Foram
pelo menos 100 compras de uísque, vinho e cerveja, entre 2014 e 2017, com
dinheiro público. Pedido de acesso aos valores foi negado
A
Presidência da República usou cartão corporativo para comprar bebidas
alcoólicas mais de 100 vezes, entre 2014 a 2017, e trata informações sobre
esses gastos como sigilosas. O valor e a quantidade de uísque, vinho e cerveja
comprados com dinheiro público não podem ser divulgados por uma "questão
de segurança nacional", segundo a Secretaria-Geral da Presidência da
República.
O
Metrópoles protocolou um pedido via Lei de Acesso à Informação para saber
quanto em dinheiro a Presidência destinou a esse fim, no período. Mas, apesar
das regras que garantem transparência nos gastos públicos, o portal recebeu
esta resposta:
"Informo
que as aquisições de bebidas alcoólicas para eventos nos palácios presidenciais
ocorrem por meio de processos de suprimento de fundos, movimentados pelo Cartão
de Pagamento do Governo Federal. Tais processos encontram-se classificados com
base no §2º do art. 24 da Lei 12.527/2012. Dessa forma, conforme a legislação
retro citada, cumpre-nos comunicar que o acesso a esses dados não poderá ser
franqueado, uma vez que necessitam ficar sob sigilo até o término do mandato do
atual governante."
O
ministro Moreira Franco, à frente da Secretaria-Geral, alegou riscos de
sabotagem, intoxicação, infiltração e recrutamento de funcionários internos
para prejudicar o presidente e sua família fisicamente, quando negou o acesso à
informação.
Quem
esteve nos jantares promovidos recentemente pelo presidente Michel
Temer para negociar a reforma da Previdência, por exemplo, revela o que
foi servido. "Vinho tinto, branco e espumante. O uísque fica mais para as
recepções e reuniões do que para jantares", diz uma fonte.
O juiz
federal e especialista em acesso à informação Alberto Nogueira Júnior explica
que a compra de bebidas alcoólicas pela Presidência não é ilegal, desde que
obedeça alguns critérios. Seria justificada a aquisição de cachaça ou vinhos
nacionais para promover esses produtos diante de autoridades, em eventos
oficiais.
O
primeiro-ministro de Portugal, António Costa (dir.), durante brinde em um
jantar com o presidente Michel Temer (esq.); ao fundo, o então
ministro José Serra (centro).
(Foto: Beto Barata/PR) |
No entanto, Alberto Nogueira Junior afirma que a justificativa para não franquear o acesso aos valores, tipos e quantidades de bebidas compradas é "ridícula".
"A
cláusula de Segurança Nacional surgiu no Brasil, oficialmente, no governo de
Getúlio Vargas. É aberta, sem conteúdo delimitado, mas não é um cheque em
branco. Não pode ser usada para esconder abusos. Isso é ridículo em uma
democracia", afirma o juiz.
O
magistrado destaca que é direito de qualquer cidadão saber como o dinheiro
público é gasto. Ele ressalta que a cláusula de segurança é uma exceção do
acesso à informação, não pode ser regra. "Se o Brasil estivesse mandando
um avião para buscar um exilado político com integridade física ameaçada, por
exemplo, poderia não divulgar informações sobre isso por questão de segurança.
Informação sobre bebida não entra nessa categoria", afirma.
O
especialista em contas públicas Gil Castelo Branco, da ONG Contas
Abertas, também considera a justificativa de segurança nacional, nesse acaso,
"absolutamente descabida". "O grande objetivo não é proteger a
autoridade, mas não divulgar uma informação que a sociedade vai reprovar",
afirma.
Transparência
engatinha
A Lei de
Acesso à Informação foi criada em 2011 e regulamenta o direito, previsto na
Constituição, de qualquer pessoa solicitar e receber dos órgãos e entidades
públicos, de todos os entes e poderes, informações públicas. Ela define prazos
para resposta e recursos, por exemplo.
"Ainda
estamos aprendendo sobre transparência no Brasil. Até alguns anos atrás,
vivíamos em uma ditadura e há muitas heranças desse período. Até em países mais
experientes na transparência, como nos Estados Unidos, ter acesso à informação
é uma luta", diz o juiz, autor do livro "Segurança Nacional Pública
Nuclear e o direito à informação".
Quando a
resposta for negada, depois dos recursos previstos, é importante que o
requerente mova ação na Justiça. "Isso é essencial para consolidar o
direito", explica o magistrado. O Metrópoles entrou com recurso na
Controladoria-Geral da União e aguarda resposta sobre o pedido.
"Se
é para fazer jantar com parlamentar e defender reforma da Previdência, que
façam isso sem ônus para o contribuinte. O país tem um déficit de R$ 159
bilhões no orçamento. Que os políticos fiquem só na água e no cafezinho ",
di Gil Castelo Branco, da Contas Abertas
Farra dos
cartões
Em 2007,
o uso abusivo dos cartões corporativos do governo federal virou notícia no
Brasil. Eles deveriam ser utilizados para gastos "emergenciais", como
compra de material, prestação de serviços e diárias de servidores em viagens.
No entanto, naquela época, serviram para pagar instrumentos musicais,
veterinária, óticas, choperias, joalherias e compras em free shop.
A então
ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, deixou o cargo após revelação de
que ela gastava mais de R$ 14 mil por mês, inclusive em bares e restaurantes.
Foi dela a compra de R$ 460 em um free shop. Matilde teve de devolver R$ 2.815
e outros R$ 160 mil eram cobrados pelo Ministério Público Federal, mas nunca
foram recebidos.
Foi
instaurada uma CPMI para investigar o caso, que terminou sem nenhuma punição
aos envolvidos. Descobriram um aumento exponencial nos gastos com cartões
corporativos e uma verdadeira farra no uso. As regras para a utilização desse
recurso sofreram algumas mudanças, como a alteração no limite de saques com o
cartão.
Em 2008,
quando houve o escândalo, a conta dos cartões ficou em R$ 55.257.326,02. No ano
seguinte, saltou para R$ 64.547.860,27. Uma breve consulta ao extrato de
cartões corporativos - parte dos gastos fica exposta no Portal da Transparência -
mostra que o governo federal despendeu, no mínimo, R$ 37.918.568,06 em 2017.
Gil
Castelo Branco lembra que todos os órgãos públicos são obrigados por lei a
listar as informações que consideram sigilosas, algo que a Presidência da
República não disponibilizou, mesmo diante do pedido da reportagem.
Contas
Abertas