“Faltou criarmos uma comissão da verdade para a ‘lava jato’”, defende o jurista Fabio de Sa e Silva
Consultor Jurídico - A
autoapelidada “operação lava jato”, que está completando dez anos, distorceu a
Justiça Criminal, gerou a ascensão de políticos de extrema direita e abalou a
economia brasileira. Ainda assim, mesmo com todos os abusos, não será surpresa
se futuras investigações usarem os métodos lavajatistas. É o que avaliam os
especialistas no tema ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
Em 17 de março de 2014, foi deflagrada a primeira fase da
“lava jato”, com a prisão preventiva do doleiro Alberto Youssef. Três dias
depois, a mando do então juiz Sergio Moro, foi preso o ex-diretor de
Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa.
Após meses encarcerado, e com medo de que suas filhas também
fossem para a prisão, Costa firmou, em agosto daquele ano, o primeiro acordo de
colaboração premiada da “lava jato”. No mês seguinte, foi a vez de Youssef —
mesmo tendo voltado a cometer crimes após celebrar um termo de delação premiada
no “caso Banestado”.
A colaboração premiada, para pessoas físicas, havia sido
criada menos de um ano antes, com a Lei das Organizações Criminosas (Lei
12.850/2013). Já a Lei Anticorrupção (12.846/2013) estabeleceu o acordo de
leniência, destinado às empresas.
A “lava jato” foi turbinada pelos acordos de leniência e de
colaboração premiada. O caso, que começou com suspeitas de lavagem de dinheiro
por meio de um posto de gasolina em Brasília, cresceu por causa das delações de
Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef — eles foram os primeiros a mencionar
irregularidades na Petrobras.
A partir dali, diversos outros investigados resolveram
colaborar com a Justiça, seja pela possibilidade de receber uma punição mais
branda — já que a regra era a condenação a altas penas —, seja por medo de
ficar preso preventivamente por tempo excessivo, prática corriqueira da
“cultura lavajatista”.
Ao mesmo tempo, diversas empreiteiras, como Odebrecht, Andrade
Gutierrez e Camargo Corrêa, firmaram acordos de leniência para poder continuar
em operação. Por meio deles, as empresas se comprometeram a pagar pesadas
multas.
Porém, os acordos de colaboração premiada firmados na
“lava jato” têm cláusulas que violam dispositivos da Constituição — incluindo
direitos e garantias fundamentais —, do Código Penal, do Código de Processo
Penal e da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984). Isso foi o que apontou levantamento feito pela ConJur.
Após decisões dos ministros do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli e André Mendonça, os
acordos de leniência da “lava jato” serão revisados. Advogados das empreiteiras reclamam da reclassificação de
situações como as doações eleitorais, que foram descritas como propina e
corrupção, aumentando muito as multas e inviabilizando as atividades das
companhias.
A “lava jato” minou as bases da política brasileira. A
ex-presidente Dilma Rousseff sofreu impeachment por supostas violações a regras
financeiras, mas o motivo oculto foram as acusações de corrupção na Petrobras.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado em processo apressado e
impedido de se candidatar ao cargo em 2018 — ele liderava as pesquisas de
intenção de voto. E a demonização da política abriu as portas para extremistas
de direita. Um deles, Jair Bolsonaro, foi eleito presidente.
Os dois principais atores da autodenominada força-tarefa, Sergio Moro e
Deltan Dallagnol, deixaram, respectivamente, a magistratura e o Ministério
Público Federal para ingressar formalmente na política. Moro virou ministro da
Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro, o principal opositor ao PT, e
posteriormente foi eleito senador pelo União Brasil do Paraná. Dallagnol
elegeu-se deputado federal pelo mesmo estado. Porém, o ex-procurador teve seu
mandato cassado, e Moro pode seguir pelo mesmo caminho.
Legado da ‘lava jato’
Dez anos depois de seu início, a “lava jato” deixou um “péssimo legado”
para o Brasil, afirma Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá.
“A ‘lava jato’ foi uma espécie de ‘mal fundamental do Direito’.
Um mal do qual tudo emerge. A holding do mal que desgastou o Direito. E criou
uma multidão de reacionários e fascistas. Gente que, mesmo sendo do Direito,
odeia a Constituição. Fossem médicos, fariam passeatas contra antibióticos.”
O impacto mais evidente da “lava jato” foi o de
desestabilizar o arranjo das forças político-partidárias no país, contribuindo
para o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de políticos de
extrema-direita, de acordo com a juíza federal Fabiana Alves Rodrigues, autora
do livro Lava Jato:
Aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça.
Um dos principais fatores da derrocada da “lava jato”,
aponta ela, foi o comportamento de Moro e Dallagnol após deixarem os cargos de
juiz federal e procurador da República, respectivamente.
“Além da participação direta de Sergio Moro no governo de
Jair Bolsonaro, o que já despertava dúvidas sobre sua imparcialidade na ‘lava
jato’, ele e Dallagnol seguiram no debate público como combatentes da corrupção
apenas quando envolvesse os governos do PT, com críticas quase obsessivas ao
atual presidente. As redes sociais de ambos são silentes sobre episódios de
corrupção envolvendo o governo Bolsonaro. Como políticos, obviamente ambos têm
o direito de manifestar suas preferências. Mas o comportamento presente
repercute na avaliação que podemos fazer da atuação pretérita de ambos na ‘lava
jato’, gerando a percepção de que a atuação de ambos não se pautou pelo
respeito à lei e às regras do jogo”, analisa Fabiana.
Além disso, a “lava jato” serve como exemplo de como a via
criminal “está longe de ser uma boa ferramenta para resolver problemas
coletivos e prevenir conflitos sociais”, declara a juíza, ressaltando os
prejuízos causados à política institucional e ao Poder Judiciário.
A investigação gerou impactos negativos nos campos
jurídico, econômico e político, destaca Fabio de Sa e Silva, professor de
Estudos Internacionais e Estudos Brasileiros na Universidade de Oklahoma (EUA)
e estudioso do lavajatismo.
Na área jurídica, a “lava jato” foi “um laboratório de
soluções heterodoxas e autoritárias”, muitas delas, em um primeiro momento,
chanceladas pelo STF. Na economia, a investigação afetou empresas de setores
importantes — óleo, gás e construção civil —, com cortes de empregos em toda a
cadeia de produção.
“No plano político, que é o que mais me interessa, a ‘lava
jato’ criou condições para a ascensão de Bolsonaro ao poder — tanto por ter
afastado o candidato que liderava as pesquisas no pleito de 2018 quanto por ter
legitimado a gramática política autoritária que dá base ao bolsonarismo. Nisso
está incluído até mesmo o ódio contra o STF, que, como demonstrei em uma pesquisa, foi mobilizado pela operação
antes mesmo de Bolsonaro, para tentar acuar tribunais superiores e fazer
prevalecer suas teses pela força bruta”, opina Sa e Silva.
“O maior legado da ‘lava jato’ é o autoritarismo
bolsonarista, com o esfacelamento momentâneo do partido que estava no poder (PT)”, afirma o criminalista Alberto Zacharias
Toron. “Outro legado foi o desrespeito ao devido processo legal, mas na sua
contraface tivemos a grandeza da Suprema Corte, que reafirmou os valores
fundamentais do processo penal expressos na Constituição.”
O retrato que ficará da “lava jato” é o de uma
investigação que foi fabricada jurídica e midiaticamente para ser considerada a
grande “salvação” do país no combate à corrupção, que alçou juízes a heróis e
que desvirtuou regras de um processo penal democrático, ressalta a advogada
Maíra Fernandes.
“Desde aquela época, a advocacia e a academia apontavam
que a ‘lava jato’ prendia temporária ou preventivamente sem necessidade, apenas
para forçar colaborações; manipulava essas colaborações, obrigando os
colaboradores a dizer o que ela queria ouvir; e forjava provas”, diz Maíra. Ela
também menciona as quebras de sigilo ilegais, até mesmo de advogados, o
cerceamento do direito de defesa e o conluio entre Moro e integrantes do MPF,
explicitado pelas mensagens inicialmente reveladas pelo site The Intercept Brasil.
Maíra ainda aponta que a competência da “lava jato” não
poderia ter sido fixada em Curitiba, não só em relação aos processos contra
Lula, como reconheceu o STF, mas em relação a todos os que diziam respeito à
Petrobras.
Episódios decisivos
Um dos episódios mais representativos do que foi a “lava
jato” foi a divulgação ilegal das conversas entre a então presidente Dilma
Rousseff e o então ex-presidente Lula, que tinha sido nomeado ministro da Casa
Civil.
“A ‘lava jato’ será lembrada pela desnecessária e odiosa
condução coercitiva do presidente Lula para ser ouvido pela Polícia Federal e
pelo vazamento seletivo de dados da investigação à Rede Globo, especialmente
pelo vazamento da conversa da ex-presidente Dilma com Lula no episódio de sua
nomeação para a chefia da Casa Civil. Também será lembrada pela dificuldade que
colocou ao exercício da advocacia, inclusive negando acesso aos autos e
fragmentando as narrativas em múltiplas e extensas denúncias. Um ponto positivo
da ‘lava jato’ foi o fim dela, com todo o respeito”, afirma Toron.
Lenio Streck ressalta a tentativa de criar um fundo, com dinheiro da Petrobras,
para ser administrado pelos procuradores da “lava jato”. O acordo, que previa o
depósito de R$ 2,5 bilhões no tal fundo, foi assinado em 2019. A tentativa de
criar a fundação foi barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, que
determinou o bloqueio dos valores depositados na
conta da 13ª Vara Federal de Curitiba.
“A ‘lava jato’ será lembrada pelo autoritarismo e
voluntarismo. Será lembrada pelo conluio. E pelo prejuízo de mais de US$ 100
bilhões. Pela picaretagem. Pela arrogância. Pela fundação de R$ 2,5 bilhões.
Não há pontos positivos. O Brasil quase perdeu a democracia por causa dessa
gente. Por causa de Moro, Dallagnol e os filhos de Januário, sabe se lá o que
isso quer dizer. O que dizer de gente como (o
ex-procurador da República) Carlos Fernando dos Santos Lima? O que a
história dirá dele e dos demais? Bolsonaro e o bolsonarismo não existiriam sem
essa gente. A criminalização da política gerou parte do tipo de parlamentares
que temos hoje. Não existiria Carla Zambelli sem a ‘lava jato’. Nem Carlos
Jordy, nem Bibo Nunes. Eles são filhos da ‘lava jato’. Outsiders paradoxalmente
insiders da política”, diz Lenio.
Fabio de Sa e Silva cita a ameaça velada do então
comandante das Forças Armadas, general Eduardo Villas Bôas, ao STF. Em 3 de
abril de 2018, véspera do julgamento do Habeas Corpus de Lula pela corte, o
militar publicou em sua conta no Twitter: “Nessa situação que vive o Brasil,
resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem
do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses
pessoais?”.
Depois, em entrevista à Folha
de S.Paulo, disse que pretendia “intervir” caso o Supremo concedesse o HC.
“Temos a preocupação com a estabilidade, porque o agravamento da situação
depois cai no nosso colo. É melhor prevenir do que remediar”, declarou o
general. Por 6 votos a 5, a corte negou o HC de Lula, permitindo que ele fosse
preso e, posteriormente, proibido de se candidatar a presidente.
“É impossível olhar para esses eventos e não enxergar uma
naturalização da expectativa de tutela do poder civil por militares, um dos
gargalos democráticos depois escancarados no governo Bolsonaro e na tentativa
de golpe de 8 de janeiro. E eu poderia citar diversos outros casos nos quais,
tanto nos processos, quanto fora deles, a ‘lava jato’ promoveu valores
antidemocráticos”, aponta Sa e Silva.
Maíra Fernandes destaca o afastamento e a prisão
preventiva de Luís Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal
de Santa Catarina. Ele foi solto um dia depois, mas continuou afastado do cargo
e proibido de frequentar a universidade, e cometeu suicídio 19 dias depois.
Posteriormente, foi comprovado que ele não desviou verbas da universidade.
Aprendizado para o futuro
Apesar dos inúmeros abusos da “lava jato”, que vêm gerando
anulações de condenações, não é certeza de que houve um aprendizado com os
erros da investigação. Assim, não será surpresa se futuros grandes casos
aplicarem os métodos lavajatistas.
“Pior é que aprendemos pouco. A ‘lava jato’ se entranhou
no imaginário dos lidadores do Direito. É uma ideologia. Não morre. O
reacionarismo fruto da ‘lava jato’ é algo que forja um mundo de
pseudoconcreticidade: um claro-escuro que é difícil de definir. O lavajatismo é
algo como o chato do elevador: nunca se sabe quando aparecerá. E é como o
golpista das redes sociais. Ele aparecerá a qualquer momento. Porque virou uma
entidade. O golpismo de 8 de janeiro é fruto do lavajatismo. E o apoio ao
golpismo é a polpa da fruta lavajatista. E tudo isso dá ‘suco de Brasil’.
Estamos longe da paz”, avalia Lenio Streck.
Para Alberto Toron, o aprendizado com a “lava jato” foi o
da importância de respeitar direitos e garantias individuais, além de garantir
o julgamento por um juiz imparcial. “Espero que as novas operações não repitam
os métodos da ‘lava jato’ e, pelo que vejo, não estão.”
As decisões do STF de declarar a suspeição de Moro e a
incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar Lula, além das
anulações de diversas decisões da “lava jato”, representam uma correção de
rumos, diz Maíra Fernandes. Mas ela não consegue ser otimista a ponto de
imaginar que não surgirão casos semelhantes à “lava jato”.
“Ainda há promotores de Justiça, procuradores da
República, juízes e desembargadores se inspirando no método lavajatista de
realizar uma operação policial e conduzir uma ação penal: com estardalhaço
midiático, prisões indevidas, buscas e apreensões desnecessárias, quebras de
sigilo ilegais, grampos a escritórios de advocacia”, opina Maíra.
Futuras investigações usarão alguns dos métodos
lavajatistas, mas certas estratégias específicas, como a gestão temporal dos
processos para atingir resultados em colaborações premiadas, dificilmente serão
repetidas, analisa Fabiana Alves Rodrigues. Isso porque várias delas só foram
possíveis por causa da mobilização seletiva da estrutura estatal por trás da
“lava jato”, o que incluiu a mudança nos critérios de distribuição de processos
para Sérgio Moro e a alocação artificial de recursos humanos na operação, da
PF, do MPF e da Receita Federal.
O aprendizado político, conforme a juíza, é que “não é uma
boa estratégia macro priorizar o controle da corrupção via sistema de Justiça
Criminal”. “Há mecanismos mais silenciosos e que geram menos efeitos colaterais
do que uma grande operação policial”, diz ela, citando políticas de
monitoramento e publicização da atuação de agentes públicos.
“Faltou criarmos uma comissão da verdade para a ‘lava
jato’”, afirma Fabio de Sa e Silva.
Fonte: Brasil 247 com informações do Conjur
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