Organização leva consciência política para jovens periféricos
Após a noite de 14 de março de
2018, a família da vereadora assassinada Marielle Franco se viu envolvida por
uma junção de sentimento: a dor, o luto, a indignação que – até hoje – serve
como combustível para a busca por justiça, e a necessidade de não deixar morrer
a luta da ativista por uma sociedade melhor.
A comoção causada pelos assassinatos de Marielle
e do motorista Anderson Gomes, por si só, potencializou em todo o país o nome
da carioca negra, bissexual e criada na favela da Maré.
Mas era preciso institucionalizar toda a comoção
e os sentimentos vivenciados pela família de Marielle. Assim nasceu o Instituto
Marielle Franco.
“O instituto traz esse resgate da história. A
resposta tem que ser dada para mim, enquanto mãe e para a família. O mundo
inteiro quer saber quem e por que mandaram matar Marielle”, disse à Agência Brasil Marinete da Silva, mãe da
vereadora e conselheira fundadora do Instituto Marielle Franco.
“Quem mandou matar Marielle mal podia imaginar
que ela era semente, e que milhões de marielles em todo mundo se levantariam no
dia seguinte”, diz o instituto em seu site.
A organização da sociedade civil é financiada
por meio de patrocinadores e também recebe doações de pessoas físicas. As
principais atuações são a cobrança por justiça, a defesa da memória de Marielle
– tão atacada por notícias falsas, e a personificação do legado político,
atraindo e estimulando novas lideranças periféricas, principalmente mulheres
negras e faveladas.
“É esse o papel do instituto, trazer essa mulher
para essa centralidade, dizer o quanto é importante ocupar. A mulher tem que
estar onde ela quiser, e a Marielle traz isso, com esse recorte da periferia”,
explica Marinete.
Inspiração
Até 2022, o Instituto Marielle foi dirigido pela
irmã da vereadora, Anielle Franco. Ao ser nomeada ministra da Igualdade Racial
do governo Lula, em 2023, o cargo foi ocupado por Lígia Batista. A também
mulher negra e periférica conhecia Marielle desde antes de ela se tornar
vereadora. A defesa dos direitos humanos foi o que uniu as duas. Lígia
trabalhava com o tema na organização não governamental (ONG) Anistia
Internacional Brasil.
“A gente acredita na possibilidade de criar
futuros para que pessoas como Marielle possam não só acessar, mas também
permanecer em espaços de poder e tomada de decisão e, efetivamente, conseguir
transformar a nossa democracia e, de fato, seguir lutando por justiça,
dignidade e bem viver para todo mundo”.
Diretora-executiva do Instituto Marielle Franco,
Ligia Batista - Tomaz Silva/Agência Brasil
O instituto é um catalisador de ações como
cursos de formação em direitos humanos, organização de seminários e proposição
de articulação entre outras organizações da sociedade civil e coletivos,
notadamente de populações periféricas e minorias representativas, como negros e
a comunidade LGBTQIA+.
“É fundamental poder inspirar as novas gerações
a entender como nossa vida é atravessada pelas desigualdades de gênero, de
raça, de classe, mas também se entender enquanto um ator protagonista nesse
processo, porque a gente sabe que as estruturas políticas não têm servido aos
nossos propósitos de vida. Então é fundamental a gente seguir inspirando,
fortalecendo, formando novas gerações de lideranças políticas para que elas
consigam, junto com a gente, transformar essas estruturas de poder”, descreve
Lígia à Agência Brasil.
Rede de sementes
O logotipo do Instituto Marielle é a
representação de sementes. Uma simbologia que remete a um dos verbos mais
conjugados pela iniciativa: semear, ou seja, criar consciência social em jovens
periféricos.
Uma integrante da rede de sementes é a
professora de cursinho pré-vestibular comunitário Raquel Marte, de Niterói,
região metropolitana do Rio de Janeiro. Formada em letras e cursando atualmente
produção cultural, foi no instituto que teve mais contato com cursos e
articulações em prol da defesa dos direitos humanos.
“Eu tive esse tipo de conteúdo na faculdade. Mas
boa parte das participantes [da rede de sementes] são pessoas do povo, pessoas
de pouca instrução e, por meio do instituto, elas têm acesso também a conhecer
os seus direitos de cidadãos. Por meio do acesso a informações corretas é que a
gente pode fazer qualquer tipo de mudança na sociedade civil”, diz Raquel,
acrescentando que o conhecimento é uma espécie de antídoto para campanhas de
desinformação e fake news.
Agenda Marielle
O instituto busca também ter diálogo com outra
ponta do processo político: os representantes eleitos. Por meio da Agenda
Marielle – um conjunto de pautas e práticas antirracistas, antiLGBTfóbicas,
feministas e populares – há uma busca por articulações que funcionam como uma
espécie de cobrança por ações políticas.
“Essa relação se dá, fundamentalmente, a partir
de uma provocação que a gente faz, tanto para candidaturas, mas também para
aquelas que são eleitas, para que se comprometam com as nossas pautas e as
nossas práticas. A gente convoca as candidaturas progressistas, candidaturas
que se inspiram nesse símbolo de luta que a Marielle se tornou, a assinarem e
defenderem essa agenda durante a sua atuação enquanto parlamentares. Acho que
esse é um caminho que a gente tem explorado que é bem potente”, conta Lígia.
Para o professor de ciência política João Feres,
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o diálogo com parlamentares
precisa atingir um maior espectro político para ter mais resultado.
“As organizações da sociedade civil têm
investido muito nas relações com o Legislativo, atividade muito difícil de
executar, mas de suma importância. Os donos do capital têm recursos abundantes
para contratar escritórios de lobby que
se dedicam a esse trabalho diuturnamente. Já as organizações, para competir,
precisam promover a profissionalização dessa atividade, algo que não é barato.
A questão é que não basta estreitar contatos com políticos já alinhados, é
preciso exercer pressão sobre aqueles que se encontram nas bordas do tema, por
assim dizer, isto é, os que não têm interesses muitos intensos contrários à
agenda e que poderiam ser ‘ganhos’ para a causa”, avalia.
Violência Política
Apesar do entusiasmo pela participação política,
Lígia ressalta que o maior desafio do instituto atualmente está justamente na
representação política. Mas especificamente na violência política.
“O maior desafio é justamente o quanto a
violência política não só afasta as pessoas de quererem disputar a política
institucional, mas também o quanto a violência política de quem está lá dentro,
de quem vive esse dia a dia, acaba minando possibilidade de construção de
outros mundos possíveis”, aponta.
“Para nós, o combate à violência política de
gênero e raça é fundamental porque esse fenômeno atravessa muito a vida de
mulheres negras, pessoas LGBT, pessoas de favela e periferia. A gente acha que
o fim da violência política vai fortalecer a democracia brasileira”,
complementa.
Sociedade civil
O Instituto Marielle é mais uma organização no
arco de movimentos da sociedade civil que busca levar protagonismo para
cidadãos.
“Sem participação não há cidadania, sem
participação não se realiza o jogo de forças necessário para criar, implementar
medidas, monitorar e exigir a realização das responsabilidades dos Estados
nacionais em matéria de direitos humanos, sociais, culturais, políticos”, disse
à Agência Brasil a diretora
executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck.
“Marielle era fruto dos movimentos de mulheres
negras e, em sua geração, deixou sua contribuição para amplificar as vozes das
populações historicamente silenciadas”.
Jurema entende que a luta por justiça para
Anderson e Marielle vai além de uma resposta a um crime específico.
“Diz respeito, sobretudo, a garantir que mortes
brutais como a dela e de Anderson não se repitam - como já tem se repetido - em
completa impunidade em todo o Brasil”.
A diretora da Anistia Internacional Brasil
acredita que o assassinato da ativista serviu como um potencializador do
alcance de Marielle.
“O ativismo de Marielle como mulher, negra,
bissexual, mãe, sempre foi algo inspirador, com muita potência. Após o
assassinato, somamos toda essa trajetória ao desejo de justiça para
continuarmos a luta que é não só a defesa dos direitos humanos, mas também dos
defensores e defensoras de direitos nesse país” avalia.
Na avaliação do professor da Uerj João Feres
atuações de instituições da sociedade civil como o Instituto Marielle
conseguiram “uma transformação cultural no Brasil sem precedentes, que é
colocar a desigualdade racial e de gênero como pauta de grande importância”.
“Essa transformação cultural se deu em conjunto
com as instituições públicas e privadas cada vez mais sensíveis a essa pauta”
destaca. Para o cientista político, isso só foi concretizado durante anos de
governos progressistas, mais abertos à participação da sociedade civil do que
os governos de direita.
“O Instituto Marielle surge em uma fase 2.0
dessa luta, por assim dizer. É notável o fato de que tenha surgido e ganhado
força no contexto nada propício de extrema direita do [ex-presidente Jair]
Bolsonaro”, considera Feres.
Março por justiça
O Instituto Marielle organiza e divulga diversas
ações (inclusive organizadas por terceiros) previstas para o marco de 6 anos do
assassinato de Anderson e da vereadora. Na manhã desta quinta-feira (14) haverá
uma missa na Igreja Nossa Senhora do Parto, no centro do Rio de Janeiro.
O local é emblemático, pois fica a poucos metros
do Buraco do Lume, uma praça pública em que Marielle costumava fazer discursos.
Inclusive, atualmente há uma estátua da vereadora na praça.
Às 17h começará o Festival Justiça Por Marielle
& Anderson, na Praça Mauá, também no centro do Rio. A atração será de graça
e contará com apresentações artísticas e exposições com obras em homenagem à
Marielle.
O crime
Marielle Franco e Anderson Gomes foram mortos em
uma noite de terça-feira. Ela tinha saído de um encontro no Instituto Casa das
Pretas, no centro do Rio. O carro dela foi perseguido pelos criminosos até o
bairro do Estácio, que faz ligação com a zona norte carioca. Investigações e
uma delação premiada apontam o ex-policial militar (PM) Ronnie Lessa como autor
dos disparos. Treze tiros atingiram o veículo.
Lessa está preso, inclusive tendo já sido
condenado por contrabando de peças e acessórios de armas de fogo. O autor da
delação premiada é o também ex-PM Élcio Queiroz, que dirigia o Cobalt usado no
crime.
Outro suspeito de envolvimento preso é o
ex-bombeiro Maxwell Simões Correia, conhecido como Suel. Seria dele a
responsabilidade de entregar o Cobalt usado por Lessa para desmanche. Segundo
investigações, todos têm envolvimento com milícias.
No fim de fevereiro, a polícia prendeu Edilson
Barbosa dos Santos, conhecido como Orelha. Ele é o dono do ferro-velho acusado
de fazer o desmanche e o descarte do veículo usado no assassinato. O homem já
havia sido denunciado pelo Ministério Público em agosto de 2023. Ele é acusado
de impedir e atrapalhar investigações.
Apesar das prisões, seis anos após o crime
ninguém foi condenado. Desde 2023, a investigação iniciada pela polícia do Rio
de Janeiro está sendo conduzida pela Polícia Federal.
Fonte: Brasil 247 com Agência Brasil
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