Eleições também seja analisada pela
Justiça Eleitoral sob outro ângulo, qual seja, sob a ótica de se preservar
tanto a soberania popular como também a plenitude dos direitos políticos do
candidato, que não podem sofrer nenhuma interferência indevida, advinda de
condenação oriunda de processo judicial eivado de vícios ou ilegalidades.
No caso do ex-presidente Lula, a revisão da
condenação criminal pela terceira e quarta instâncias é certa, e as violações a
garantias constitucionais revelam, mesmo numa análise superficial, uma
repercussão proposital no seu registro de candidatura, razão pela qual não se
pode permitir que a condenação em segunda instância possa inabilitá-lo
automaticamente, causando prejuízo irreversível ao exercício de seus direitos
políticos.
As ilegalidades já consumadas na esfera penal
saltam aos olhos. E se o processo penal teve seus prazos encurtados visando
impedir que o ex-presidente Lula concorra às eleições gerais do próximo dia 7
de outubro, a Justiça Eleitoral vai se abster de analisar tal questão, que
compromete inclusive o princípio da soberania popular? Não pode, pois, ficar
inerte, tampouco ignorar a gravidade do que vem ocorrendo até o momento em seu
processo criminal cujos meandros, aliás, são de conhecimento público e foram
dissecados e propagados por todos os cantos do país.
Ao enfrentar tal debate, precisa considerar que,
para preservar a garantia constitucional dos direitos políticos, uma pena
injusta e inconstitucional não pode produzir todos os seus efeitos, tanto pela
possibilidade de ser a condenação reformada nas instâncias
superiores quanto pela não aplicação aritmética da alínea “e”. Uma
condenação injusta e inconstitucional não pode gerar inelegibilidade
automática, pois aplicada será igualmente injusta e inconstitucional.
O ex-presidente Lula e seu partido possuem
elementos de prova que precisam ser analisados pela Justiça Eleitoral no
momento adequado, que é no processo de registro de sua candidatura, que não
poderá ser julgado como se fosse apresentado perante um despachante que
chancela a aceitação ou não de sua documentação.
Entendemos que a aplicação automática do disposto
no artigo 1º, I, alínea “e” da Lei Complementar 64/90 fere, de igual forma, a
Constituição Federal. No caso do registro de Lula, representaria uma aberração
jurídica e um atentado a seus direitos políticos e ao princípio da soberania
popular, bem como ao direito dos brasileiros de eleger seus representantes em
eleições livres e autênticas.
Que a Justiça Eleitoral se mostre à altura do
desafio atual. Que não se cometam ainda mais injustiças àquele que já está
sendo injustiçado pela própria Justiça.
Fonte: DCM