Especialistas apontam riscos de uso ilegal desses produtos
Assim como
a Agência Brasileira de
Inteligência (Abin), governos estaduais também firmaram
contratos com a empresa israelense Cognyte, que fornece soluções de tecnologia
da informação como o software espião FirstMile. Os indícios de uso
irregular deste aplicativo pela Abin são alvo de investigação pela Polícia
Federal (PF), assim como os contratos de secretarias estaduais são
questionados.
Secretarias
de segurança de pelo menos dez estados mantêm contratos com a Cognyte desde 2019:
Alagoas, Amazonas, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraná,
Rio Grande do Sul e São Paulo. Esses acordos foram firmados sem licitação para
o fornecimento de soluções de inteligência, como o FirstMile, mas também de
outros serviços de tecnologia.
Para especialistas, a contratação da Cognyte pelas secretarias estaduais
de segurança se assemelha ao caso da Abin, que teria usado ilegalmente o
software para rastrear desafetos políticos do ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo o
diretor da ONG Data Privacy, Rafael Zanatta, essa conduta da agência não é um
fato isolado.
"É um risco à democracia, pois esse serviço neutraliza direitos
básicos de associação, de privacidade, e proteção de dados pessoais. É perigoso
naturalizar esse monitoramento sem ordem judicial, isso para associações e
lideranças políticas e sociais é ruim", destaca.
No Rio Grande do Sul, a Secretaria Estadual de Segurança adquiriu o
FirstMile e GI2-S, mesmo caso de São Paulo. A Secretaria Estadual de Segurança
do Maranhão também adquiriu produtos da Cognyte para monitorar sinais de
telefone. Alagoas e Paraná compraram o GI2, ferramenta que extrai as
coordenadas de GPS dos aparelhos com conexão 3G.
No Mato Grosso, a Secretaria Estadual de Segurança fechou contrato para
a compra do equipamento GI2-S, com dispensa de licitação, por R$ 4,6 milhões. O
aparelho serve para localizar celulares. Em nota, o governo justificou que a
polícia tem de se aparelhar para combater novos tipos de crimes e que a
ferramenta não intercepta os telefones, mas se vale do sinal de celular para
apontar a localização aproximada dos alvos. No Amazonas, foi a Polícia Civil do
estado que contratou a compra de equipamentos da Cognyte sem licitação por R$
6,4 milhões.
Uso indevido
Em 2023, o secretário de Segurança de São Paulo, Guilherme Derrite, foi
chamado à Assembleia Legislativa para prestar esclarecimentos sobre possível
uso ilegal de sistema de rastreamento. O Legislativo do Espírito Santo também
cobrou explicações do Executivo quanto ao uso de soluções da Cognyte na
segurança pública.
O comando da Polícia Militar capixaba informou na ocasião que o contrato
era confidencial, mas que não se tratava do FirstMile. Em nota, disse ainda que
as ações são realizadas com autorização judicial para combate ao tráfico de
drogas e lavagem de dinheiro. Já a Polícia Civil do Pará informou que o
equipamento é utilizado de acordo com as normas legais.
De acordo com o especialista em tecnologia e sociedade André Ramiro,
falta transparência nesses acordos. "Esses contratos com dispensa de
licitação não são acessíveis para escrutínio tanto das autoridades de
fiscalização, como o Ministério Público, como também da sociedade civil. Então
me parece que um uso ilegal e arbitrário se torna cada vez mais possível",
ressalta o pesquisador do Instituto Humboldt.
Ramiro explica que o uso de ferramentas de inteligência é uma tendência
em investigações policiais. "Essas ferramentas parecem ser uma espécie de
atalho burocrático para acesso a comunicações privadas e a dados armazenados
nos celulares de pessoas que sejam de interesse". O especialista
ressalta que apenas uma investigação posterior determinará se o uso do
software foi legal ou ilegal.
Zona cinzenta
O FirstMile da Cognyte foi adquirido pela Abin em 2018 e fornecia a
localização aproximada de celulares. A partir do número de telefone, o software
verifica a localização dos alvos em relação a Estações Rádio Base (conexão
entre telefones e companhias) e gera um mapeamento quanto à movimentação de
qualquer aparelho monitorado. O software teria capacidade para monitorar até 10
mil celulares por ano.
"A hipótese de que o FirstMile compunha uma estratégia de produção
de dossiês e narrativas sobre alvos é plausível. Pode fazer isso ou não? É uma
grande questão jurídica", afirma Zanatta.
Os especialistas consideram que o uso de ferramentas como o FirstMile é
ilegal, pois viola a privacidade dos usuários sem ordem judicial ou
investigação criminal e se basearia em falhas na infraestrutura de proteção das
operadoras de telefonia para rastrear os alvos. O artigo 5 da
Constituição Federal, que trata dos direitos fundamentais, determina "o
sigilo da correspondência e das comunicações, telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial".
A empresa, por sua vez, alega que a obtenção da localização é um
metadado (parte da estrutura de um dado principal) e não o dado em si, e por
isso, justifica que não há interceptação de informações e nem ilegalidade no
uso do FirstMile.
Método autoritário
A Cognyte é associada à atuação de outros governos autoritários. Uma
empresa pública de Myanmar firmou contrato com a fornecedora israelense antes
do golpe de Estado de 2021. O mesmo ocorreu no Sudão do Sul, onde os produtos
da Cognyte foram usados para perseguir desafetos políticos do governo.
Por isso, Ramiro avalia que a legislação brasileira favorece "uma
tendência a usos autoritários dessas plataformas e há a necessidade de uma
reforma de entidades de fiscalização". Para ele, há uma politização dos
serviços de inteligência no Brasil. "Durante o governo Bolsonaro isso
ficou claro, dado que torna sigilosos os procedimentos e os acessos às
ferramentas de vigilância. Me parece que é uma instância governamental para o
cometimento de um crime perfeito, que não deixa registros".
E acrescenta: "Direitos fundamentais como de associação ou de
manifestação, por exemplo, que são fundamentalmente dependentes da liberdade de
expressão, também são afetados por essas ferramentas e o uso político delas,
assim como a formação de opinião política e formação de grupos".
Abin paralela
Em janeiro, a Polícia Federal deflagrou uma série de operações
destinadas a investigar uma organização criminosa na Abin. Segundo a PF, o
grupo utilizou o FirstMile para rastrear a localização de autoridades públicas,
classificadas como de oposição a Bolsonaro.
Os monitorados vão desde políticos, como o ex-presidente da Câmara,
Rodrigo Maia, a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), até a promotora
Simone Sibilio, que atuou no caso que apura o assassinato de Marielle Franco.
Servidores públicos também foram espionados. Os investigadores alegam que
recursos da Abin foram usados para atender a interesses privados com viés
ideológico.
A polícia analisa o uso indevido do sistema de inteligência FirstMile
entre os anos de 2019 e 2021, vendido pela Cognyte à Abin. O sistema registrou
60.734 consultas à localização dos alvos no período. O inquérito sobre o caso
tramita no STF, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
Fonte: Brasil de Fato
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