Estimativas apontam que, ao longo de séculos, Portugal levou do Brasil riquezas estimadas em US$ 100 trilhões
Sputnik - Em
entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisaram a
fala do presidente português sobre reparação às ex-colônias e afirmam que o
ouro retirado do Brasil paradoxalmente se converteu em uma maldição para
Portugal, impedindo a industrialização do país.
Em abril, o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa,
afirmou que seu país "assume total responsabilidade" pelos erros
cometidos no período colonial, incluindo massacres, e sugeriu reparação às
ex-colônias.
"Temos que pagar os custos. Há ações que não foram punidas
e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram
devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso", disse Rebelo em um
evento com jornalistas estrangeiros.
A fala teve forte repercussão em Portugal e no Brasil. Já
no dia 15 deste mês, o Parlamento português se posicionou sobre a declaração,
contrariando o presidente e descartando qualquer possibilidade de indenização
às ex-colônias.
"Não haverá um processo ou programa de ações específicas
para indenizar outros países pelo passado colonial português. Mas quando for
justo pedir desculpas, o faremos como no caso do Massacre de Wiriyamu",
disse Paulo Rangel, ministro das Relações Exteriores de Portugal, em referência
ao massacre perpetrado pelo exército colonialista português em Moçambique, no
qual cerca de 400 civis foram mortos em 1972, durante a guerra de independência
do país.
No Brasil, sobretudo nas redes sociais, a fala de Rebelo
levou internautas a cobrar a devolução do ouro retirado do Brasil. Porém, essa
possibilidade é nula, segundo aponta em entrevista ao podcast Mundioka, da
Sputnik Brasil, Arminda Ludmila Deveza, portuguesa, escritora, mestre e
doutoranda em direito público e evolução social na linha de direitos
fundamentais e novos direitos pela Universidade Estácio de Sá, advogada e
pós-graduada em direito do trabalho e processo do trabalho.
Ela destaca que ainda há certa dificuldade em Portugal de
reconhecer os crimes cometidos durante a colonização, e essa dificuldade se dá
por conta do orgulho português em relação ao passado do país como potência
global.
"A gente tem que lembrar da história das Américas e
da colonização. Durante mais de quatro séculos, pelo menos mais de 12 milhões
de africanos foram sequestrados, transportados à força da África,
principalmente por navios e comerciantes europeus, e foram vendidos como
escravos. E Portugal traficou quase 6 milhões de africanos, mais do que
qualquer outra nação europeia. Então, até agora, Portugal não conseguiu
confrontar seu passado", afirma Deveza.
Ela explica que esse impasse ao confrontar o passado é fruto de
dois fatores: primeiro, o orgulho que os portugueses têm de seu período como
potência marítima; segundo, por falta de adaptação nas escolas, de forma a
apresentar esse passado com a devida contextualização.
"Portugal tem uma história riquíssima de honra e
glórias. Então o mundo, há muitos séculos, era praticamente português, já que
Portugal foi pioneiro na expansão marítima, ampliou a influência e o poder
político no mundo inteiro. Os portugueses foram os grandes navegadores e os
grandes desbravadores dos mares. As grandes navegações e a era colonial
portuguesa em Portugal ainda são vistas como fonte de orgulho. […] nós,
portugueses, temos muito orgulho disso, do nosso passado", explica.
"O ensino em Portugal tem que ser revisto — a história, com
relação aos fatos como eles realmente aconteceram. Então, a época da
colonização tem que ser abordada de outra maneira. Não como algo heróico, mas
tem que ser abordada com a contextualização da sua época, com uma leitura e
interpretação do que, de fato, ocorreu."
Ela enfatiza que a fala de Marcelo Rebelo de Sousa sobre
reparação, no entanto, é reflexo de uma tendência europeia de responsabilização
pelos erros e crimes cometidos no passado, e que, por ser acadêmico e
professor, o presidente está acompanhando essa tendência por ser um tema
relevante e contemporâneo.
"Está acompanhando o que, recentemente, alguns países
europeus já discutem. Eles fazem isso [reparação] […]. A França devolveu 26
objetos que tinham sido levados dentro de um contexto colonial de violência e
dominação. Então, com essa investigação, a Alemanha também já devolveu objetos
e artefatos que também foram furtados de Benin em 2022. Então existe, sim, um
movimento dos líderes mundiais em buscar reparações, buscar responsabilizações.
[…] acredito que [a fala de Rebelo] tenha sido nesse contexto atual e
contemporâneo."
Há dinheiro em
Portugal para indenização? - Deveza
afirma que não há dinheiro em Portugal para fazer a reparação ao Brasil e
destaca que o produto interno bruto (PIB) português em 2023 foi de US$ 230
bilhões (cerca de R$ 1,1 trilhão). Ademais, ela sublinha que o ouro levado do
Brasil Colônia para Portugal acabou se convertendo em "maldição".
"O que eu ouvi logo depois dessa fala dele [Rebelo],
de algumas pessoas: Cadê o dinheiro? Cadê o ouro do Brasil? Vai devolver o
nosso ouro? Então a gente também passou por uma outra questão. A reparação, a
gente já pensa logo no dinheiro […], mas não tem ouro. Porque o ouro brasileiro
acabou sendo utilizado para cobrir a dívida externa que Portugal tinha com o
Reino Unido, porque firmou o famoso Tratado de Methuen em 1703, ou Tratado dos
Panos", afirma.
"Portugal não cuidou da indústria, porque acabou
cedendo o seu ouro de forma abundante em troca de mercadorias de luxo, que eram
continuamente substituídas por outras. Então a abundância de ouro para alguns
pesquisadores era uma maldição, porque impediu o processo de industrialização e
modernização da economia portuguesa. Então, se não tem dinheiro, como seria
feita essa reparação?", questiona.
Ao perguntar à Deveza se nesse contexto a fala do
presidente acabou sendo um equívoco, já que não há dinheiro para ressarcimento,
a pesquisadora discorda. Ela afirma que o objetivo do presidente português, ao
reconhecer os erros do passado, é contribuir para que eles não se repitam.
"O reconhecimento desses erros do passado ajuda, e
acaba contribuindo para que esse tipo de erro não se repita. Porque ele acaba
dando exemplo para outros países que continuam a colonizar os outros. A gente
ainda vê que alguns países europeus colonizam outros. Então ainda é uma coisa
atual."
A escritora afirma que após a etapa do reconhecimento, vem
a etapa da reconciliação, e destaca que ambas "são etapas muito fortes e
muito difíceis, mas que precisam ser enfrentadas". "Até mesmo para
termos uma sociedade mais justa, mais humana, mais igualitária."
Qual o valor do
montante que Portugal levou do Brasil durante o período colonial? - Estimativas apontam que, ao longo de séculos, Portugal levou do
Brasil riquezas estimadas em US$ 100 trilhões (cerca de R$ 515 trilhões).
Porém, para o analista internacional Paulo Martires dos Santos, a quantia é
muito maior.
"A quantificação de um valor para tamanha barbárie
que decorreu durante 400 anos, no caso do Brasil, é inquantificável em termos
de roubo, que foi feito de riquezas naturais, de gentes, assassinatos em massa,
extermínio em massa, liquidação do território e tudo mais. […] a realidade é
que nunca ninguém, ao meu ver, conseguirá ter uma mínima ideia daquilo que é
devido."
Ele afirma ainda que essa conta se refere apenas ao
Brasil, mas que há várias outras ex-colônias portuguesas que também teriam
cifras altíssimas em caso de reparação financeira. Nesse contexto, uma eventual
indenização se torna ainda mais improvável.
"Não adianta monetizarmos as coisas. Não adianta nós
dizermos que bem em valor, em pecúnia, em valor de dinheiro, vale XYZ",
explica.
Questionado sobre o posicionamento do partido radical de
direita Chega, que classificou a declaração de Rebelo como "traição",
Santos afirma que a legenda faria de tudo para polemizar qualquer assunto.
"O Chega vai se servir de qualquer coisa para obter
protagonismo, seja dizendo isso do Marcelo Rebelo de Sousa, seja dizendo isso
da esquerda, da direita, de cima ou de baixo. Eles pegam aquilo que no momento
surge como luz da ribalta para explorar o filão", explica.
"A mesma coisa com o [partido] Bloco de Esquerda.
Tanto o Bloco de Esquerda como eles [Chega] têm uma coisa em comum: gostam de
mídia. Gostam tanto que saltam, rejubilam quando há qualquer coisa que os faça
brilhar, ainda que sem fundamento. De qualquer das formas, vozes de burro não
chegam ao céu", afirma.
Sobre a forma que a declaração de Rebelo foi transmitida
na mídia, Santos diz que, assim como todas as falas do presidente, foi recebida
com impacto.
"Talvez a imprensa portuguesa não tenha conseguido
tirar o positivo dessa observação, que era, sem dúvida alguma, puxar para a
centralidade da discussão política algo que é devido, algo que é justo, algo
que tem que ser discutido. Porque essa observação […] deve trazer a toda a
gente a memória daquilo que se fez. Porque nessas escolas [portuguesas], na
escola onde eu estudei, na escola onde todos os outros estudaram, apresentam-se
os descobrimentos como uma aventura daqueles portugueses que saíram daqui, que
pararam nas terras e descobriram o mundo por aí afora, dando ao mundo outros
mundos. É uma coisa completamente insípida, desprovida daquilo que é o seu
caráter criminoso, o seu caráter de completa degradação humana que aquilo tudo
foi."
Entretanto, o especialista afirma que a discussão em torno
da reparação deve ser pautada não pelo dinheiro, mas pela ajuda social que
Portugal poderia prover ao Brasil e, também, pela reconciliação entre os
países, de forma a superar o passado.
"Nós não podemos passar nenhuma borracha [no
passado], nem podemos agarrar um saco de dinheiro e entregar para as
ex-colônias e dizer: 'Pronto, está aqui tudo aquilo que nós tiramos e a partir
daqui estamos arrumados [acertados].' Isso é impossível de se fazer. Isso não
apaga nada. Porque aquilo que principalmente urge corrigir foram os atos
danosos, sociais, culturais, econômicos que nós infligimos a essas
colônias", explica.
"Isso não se recompõe apenas com dinheiro. Também se
recompõe com dinheiro, mas com investimento. Com investimento em ajudá-los
[ex-colônias], com investimento em financiá-los também, naquilo que se puder,
com ajuda social, cultural. O desenvolvimento crítico do ser humano e a
cooperação. A solidariedade entre esses povos é fundamental para conseguir […]
minimizar aquilo que foi uma decisão e um erro histórico", conclui.
Fonte: Brasil 247 com Sputnik
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