Estudo feito pela Fiocruz Bahia aponta que o aumento de casos foi mais significativo entre jovens de 10 a 24 anos; casos de automutilação aumentaram mais de 20%
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Por Fernanda Bassette, da Agência Einstein - Na contramão da tendência global de queda no número de
suicídios, o Brasil registrou o aumento de 3,7% nas taxas de suicídio e de 21%
nos casos de automutilação entre os anos de 2011 e 2022. Apesar de o problema
ser mais comum em idosos, o aumento foi mais significativo entre os jovens de
10 a 24 anos: houve o crescimento de 6% nas taxas de suicídio e de 29% nas
taxas de autolesão no período analisado. Enquanto a redução global de casos foi
de 36%, nas Américas o aumento foi de 17%.
A constatação é de um amplo estudo realizado pelo Centro
de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidacs), da Fiocuz Bahia,
em colaboração com pesquisadores de Harvard, nos Estados Unidos. Para chegar
aos resultados, os pesquisadores analisaram mais de 1 milhão de dados
disponíveis em três bases públicas: o Sistema de Informações sobre Mortalidade
(SIM), Sistema de Informações Hospitalares (SIH) e o Sistema de Informação de
Agravos de Notificação (Sinan). Os resultados foram publicados no The Lancet
Regional Health – Americas.
De acordo com a psicóloga Flávia Jôse Alves, pesquisadora do
Cidacs responsável pelo estudo, esse trabalho é parte do escopo de uma pesquisa
maior, que avalia informações de saúde mental como um todo. “As taxas de
suicídio têm decrescido globalmente, mas no Brasil e na América Latina têm
aumentado. Queríamos tentar entender como isso vem acontecendo e resolvemos
cruzar as informações das três bases de dados públicas, que são totalmente
independentes e não se conversam”, explicou.
Após a análise estatística, um dos dados que chamou a
atenção da pesquisadora é que os índices de suicídio registrados no período têm
mantido um crescimento constante e não houve um aumento ou pico considerável
durante a pandemia de Covid-19, ao contrário do que seria esperado por causa do
aumento de casos envolvendo problemas de saúde mental. “O registro de suicídios
permaneceu com uma tendência persistente ao longo do tempo”, disse.
Outro dado que chamou a atenção é que houve o aumento de
registros em todos os grupos (indígenas, pardos, asiáticos, negros e brancos),
mas o número de notificações e de óbitos foi maior entre os indígenas e, entre
eles, houve menor taxa de hospitalizações. Na avaliação da pesquisadora, isso
sugere que há a falta de acesso aos serviços de urgência e emergência, o que
poderia atrasar as intervenções.
Por que aumento entre
os jovens?
Em relação ao aumento de casos em pessoas cada vez mais jovens,
Alves disse que a pesquisa não avaliou os motivos, mas ela elenca algumas
hipóteses que poderiam explicar: entre elas estão fatores socioeconômicos, que
impactam diretamente o acesso aos cuidados básicos de saúde, especialmente a
saúde mental – isso inclui desde a falta de médicos especialistas na rede até a
resistência em procurar ajuda quando o problema envolve saúde mental. Além
disso, o isolamento social também é um fator que preocupa.
O psiquiatra Elton Kanomata, do Hospital Israelita Albert
Einstein, concorda e ressalta que a falta de acesso ao médico especialista é um
problema sério. “Ainda há um déficit de psiquiatras em muitas regiões do Brasil
e, tirando as capitais e os grandes centros, há uma enorme escassez de
especialistas, o que dificulta a adequada condução dos casos para que eles não
evoluam para um grande sofrimento psíquico e, consequentemente, o suicídio”,
avaliou.
Kanomata destacou ainda que o aumento mais expressivo dos casos
na faixa etária mais jovem é algo que tem sido observado rotineiramente por
colegas que trabalham com saúde mental. “São gerações mais atuais, muito
diferentes das anteriores. São jovens que tiveram acesso a recursos,
informações, educação, mas possuem um perfil mais imediatista. Eles tendem a
ter um menor limiar, uma baixa tolerância à frustração, e esse também pode ser
um dos motivos”, sugeriu o médico.
O número expressivo de registros de autolesões entre os jovens
também chamou a atenção no estudo. Segundo Kanomata, esse comportamento era
incomum décadas atrás, mas hoje é muito mais frequente de ser visto em qualquer
nível de atendimento médico – tanto ambulatorial quanto emergencial, e até nas
internações.
“Esse resultado nos chama a atenção porque ele pode
refletir a questão de esse jovem querer copiar o comportamento do outro. Temos
conhecimento de vídeos em redes sociais de pessoas que falam de automutilação e
isso provoca um efeito manada. Não significa necessariamente que aquele jovem
tem um transtorno mental, mas ele copia o ato de se mutilar como uma forma de
um alívio para algum sofrimento”, explicou o psiquiatra.
Kanomata ressalta, no entanto, que a automutilação não
necessariamente implica no suicídio. Os dois são comportamentos distintos e não
é possível fazer uma ligação, afirmando que o aumento de casos de automutilação
se refletiria no aumento de suicídios. De acordo com o psiquiatra do Einstein,
no suicídio a pessoa tem a intenção de tirar a própria vida, mesmo que haja um
mínimo de intencionalidade, enquanto na automutilação não há esse
objetivo.
“A autolesão está muito mais vinculada a um tipo de
comportamento, para aliviar um sofrimento psíquico e emocional represado,
muitas vezes por estresses da vida. Após o ato, a pessoa se sente mais
aliviada. É claro que, se uma pessoa está num nível de sofrimento a ponto de se
machucar, isso pode aumentar o risco de essa pessoa ter um transtorno mental. E
consequentemente, se não for tratado, agravar-se e a pessoa cogitar a tentativa
de suicídio como uma solução. Mas não é possível fazer esse link direto”, ressaltou.
A pesquisadora Alves faz uma ressalva sobre dois fatores
do estudo que podem interferir no resultado: o primeiro é que as três bases de
dados utilizadas são independentes e, por isso, há o risco de existirem casos
sobrepostos. Ela explica, por exemplo, que há o registro de um caso de
autolesão e, mais para a frente, essa mesma pessoa é hospitalizada. Como os
sistemas são independentes, quando essa pessoa foi internada foi gerado um novo
registro no sistema de hospitalizações.
Outro fator que pode limitar os resultados é que, somente
a partir de 2011, começou a surgir a notificação compulsória das autolesões no
geral e, no período analisado, houve lembretes do governo ratificando a questão
da notificação compulsória. Segundo Alves, como não havia registro nenhum
anteriormente, é natural que houvesse o aumento de casos. Além disso, com o
passar dos anos, o treinamento das equipes e mais informações sobre os
sistemas, era esperado que também houvesse a tendência de aumento de registros.
Kanomata concorda com a ressalva, mas diz que apesar disso
ainda pode haver a subnotificação de casos. “Há uma diferença entre ser
obrigatório e de fato isso ser feito por todo o sistema de saúde. Isso não foi
algo que tenha sido acatado e posto em prática de forma imediata e sistemática
de 2011 em diante”, disse.
Para o psiquiatra, os resultados desse trabalho reforçam a
necessidade de existirem políticas de saúde pública que possam minimizar o
risco de suicídio – e uma forma seria aumentar a oferta de serviços com
profissionais de saúde mental. “O acesso à saúde de forma geral não é homogêneo
em todo o território brasileiro, e o acesso à saúde mental não é diferente. Uma
alternativa seria a implementação de atendimentos em telemedicina, por exemplo,
fazendo com que o especialista chegue às pequenas cidades, às regiões mais
distantes, onde o atendimento presencial com o psiquiatra acaba não sendo
possível”, disse.
Como identificar
alguém em risco?
O psiquiatra diz que muitas vezes é possível identificar
sinais que indicam que uma pessoa está em sofrimento psíquico intenso, entre
eles: um grau de humor mais entristecido, apatia, diminuição de interesses,
falta de vontade, de energia, de disposição para realizar atividades básicas,
prejuízos com o autocuidado, redução do contato social ou isolamento,
alterações de apetite e de sono, discurso mais pessimista em relação à vida e
ao futuro.
“São detalhes que, se aparecem de forma sustentada e se
tornam constantes, merecem atenção, para que a pessoa procure profissionais da
área da saúde mental, tanto psiquiatras quanto psicólogos”, finalizou o
médico.
Procure ajuda
Se você ou alguém que você conhece precisa de apoio
emocional, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV) pelo telefone 188. A
ligação é gratuita. Além disso, o site Mapa da
Saúde Mental pode ser utilizado para encontrar um serviço mais
próximo, trazendo informações sobre acolhimentos gratuitos ou de baixo custo.
O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece também a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS) por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
que fazem o acolhimento para quem precisar.
Fonte: Brasil 247
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