De janeiro a outubro de 2024, PMs de São Paulo mataram uma pessoa a cada dez horas
Uma “política de morte”. Assim o ouvidor das polícias de São Paulo, Claudio Aparecido da Silva, 48, classifica a gestão implementada pelo secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, com a anuência do governador do Estado, Tarcísio de Freitas.
A avaliação é baseada em evidências. De janeiro a outubro de 2024, policiais militares de São Paulo mataram uma pessoa a cada dez horas, segundo levantamento do portal UOL com base em dados da SSP (Secretaria da Segurança Pública). O número é mais que o dobro do que o registrado em 2022, ano anterior à gestão Tarcísio.
A SSP afirma que todos os casos são investigados pelas polícias Civil e Militar, e que “não compactua com desvios de conduta” de policiais. O ouvidor discorda.
Leia os principais trechos da entrevista exclusiva ao UOL:
UOL: Diante dos casos recentes de violência policial repercutidos pela imprensa, o governador e o secretário se manifestaram rapidamente para condenar as ações policiais. O senhor enxerga esses posicionamentos como uma mudança de postura por parte dos dois, ou apenas de discurso?
Ouvidor: Não avalio que haja uma mudança de postura do secretário e do governador em relação à política de segurança pública que está sendo implementada no estado de São Paulo. Eu acho que foi uma posição circunstancial em razão de uma grande mobilização da opinião pública e de uma insatisfação social com essa política de segurança.
Eu atribuo a responsabilidade por esse comportamento da polícia ao secretário de segurança pública e também ao governador, que tem sido condescendente com o secretário na implementação dessa política de morte no nosso estado. Não há uma região de São Paulo hoje em que as mortes decorrentes de intervenção policial não tenham aumentado. O governador tem grande responsabilidade nisso. É em razão desse alto índice de violência policial, inclusive, que a ouvidoria encaminhou um pedido de investigação contra o governador ao procurador-geral de Justiça.
O que embasa esse pedido da ouvidoria contra o governador?
Pedimos para que se investigue a postura dele, o que ele tem feito, quais são as medidas que ele tem tomado para reduzir esse nível de agressividade e violência praticada pela polícia. O governador precisa ser responsabilizado. Afinal de contas, quem foi eleito para o cargo de governador foi ele e o secretário de segurança pública só ocupa esse posto porque o governador o colocou lá.
Há alguma perspectiva por parte da ouvidoria de que essas ações policiais violentas diminuam no estado com a repercussão que os casos têm ganhado?
Eu não acredito que vá mudar, a não ser que haja uma mudança radical na postura do governador em relação à orientação que precisa dar para as tropas. Acho, inclusive, uma covardia ficar dois anos orientando a tropa a ser dura, a ser violenta, a agredir as pessoas e, depois, simplesmente dizer que eles terão punição exemplar pela violência que praticaram. Todas as vezes que o secretário de Segurança Pública emite uma nota à imprensa relacionada a uma violência praticada pela polícia, ele coloca nas entrelinhas alguma legitimação daquela atuação. Quando o porta-voz da polícia militar de São Paulo vai dar uma entrevista coletiva, ele fala que os policiais são afastados porque são vítimas. Ao falar sobre o caso do Ryan, em que ele admite que uma criança de 4 anos foi morta com um tiro da polícia, ele defende a redução da maioridade penal. Isso tudo legitima a postura violenta da polícia.
Agora, em dezembro, mesmo mês em que o governador deve escolher o próximo ouvidor das polícias, foi publicada no Diário Oficial uma resolução para determinar a criação de uma ouvidoria paralela, subordinada à SSP. Como o senhor avalia essa decisão do governo?
O secretário criou essa ouvidoria por resolução, que é um instrumento muito menos efetivo que uma lei, mandando mais um recado pra tropa. Uma mensagem de que ele vai deslegitimar o principal órgão que está fazendo um contraponto a essas ações policiais violentas. Ele está criando uma ouvidoria que vai ser chapa branca, que vai ficar embaixo dos pés dele, servindo como tapete. Acho que a pretensão dele com a nossa ouvidoria sempre foi essa, e que isso se formaliza a partir desse ato de criar uma resolução para ter uma ouvidoria na qual ele manda.
Enquanto isso, a data limite para o governador nomear um novo ouvidor [23/12], está próxima. O senhor acredita que ele irá fazer essa nomeação dentro do prazo? Se sim, acha que será reconduzido?
Eu espero que o governador, talvez até sinalizando com uma perspectiva de mudança de uma postura autoritária e arbitrária, nomeie, sim, um novo ouvidor, ou me reconduza. Mesmo que seja um dos outros dois da lista, não tem problema nenhum, eu só espero que ele nomeie. Se ele não nomear, o ouvidor que está vai ficando, mas isso abre brecha para questionarem o ouvidor, já que o meu mandato já estaria vencido e não fui devidamente nomeado e legitimado pela caneta do governador.
Então, ele tem essa oportunidade daqui a algumas semanas de fazer mais uma sinalização no sentido de que ele, de fato, quer mudar a forma como está encarando a segurança pública em São Paulo.
Qual balanço o senhor faz do trabalho da ouvidoria e da segurança pública em São Paulo durante os primeiros anos da gestão Tarcísio?
Os dias foram muito intensos e, em vários momentos, eu tive a impressão de que o tempo não passava. Já teve dia aqui com 50 veículos de imprensa do Brasil inteiro na fila querendo falar com a gente, geralmente com demandas relacionadas a casos de violência policial. E, junto com isso, temos sempre a nossa agenda cotidiana da ouvidoria, procurada por pessoas, familiares de vítimas, movimentos sociais, e até policiais ou pelo próprio governo, para analisar documentos e demandas das polícias no estado. Então, os dias aqui são bastante exigentes do ponto de vista do nosso desempenho mental e físico.
De que forma vocês atendem policiais?
Além de ser um órgão de participação social, de controle externo da atividade policial, a ouvidoria é um órgão de acesso à justiça. Então, os policiais também buscam a ouvidoria para terem os seus direitos humanos preservados e respeitados, e a gente não abandonou eles. Atendemos uma série de demandas de policiais que foram violados e inclusive perderam a vida em operações. Muita gente tem uma visão distorcida da ouvidoria, mas não somos contra a polícia. Isso não é verdade.
Algum dos casos de violência policial que a Ouvidoria acompanhou nos últimos dois anos te marcou mais?
Acho que tanto a Operação Escudo [no Guarujá] quanto a Operação Verão [na Baixada Santista] foram bastante marcantes, desde o início. Primeiro porque, em julho do ano passado, um policial da Rota foi morto em serviço pela primeira vez em mais de 20 anos. Isso, por si só, já foi uma quebra de paradigma. O policial morreu em uma quinta-feira à noite, por volta das 22 horas. Na sexta-feira, às 10 da manhã, a operação já estava deflagrada. No domingo seguinte pela manhã, eu sou chamado em casa, onde estava descansando com a minha família, por alguns grupos de movimentos de direitos humanos, informando que estava insustentável a situação no Guarujá, em razão do número de mortes pela polícia que estavam ocorrendo. Até então, a narrativa que se tinha era apenas a oficial, da Secretaria de Segurança Pública. Mas começamos a receber, inclusive de familiares de vítimas, uma série de relatos que são estarrecedores sobre o comportamento da polícia no território e o que estava, de fato, acontecendo. Descobrimos que, de sexta a domingo, ou seja, em dois dias, já haviam dez mortes no território. É importante lembrar que esse número equivale à média de mortos decorrentes de intervenções policiais que o Guarujá registrava em um ano inteiro até então. E os dias que se seguiram foram muito tensos. (…) A operação durou 40 dias com um saldo de 28 mortos.
Logo no final do ano, desencadeou uma nova operação em razão da morte de um policial que havia sido assaltado e baleado na [Rodovia dos] Imigrantes, voltando para casa. Essa operação foi chamada de Verão, e não ficou apenas em uma cidade, como havia sido a Escudo, ela ocorreu em quatro cidades da Baixada Santista, no Guarujá, em São Vicente, Santos e Cubatão. E aí o estrago foi muito maior, com um saldo de 56 mortes decorrentes de ação policial desde o início da Escudo.
Algum caso te chamou mais atenção entre essas mortes?
Temos casos muito emblemáticos, como por exemplo, o do Leonel, no morro do São Bento, em Santos, que culminou mais recentemente com a morte do seu filho, Ryan, de 4 anos, também por intervenção policial. Leonel tinha deficiência física e usava muletas para conseguir andar. A polícia alegou que ele estava armado e reagiu a uma abordagem.
Depois, em março, mais ou menos 20 dias após a morte do Leonel, o Rahoney, policial que matou o Leonel, morre pelas mãos da polícia também, na zona sul de São Paulo. O Rahoney estava à paisana em uma moto, circulando na região do Campo Limpo, quando ele desconfia de um carro e resolve abordar, ainda com capacete no rosto. Quando ele vai tentar abordar esse carro, aparece uma viatura da PM e os policiais desembarcaram já atirando nele
Quer dizer, a lógica da polícia, de primeiro atirar e depois saber quem é, dessa vez teve como vítima o próprio membro da corporação que, cerca de 20 dias antes, tinha matado o Leonel. E agora, em novembro, a gente acompanhou a morte do Ryan, filho do Leonel. Então, essas mortes viraram quase uma trilogia, e isso também marca, entre tantos outros casos.
Fonte: Agenda do Poder com informações do UOL.
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