Congresso manteve trecho alheio à LDO que veta verbas para 'invasões e ocupações'. Analistas veem guerra cultural
Brasil de Fato - Após o Congresso Nacional derrubar os vetos do
presidente Lula (PT) a trechos da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que
tratavam de temas de interesse da ala bolsonarista, incluindo um dispositivo
que proíbe a destinação de recursos para ações relacionadas a "invasão ou
ocupação de propriedades rurais privadas", o Movimento dos Trabalhadores
Rurais sem Terra (MST) afirmou que vê a disputa como algo "desconectado da
realidade". Para a dirigente Ceres Hadich, a questão surgiu com o objetivo
de promover a guerra ideológica estimulada pela extrema direita.
O veto em questão foi derrubado na terça
(28) à noite e diz respeito a uma emenda apresentada ano passado pelo deputado
Eduardo Bolsonaro (PL-SP) que inseriu na LDO de 2024 a proibição para despesas
relacionadas ao que o parlamentar chamou de "invasão ou ocupação de
propriedades rurais privadas", "ações tendentes a influenciar
crianças e adolescentes, da creche ao ensino médio, a terem opções sexuais
diferentes do sexo biológico"; "ações tendentes a desconstruir,
diminuir ou extinguir o conceito de família tradicional, formado por pai, mãe e
filhos"; "cirurgias em crianças e adolescentes para mudança de
sexo"; e "realização de abortos, exceto nos casos autorizados em
lei".
Sem entrar no mérito da questão, o governo justificou o veto
argumentando que os temas inseridos no artigo são "impertinentes em
relação ao que costumeiramente consta em lei de diretrizes orçamentárias".
O Planalto disse que o trecho "evidencia a violação ao comando normativo
orçamentário previsto no §2º do art. 165, da Constituição".
No jargão do Legislativo, esse tipo de inserção é chamado
vulgarmente de "jabuti", quando parlamentares colocam numa
determinada lei pontos alheios ao seu objetivo original. Com a derrubada do
veto pelos parlamentares, fica mantido na LDO o trecho apresentado por Eduardo
Bolsonaro, que utilizou o tema para movimentar apoiadores nas redes sociais.
Filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o deputado costuma fazer ataques ao
MST e à política de reforma agrária de forma geral.
"É algo tão ideológico que é até difícil, tecnicamente
falando, a gente conseguir contextualizar o que seria isso [a emenda]. Que tipo
de ação [orçamentária do governo] viria a promover direta ou indiretamente
qualquer tipo de ocupação ou, como eles gostam de chamar, 'invasão' de
propriedade? O que há é a destinação de orçamento para políticas públicas
destinadas à reforma agrária, que não é em si a mesma coisa que 'ocupação de
terra'. Ocupação é um movimento legítimo da sociedade civil organizada, que,
por meios próprios – portanto, não é por meio do governo –, se organiza de
maneira autônoma para isso. Então, não há, do ponto de vista governamental,
incentivos que direta ou mesmo indiretamente promovam as ocupações",
afirma Ceres Hadich.
A declaração da dirigente é uma referência ao uso
frequente, por parte de atores da direita, da expressão "invasão de
terra" para criticar as ações do MST. O Brasil vive, dentro e fora da
política institucional, uma frequente disputa ideológica em torno das duas
nomenclaturas. Tecnicamente, invasões em si são enquadradas no crime de esbulho
possessório, presente no Código Penal. Já a prática de "ocupação de
terra" conta com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de
que tem o objetivo de pressionar o governo pelo andamento da política de
reforma agrária, sendo, assim, compreendida como uma ação política de cunho
social.
"Por isso o que eles colocaram nesse trecho da LDO é algo
demarcado e feito pra dialogar com o público da extrema direita, que é muito
pautado por questões morais. É algo totalmente ideológico e desconectado da
realidade da LDO. O que a gente entende com isso? De um lado, faz parte da
ofensiva deles para desestabilizarem o governo. De outro, é a permanência da
extrema direita em distorcer o papel que o parlamento deveria cumprir para
ficar fazendo disputas ideológicas e morais", atribui a dirigente do MST.
"Inócuo"
- Em conversa com o Brasil de Fato,
Danilo Morais, professor de Ciência Política e Direito na faculdade Ibmec, em
Brasília (DF), explica que, do ponto de vista jurídico, a manutenção da emenda
de Eduardo Bolsonaro no texto da LDO tende a ser algo "inócuo".
"O veto é sintomático da centralidade das chamadas guerras culturais na
política contemporânea. Todas as proibições de aplicação do orçamento
restabelecidas com a derrubada do veto versam sobre atividades já interditadas
pelo sistema jurídico brasileiro", afirma.
"O governo federal já não poderia destinar seu orçamento a
cirurgias de transgenitalização de menores, pois essa prática já é vedada pela
legislação atual, que exige a maioridade. Tampouco poderia incentivar
'invasões' ou abortos ilícitos, já que essas ações são igualmente proscritas.
Essa sequência de tensionamentos no processo legislativo desvela uma interação
Executivo-Legislativo guiada por fantasmas e incapaz de voltar-se às questões
reais que afligem a sociedade brasileira", complementa Morais, que também
é doutorando em Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Nos bastidores da bancada do PT, assessores técnicos do
partido apontaram preocupação com eventuais riscos que a emenda poderia causar
a ações do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Isso
porque a política de reforma agrária inclui despesa com assentamentos de
pessoas que estejam em áreas ocupadas. Como a emenda inserida na LDO menciona a
proibição para despesas diretas ou indiretas relacionadas a "invasão ou
ocupação" de propriedades, a votação do veto foi marcada por esse temor.
Para o deputado Valmir Assunção (PT-BA), no entanto, a redação final da LDO não
deve impactar a política do Incra. O parlamentar tem ligação direta com o MST,
já tendo atuado na direção nacional da entidade.
"Os bolsonaristas de modo geral querem lacração, querem
trabalhar para a sua bolha. Esse veto do Lula estava correto. Quando o Eduardo
trabalhou pra derrubar o veto, foi pra dificultar, mas isso não vai impedir a
reforma agrária. Pode até criar dificuldades, mas como o MST e os movimentos,
foram, ao longo da sua historia, superando dificuldades, essa será mais
uma", declarou.
Pacote - Ao todo, o governo havia feito 310 vetos à LDO. O Congresso
Nacional derrubou 28 deles. Além dos que tratam do artigo 185, os parlamentares
decidiram manter trechos que liberam a destinação de recursos para ações que
não tenham projeto de engenharia aprovado ou licença ambientam prévia, bem como
a norma que endurece a política de saída de presos, entre outros.
Analista do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar
(Diap), Neuriberg Dias vê tais votações como mais um capítulo do acirramento da
disputa entre Executivo e Legislativo em torno da destinação do orçamento
público, do direcionamento a ser dado às políticas públicas, bem como do
tradicional antagonismo pré-eleitoral.
"Alguns são temas populistas e utilizados mais para
tentar minimizar a agenda social do governo, até porque boa parte dos casos que
foram apontados como derrotas do governo não são todos exatamente uma bandeira
da gestão. Há aí uma estratégia de alguns nomes do Congresso para tentar impor
certas derrotas, mas tem temas que, sob o ponto de vista constitucional ou da
execução orçamentária, não são exatamente praticáveis. Não tem
aplicabilidade", afirma, ao citar os casos do artigo 185 e outros.
"O fato é que boa parte do que foi vetado já era
esperado e uma parte do que vai entrar pra legislação ou não tem efeito ou é
inconstitucional. É uma agenda muito voltada pros interesses da extrema direita
e até da direita, que, em função da conjuntura, está apoiando algumas dessas
agendas. Mas a gente precisa explicar bem o momento e a circunstância política
porque estamos numa transição do ponto de vista das questões da
governabilidade, do perfil institucional do Poder Legislativo e do seu empoderamento
nos últimos anos, o que vem impondo uma nova dinâmica em relação ao Executivo
para as políticas públicas, inclusive sobre o orçamento", emenda Dias.
Fonte: Brasil 247 com informações do Brasil de Fato
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