segunda-feira, 18 de março de 2024

Lava Jato distorceu a Justiça, ajudou extremistas e abalou a economia

 

“Faltou criarmos uma comissão da verdade para a ‘lava jato’”, defende o jurista Fabio de Sa e Silva

Jornalista Mirela Araújo Filgueiras explica em artigo como além das fake news, o próprio jornalismo impresso foi propagador de discursos de ódio, contribuindo para o impeachment e para o atual clima de hostilidade e rivalidade política na sociedade brasileira; "Veículos do jornalismo tradicional, como Folha de São Paulo, O Globo e Estado de São Paulo deram uma cobertura bastante espetacularizada do impeachment e da Lava Jato, aproximando-se de um jornalismo marrom de propagação de boatos, sem provas e com uso de fontes anônimas", diz ela
Jornalista Mirela Araújo Filgueiras explica em artigo como além das fake news, o próprio jornalismo impresso foi propagador de discursos de ódio, contribuindo para o impeachment e para o atual clima de hostilidade e rivalidade política na sociedade brasileira; "Veículos do jornalismo tradicional, como Folha de São Paulo, O Globo e Estado de São Paulo deram uma cobertura bastante espetacularizada do impeachment e da Lava Jato, aproximando-se de um jornalismo marrom de propagação de boatos, sem provas e com uso de fontes anônimas", diz ela (Foto: Aquiles Lins)

Consultor Jurídico - A autoapelidada “operação lava jato”, que está completando dez anos, distorceu a Justiça Criminal, gerou a ascensão de políticos de extrema direita e abalou a economia brasileira. Ainda assim, mesmo com todos os abusos, não será surpresa se futuras investigações usarem os métodos lavajatistas. É o que avaliam os especialistas no tema ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Em 17 de março de 2014, foi deflagrada a primeira fase da “lava jato”, com a prisão preventiva do doleiro Alberto Youssef. Três dias depois, a mando do então juiz Sergio Moro, foi preso o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa.

Após meses encarcerado, e com medo de que suas filhas também fossem para a prisão, Costa firmou, em agosto daquele ano, o primeiro acordo de colaboração premiada da “lava jato”. No mês seguinte, foi a vez de Youssef — mesmo tendo voltado a cometer crimes após celebrar um termo de delação premiada no “caso Banestado”.

A colaboração premiada, para pessoas físicas, havia sido criada menos de um ano antes, com a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013). Já a Lei Anticorrupção (12.846/2013) estabeleceu o acordo de leniência, destinado às empresas.

A “lava jato” foi turbinada pelos acordos de leniência e de colaboração premiada. O caso, que começou com suspeitas de lavagem de dinheiro por meio de um posto de gasolina em Brasília, cresceu por causa das delações de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef — eles foram os primeiros a mencionar irregularidades na Petrobras.

A partir dali, diversos outros investigados resolveram colaborar com a Justiça, seja pela possibilidade de receber uma punição mais branda — já que a regra era a condenação a altas penas —, seja por medo de ficar preso preventivamente por tempo excessivo, prática corriqueira da “cultura lavajatista”.

Ao mesmo tempo, diversas empreiteiras, como Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa, firmaram acordos de leniência para poder continuar em operação. Por meio deles, as empresas se comprometeram a pagar pesadas multas.

Porém, os acordos de colaboração premiada firmados na “lava jato” têm cláusulas que violam dispositivos da Constituição — incluindo direitos e garantias fundamentais —, do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984). Isso foi o que apontou levantamento feito pela ConJur.

Após decisões dos ministros do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli e André Mendonça, os acordos de leniência da “lava jato” serão revisados. Advogados das empreiteiras reclamam da reclassificação de situações como as doações eleitorais, que foram descritas como propina e corrupção, aumentando muito as multas e inviabilizando as atividades das companhias.

A “lava jato” minou as bases da política brasileira. A ex-presidente Dilma Rousseff sofreu impeachment por supostas violações a regras financeiras, mas o motivo oculto foram as acusações de corrupção na Petrobras. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado em processo apressado e impedido de se candidatar ao cargo em 2018 — ele liderava as pesquisas de intenção de voto. E a demonização da política abriu as portas para extremistas de direita. Um deles, Jair Bolsonaro, foi eleito presidente.

Os dois principais atores da autodenominada força-tarefa, Sergio Moro e Deltan Dallagnol, deixaram, respectivamente, a magistratura e o Ministério Público Federal para ingressar formalmente na política. Moro virou ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro, o principal opositor ao PT, e posteriormente foi eleito senador pelo União Brasil do Paraná. Dallagnol elegeu-se deputado federal pelo mesmo estado. Porém, o ex-procurador teve seu mandato cassado, e Moro pode seguir pelo mesmo caminho.

Legado da ‘lava jato’

Dez anos depois de seu início, a “lava jato” deixou um “péssimo legado” para o Brasil, afirma Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá.

“A ‘lava jato’ foi uma espécie de ‘mal fundamental do Direito’. Um mal do qual tudo emerge. A holding do mal que desgastou o Direito. E criou uma multidão de reacionários e fascistas. Gente que, mesmo sendo do Direito, odeia a Constituição. Fossem médicos, fariam passeatas contra antibióticos.”

O impacto mais evidente da “lava jato” foi o de desestabilizar o arranjo das forças político-partidárias no país, contribuindo para o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de políticos de extrema-direita, de acordo com a juíza federal Fabiana Alves Rodrigues, autora do livro Lava Jato: Aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça.

Um dos principais fatores da derrocada da “lava jato”, aponta ela, foi o comportamento de Moro e Dallagnol após deixarem os cargos de juiz federal e procurador da República, respectivamente.

“Além da participação direta de Sergio Moro no governo de Jair Bolsonaro, o que já despertava dúvidas sobre sua imparcialidade na ‘lava jato’, ele e Dallagnol seguiram no debate público como combatentes da corrupção apenas quando envolvesse os governos do PT, com críticas quase obsessivas ao atual presidente. As redes sociais de ambos são silentes sobre episódios de corrupção envolvendo o governo Bolsonaro. Como políticos, obviamente ambos têm o direito de manifestar suas preferências. Mas o comportamento presente repercute na avaliação que podemos fazer da atuação pretérita de ambos na ‘lava jato’, gerando a percepção de que a atuação de ambos não se pautou pelo respeito à lei e às regras do jogo”, analisa Fabiana.

Além disso, a “lava jato” serve como exemplo de como a via criminal “está longe de ser uma boa ferramenta para resolver problemas coletivos e prevenir conflitos sociais”, declara a juíza, ressaltando os prejuízos causados à política institucional e ao Poder Judiciário.

A investigação gerou impactos negativos nos campos jurídico, econômico e político, destaca Fabio de Sa e Silva, professor de Estudos Internacionais e Estudos Brasileiros na Universidade de Oklahoma (EUA) e estudioso do lavajatismo.

Na área jurídica, a “lava jato” foi “um laboratório de soluções heterodoxas e autoritárias”, muitas delas, em um primeiro momento, chanceladas pelo STF. Na economia, a investigação afetou empresas de setores importantes — óleo, gás e construção civil —, com cortes de empregos em toda a cadeia de produção.

“No plano político, que é o que mais me interessa, a ‘lava jato’ criou condições para a ascensão de Bolsonaro ao poder — tanto por ter afastado o candidato que liderava as pesquisas no pleito de 2018 quanto por ter legitimado a gramática política autoritária que dá base ao bolsonarismo. Nisso está incluído até mesmo o ódio contra o STF, que, como demonstrei em uma pesquisa, foi mobilizado pela operação antes mesmo de Bolsonaro, para tentar acuar tribunais superiores e fazer prevalecer suas teses pela força bruta”, opina Sa e Silva.

“O maior legado da ‘lava jato’ é o autoritarismo bolsonarista, com o esfacelamento momentâneo do partido que estava no poder (PT)”, afirma o criminalista Alberto Zacharias Toron. “Outro legado foi o desrespeito ao devido processo legal, mas na sua contraface tivemos a grandeza da Suprema Corte, que reafirmou os valores fundamentais do processo penal expressos na Constituição.”

O retrato que ficará da “lava jato” é o de uma investigação que foi fabricada jurídica e midiaticamente para ser considerada a grande “salvação” do país no combate à corrupção, que alçou juízes a heróis e que desvirtuou regras de um processo penal democrático, ressalta a advogada Maíra Fernandes.

“Desde aquela época, a advocacia e a academia apontavam que a ‘lava jato’ prendia temporária ou preventivamente sem necessidade, apenas para forçar colaborações; manipulava essas colaborações, obrigando os colaboradores a dizer o que ela queria ouvir; e forjava provas”, diz Maíra. Ela também menciona as quebras de sigilo ilegais, até mesmo de advogados, o cerceamento do direito de defesa e o conluio entre Moro e integrantes do MPF, explicitado pelas mensagens inicialmente reveladas pelo site The Intercept Brasil.

Maíra ainda aponta que a competência da “lava jato” não poderia ter sido fixada em Curitiba, não só em relação aos processos contra Lula, como reconheceu o STF, mas em relação a todos os que diziam respeito à Petrobras.

Episódios decisivos

Um dos episódios mais representativos do que foi a “lava jato” foi a divulgação ilegal das conversas entre a então presidente Dilma Rousseff e o então ex-presidente Lula, que tinha sido nomeado ministro da Casa Civil.

“A ‘lava jato’ será lembrada pela desnecessária e odiosa condução coercitiva do presidente Lula para ser ouvido pela Polícia Federal e pelo vazamento seletivo de dados da investigação à Rede Globo, especialmente pelo vazamento da conversa da ex-presidente Dilma com Lula no episódio de sua nomeação para a chefia da Casa Civil. Também será lembrada pela dificuldade que colocou ao exercício da advocacia, inclusive negando acesso aos autos e fragmentando as narrativas em múltiplas e extensas denúncias. Um ponto positivo da ‘lava jato’ foi o fim dela, com todo o respeito”, afirma Toron.

Lenio Streck ressalta a tentativa de criar um fundo, com dinheiro da Petrobras, para ser administrado pelos procuradores da “lava jato”. O acordo, que previa o depósito de R$ 2,5 bilhões no tal fundo, foi assinado em 2019. A tentativa de criar a fundação foi barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, que determinou o bloqueio dos valores depositados na conta da 13ª Vara Federal de Curitiba.

“A ‘lava jato’ será lembrada pelo autoritarismo e voluntarismo. Será lembrada pelo conluio. E pelo prejuízo de mais de US$ 100 bilhões. Pela picaretagem. Pela arrogância. Pela fundação de R$ 2,5 bilhões. Não há pontos positivos. O Brasil quase perdeu a democracia por causa dessa gente. Por causa de Moro, Dallagnol e os filhos de Januário, sabe se lá o que isso quer dizer. O que dizer de gente como (o ex-procurador da República) Carlos Fernando dos Santos Lima? O que a história dirá dele e dos demais? Bolsonaro e o bolsonarismo não existiriam sem essa gente. A criminalização da política gerou parte do tipo de parlamentares que temos hoje. Não existiria Carla Zambelli sem a ‘lava jato’. Nem Carlos Jordy, nem Bibo Nunes. Eles são filhos da ‘lava jato’. Outsiders paradoxalmente insiders da política”, diz Lenio.

Fabio de Sa e Silva cita a ameaça velada do então comandante das Forças Armadas, general Eduardo Villas Bôas, ao STF. Em 3 de abril de 2018, véspera do julgamento do Habeas Corpus de Lula pela corte, o militar publicou em sua conta no Twitter: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”.

Depois, em entrevista à Folha de S.Paulo, disse que pretendia “intervir” caso o Supremo concedesse o HC. “Temos a preocupação com a estabilidade, porque o agravamento da situação depois cai no nosso colo. É melhor prevenir do que remediar”, declarou o general. Por 6 votos a 5, a corte negou o HC de Lula, permitindo que ele fosse preso e, posteriormente, proibido de se candidatar a presidente.

“É impossível olhar para esses eventos e não enxergar uma naturalização da expectativa de tutela do poder civil por militares, um dos gargalos democráticos depois escancarados no governo Bolsonaro e na tentativa de golpe de 8 de janeiro. E eu poderia citar diversos outros casos nos quais, tanto nos processos, quanto fora deles, a ‘lava jato’ promoveu valores antidemocráticos”, aponta Sa e Silva.

Maíra Fernandes destaca o afastamento e a prisão preventiva de Luís Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Ele foi solto um dia depois, mas continuou afastado do cargo e proibido de frequentar a universidade, e cometeu suicídio 19 dias depois. Posteriormente, foi comprovado que ele não desviou verbas da universidade.

Aprendizado para o futuro

Apesar dos inúmeros abusos da “lava jato”, que vêm gerando anulações de condenações, não é certeza de que houve um aprendizado com os erros da investigação. Assim, não será surpresa se futuros grandes casos aplicarem os métodos lavajatistas.

“Pior é que aprendemos pouco. A ‘lava jato’ se entranhou no imaginário dos lidadores do Direito. É uma ideologia. Não morre. O reacionarismo fruto da ‘lava jato’ é algo que forja um mundo de pseudoconcreticidade: um claro-escuro que é difícil de definir. O lavajatismo é algo como o chato do elevador: nunca se sabe quando aparecerá. E é como o golpista das redes sociais. Ele aparecerá a qualquer momento. Porque virou uma entidade. O golpismo de 8 de janeiro é fruto do lavajatismo. E o apoio ao golpismo é a polpa da fruta lavajatista. E tudo isso dá ‘suco de Brasil’. Estamos longe da paz”, avalia Lenio Streck.

Para Alberto Toron, o aprendizado com a “lava jato” foi o da importância de respeitar direitos e garantias individuais, além de garantir o julgamento por um juiz imparcial. “Espero que as novas operações não repitam os métodos da ‘lava jato’ e, pelo que vejo, não estão.”

As decisões do STF de declarar a suspeição de Moro e a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar Lula, além das anulações de diversas decisões da “lava jato”, representam uma correção de rumos, diz Maíra Fernandes. Mas ela não consegue ser otimista a ponto de imaginar que não surgirão casos semelhantes à “lava jato”.

“Ainda há promotores de Justiça, procuradores da República, juízes e desembargadores se inspirando no método lavajatista de realizar uma operação policial e conduzir uma ação penal: com estardalhaço midiático, prisões indevidas, buscas e apreensões desnecessárias, quebras de sigilo ilegais, grampos a escritórios de advocacia”, opina Maíra.

Futuras investigações usarão alguns dos métodos lavajatistas, mas certas estratégias específicas, como a gestão temporal dos processos para atingir resultados em colaborações premiadas, dificilmente serão repetidas, analisa Fabiana Alves Rodrigues. Isso porque várias delas só foram possíveis por causa da mobilização seletiva da estrutura estatal por trás da “lava jato”, o que incluiu a mudança nos critérios de distribuição de processos para Sérgio Moro e a alocação artificial de recursos humanos na operação, da PF, do MPF e da Receita Federal.

O aprendizado político, conforme a juíza, é que “não é uma boa estratégia macro priorizar o controle da corrupção via sistema de Justiça Criminal”. “Há mecanismos mais silenciosos e que geram menos efeitos colaterais do que uma grande operação policial”, diz ela, citando políticas de monitoramento e publicização da atuação de agentes públicos.

“Faltou criarmos uma comissão da verdade para a ‘lava jato’”, afirma Fabio de Sa e Silva.

Fonte: Brasil 247 com informações do Conjur

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