segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Alice Walker: "Temos que ser lúcidos para ver o que é real e não ser enganados"

 A escritora afro-americana vencedora do Prêmio Pulitzer por seu romance "A Cor Púrpura" fala sobre seu trabalho, o racismo nos Estados Unidos e sua admiração pela revolução cubana

Alice Walker (Foto: REUTERS/Kimberly White)

Por Salim Lamrani (*), no Infobae - Nascida em 1944, em Eatonton, Geórgia, em uma família de agricultores de oito pessoas, Alice Walker experimentou desde cedo a segregação racial que assolava o sul dos Estados Unidos. Na adolescência, consciente da realidade da opressão, envolveu-se na luta pela igualdade e contra as políticas discriminatórias impostas pelas autoridades supremacistas.

Depois de uma educação brilhante, dedicou-se à escrita e publicou seu primeiro livro de poesia aos 24 anos, enquanto seguia uma carreira acadêmica em universidades de prestígio, incluindo a Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde lecionou estudos afro-americanos. Em 1983, ela se tornou a primeira mulher negra a ganhar o Prêmio Pulitzer por seu romance A Cor Púrpura, atualmente um dos cinco livros mais lidos nos Estados Unidos.

Feminista militante, Alice Walker coloca a liberdade e a justiça social no centro de sua ação. Fortemente influenciada pela Revolução Cubana e sua mensagem universal de emancipação, luta há anos contra as sanções econômicas que assolam a população da ilha. Também está profundamente envolvida na preservação do meio ambiente e na promoção do progresso humano.

No decorrer desta conversa com o InfobaeCultura, Alice Walker relembra sua infância no Sul segregacionista e seu compromisso com a luta contra o racismo institucional. Fala sobre a conquista do Prêmio Pulitzer e os obstáculos erguidos contra escritores negros. Finalmente,fala longamente sobre a Revolução Cubana, que foi uma profunda fonte de inspiração para ela e para muitos intelectuais de sua geração.

—Onde você nasceu e que lembranças você tem da sua infância?

"Nasci no sul dos Estados Unidos, no meio do campo, um lugar lindo, e cresci com meus pais, meus irmãos e minhas irmãs. Uma das minhas irmãs se mudou quando eu tinha um ano de idade porque não havia colégio para crianças negras em nossa cidade. Eu amava muito meus pais e era muito próxima dos meus avós. Lembro-me de muitas vezes fugir para visitá-los. Sua vida era muito simples: plantar, cultivar, comer, atender todas as minhas necessidades. A simplicidade de seu estilo de vida era perfeita para mim. Hoje tenho a mesma idade que eles tinham quando os conheci e percebo que emulei o estilo de vida deles ao optar por viver de forma muito simples, com galinhas e uma horta.

Tínhamos a nossa própria comunidade. Claro que havia segregação, mas quando somos crianças não nos apercebemos disso. Vivíamos em uma comunidade de pessoas que se preocupavam conosco. Nunca tivemos moradia digna. Eles poderiam nos forçar a nos mudar todos os anos. Meu pai e minha mãe trabalharam muito para evitar que a gente sentisse opressão no dia a dia. Raramente víamos pessoas brancas. Víamos apenas o proprietário da terra e quem pudesse nos obrigar a sair.

—Como a opressão racial se expressavaem um sistema comandado por homens brancos e ricos?

É preciso dizer que, na maioria dos casos, eles não eram tão ricos. Eles eram apenas brancos. E nem sempre eram homens. Nosso senhorio mais rigoroso era uma mulher, talvez até uma parente. Ela, claro, teria negado a possibilidade, pelo menos em público. Naquela sociedade, uma pessoa branca era automaticamente considerada superior a qualquer pessoa negra, mesmo que tivesse um diploma universitário e mesmo que fosse parente. Quando se considera a doença profunda dos Estados Unidos, cujos fundamentos foram a exploração de africanos e descendentes, fica mais fácil entender a tragédia de nossa atual situação política. Os EUA devem mais dinheiro do que jamais poderão pagar, e a depredação e escravização do próprio país não é impossível.

Eu era muito consciente de que éramos pobres. Éramos pobres porque trabalhávamos para pessoas que possuíam todas as terras, todas as boas moradias e todas as escolas. Meus pais conseguiram construir uma escola para nossa comunidade, mas os brancos a queimaram para nos privar da educação. Construímos outra. Estávamos bem cientes da luta pela educação em nossa comunidade. Os brancos nos odiavam, mas tínhamos amor por nós mesmos. Devo dizer que, quando crianças, fomos amplamente protegidos da humilhação diária que nossos pais sofriam.

Então, quando eu tinha 17 anos, saí de casa para me juntar ao movimento contra a opressão racial e pelos direitos civis. Meus pais ficaram um pouco assustados com nosso compromisso, mas o seu amor nos havia dado a energia para lutar.

—Você se casou com um homem branco, Melvin Rosenman, em uma época em que o casamento misto era ilegal no Estado da Geórgia. Quais foram as consequências dessa união?

Os casamentos mistos eram ilegais em todo o Sul, não apenas na Geórgia, onde eu nasci.Nos casamos em Nova York e fomos muito felizes. Depois, fomos para o Mississippi para desafiar a lei e questionar a decisão legal iníqua que tornou o ilegal o casamento para algumas pessoas. Não sou muito fã de casamento. Mas depois de 300 ou 400 anos de opressão, não podíamos continuar dizendo às pessoas que elas não poderiam se casar, que não poderiam se unir a alguém que amavam. Pareceu-me muito natural então rebelar-me contra essa discriminação.

—Em 1982, você se tornou a primeira mulher afro-americana a ganhar o Prêmio Pulitzer por seu décimo romance, A Cor Púrpura. O que mudou para você? Isso teve impacto na forma como as mulheres negras são percebidas na sociedade estadunidense?

As pessoas costumam dizer que é o primeiro romance de um/a escritor/a negro/a a ganhar o Prêmio Pulitzer. Mas, não nos esqueçamos que, no passado, as/os negras/os não eram consideradas/os para o Pulitzer. Na época, os Estados Unidos eram um país de apartheid semelhante à África do Sul. Poucas/os negras/os conseguiam encontrar uma editora. Há uma certa hipocrisia em tudo isso, porque as pessoas parecem querer acreditar que, por todos esses anos, qualquer um –branco ou negro– poderia ganhar o Pulitzer. Isso não é verdade. Inclusive, no júri que me concedeu o prêmio, havia pelo menos uma pessoa –uma mulher branca– que era absolutamente contra, porque meu livro tratava sobre afro-americanos sobre os quais ela,aparentemente, nada sabia.

Há muitos escritores negros brilhantes que deveriam ter ganhado todos os prêmios imagináveis, muito antes de eu nascer. Faço questão de dizer isso porque sei que você entende a estrutura do racismo em nosso país. Fingem que sou a única, como se nunca houvesse outros possíveis candidatos. Muitos escritores negros poderiam ter ganhado qualquer prêmio se tivessem sido autorizados a competir durante esse apartheid estadunidense.

—Você diz que A Cor Púrpura é um remédio para muitas pessoas porque as liberta e é por isso que faz tanto sucesso.

Acho que o livro faz com que as mulheres percebam que não precisam aceitar um relacionamento com homens que seja prejudicial à sua saúde física e mental. Há muitas outras relações possíveis no mundo. Elas podem se relacionar com outras mulheres e isso é uma grande libertação. Por que você deveria se relacionar apenas com homens se você não encontrou alguém que te trate bem?

É uma libertação também para os homens. O personagem de Señor é particularmente desagradável. Infelizmente, é baseado no meu amado avô, como ele era anos antes de eu nascer. É uma oportunidade para que os homens percebam outras facetas de sua personalidade além daquela que brutaliza às mulheres. Eles podem aprender a ver as mulheres como iguais. Não é impossível.

Então, eu acho que esse é um remédio muito bom para muitas pessoas nos Estados Unidos, mas também em todo o mundo, porque a opressão das mulheres é global. É algo realmente indigno do comportamento humano. Não deveria existir, assim como o abuso infantil. Na verdade, as mulheres são frequentemente maltratadas quando estão grávidas. Deveríamos refletir coletivamente sobre esta questão.

—A forma mais antiga de dominação é a do homem sobre a mulher. Você está totalmente comprometida com a luta pelos direitos das mulheres. O que falta fazer para alcançar a verdadeira igualdade?

Ainda há tudo a ser feito, o que é realmente exasperante. Em nosso país, as mulheres perderam o direito ao aborto. Se você não pode controlar seu próprio corpo, você é umaescrava. Retrocedemos 100 anos, o que significa que a luta pela liberdade é constante e eterna. Nem precisamos pensar na difícil situação das mulheres em outras partes do mundo, onde elas nunca tiveram um sopro de liberdade.

Trabalhei durante muitos anos, dez, sobre a circuncisão feminina e o perigo que isso representa para as pessoas, especialmente em África e em certos países do Médio Oriente, mas, também, noutras regiões. É um dos maiores insultos imagináveis à humanidade.

—Quais causas têm sido fonte de inspiração para você?

—A Revolução Cubana. Quando descobri que Fidel falava em nome de pessoas que eram exatamente como meus pais, pessoas cujos filhos não tinham sapatos, que tiveram que construir suas próprias escolas apenas para ver o proprietário queimá-las, foi natural para mim sentir que tinha encontrado um irmão, que havia alguém no mundo que podia ver todas aquelas injustiças e denunciá-las.

Ao seu lado estava Che. Gostaria também de mencionar a revolucionária Celia Sánchez, que era muito próxima do Che e de Fidel, mas de quem pouco se fala. Em Cuba, ela é homenageada; mas, fora de suas fronteiras, é ignorada porque o mundo só vê o revolucionário masculino, apesar de ter desempenhado um papel fundamental na Revolução Cubana.

—O que a Revolução Cubana simboliza para você? O que simboliza para as pessoas que são vítimas de algum tipo de opressão?

Simboliza uma coisa, entre outras: se você se rebelar, será punido. Cuba foi punida por se rebelar, por tentar ser diferente. Convenhamos: o opressor sempre tentará punir o oprimido que nega sua condição. Eles tornarão sua vida miserável e impedirão que você se dedique à construção de uma sociedade mais justa. É exatamente o que está acontecendo com Cuba.

Então, o que devemos fazer? Devemos continuar a nos rebelar? Devemos perseverar na construção de um sistema diferente? Resistir? Render-nos? Penso muitas vezes em Cuba, que hoje sofre e sempre sofreu. Lembro-me de ter ido lá numa altura em que não havia gasolina. Os carros ficavam sem gasolina e tinham que ser empurrados. Hoje, em Cuba, há escassez de matérias-primas alimentares para os mais pobres. Há uma escassez constante.

Isso dá a impressão de um fracasso; mas,precisamos nos fazer as perguntas certas. É um fracasso quando a maioria dos cubanos que nunca teriam recebido uma educação se não fosse pela Revolução agora tem diplomas universitários, apesar do estado de sítio a que estão submetidos? Os cubanos que deixam seu país em busca de uma vida melhor são educados e terão melhores oportunidades (No original, em espanhol, está sem interrogação; mas, vendo o sentido do texto, me parece uma pergunta... O que fazer? Deixamos mesmo como afirmação?).Temos de insistir nisso. Cuba, realmente, éum assunto fascinante.

—O que você acha da política dos EUA em relação a Cuba?

A política dos EUA é de punição coletiva. Temos a impressão de que somos governados por calvinistas do século XVIII, por pessoas que nos queimariam na fogueira. É uma política odiosa. De fato, essa situação dá aosEstados Unidos uma má fama. Gostaria que as pessoas compreendessem as consequências de tamanha dureza de coração, ainda maisquando afirmamos ser um país cristão. Nós garantimos que as crianças passem fome, que não tenham sapatos, que os idosos não tenham remédios. Lembro-me de visitar uma maternidade em Cuba e não havia quase nada. Não havia sabão. Não sei como o pessoal conseguia manter o local tão limpo com tanta falta de recursos. Era muito triste.

A vida nunca recompensa a mesquinhez. Essa é uma das razões pelas quais o meu país está sofrendo tanto. Achamos que somos ótimos;mas, basta olhar para a realidade das nossas próprias cidades, com tanta gente passando fome e vivendo nas ruas. Sofremos porque nossos líderes perderam toda a compaixão, se é que alguma vez tiveram alguma.

—Você encontrou-se com Fidel Castro em várias ocasiões. O que você pode nos dizer sobre ele?

Ele adorava conversar, como todos sabem, e tinha um grande senso de humor. Ele foi a pessoa mais culta que já conheci. Por outro lado, ele nunca tinha ouvido falar da circuncisão feminina e, quando contei a ele sobre isso, ele, literalmente, ficou pálido. Estava muito perturbado e queria encontrar uma maneira de acabar com essa prática bárbara. Foi ótimo, porque eu finalmente conheci um homem capaz de sentir o sofrimento das mulheres. Foi extraordinário. Gostei muito dele; me pareceu muito humanoe com a mente muito aberta.

Aprendi que nem ele nem Che sabiam dançar, o que é uma pena, porque a dança é realmente essencial para entender as conexões do corpo com a terra e a natureza. Também fiquei muito impressionada com sua capacidade de ouvir. Um dia, em uma de nossas reuniões, havia uma grande mesa e ele ouviu cada um de nós. Isso é algo que nunca aconteceria nos Estados Unidos, caso alguma vez tivéssemos a oportunidade de compartilhar a mesa do Presidente.

—Você publicou um poema chamado “Earnest and Faithful” (Sério e Fiel), em homenagem ao Che. Conte-nos sobre isso.

Vocês devem saber que eu gosto muito de traduzir nomes próprios. Ernesto e Fidel significam "Sério e Fiel", em inglês. É bonito e poético. Ambos eram sérios e fiéis, devotados à sua causa. Eles tinham uma fé inabalável e um grande amor pelo povo.

Tive a oportunidade de visitar o mausoléuonde estão os restos mortais do Che, em Santa Clara. Ele havia sido assassinado e enterrado secretamente na Bolívia. Ninguém sabia onde ele estava. Lembro-me daquela terrível foto de seu corpo sem vida, cercado pelos generais e pelas pessoas que haviam participado de sua captura. Foi muito doloroso para muitas pessoas ao redor do mundo. Fidel, então, empreendeu uma busca e, finalmente, o local onde os restos mortais do Che estavam foi descoberto e ele foi repatriado para Cuba. Tenho muita admiração, respeito e amor pelo Che.

—Na sua opinião, qual é o dever dos intelectuais?

Creio que temos que ser lúcidos o suficiente para ver o que é real e não nos deixar enganar por espelhos e fumaça. A situação no mundo é terrível e temos o dever de permanecer o mais vigilantes possível. Devemos isso às pessoas que lutaram tanto no passado. Não podemos deixar-nos enganar pelos poderes obscuros que sabem manipular tão bem a realidade.

—O que lhe indigna hoje?

Estou chocada com a magnitude do tráfico de crianças. Ouvimos histórias horríveis sobre campos de concentração e tráfico de crianças. Muitas dessas crianças são usadas para o tráfico de órgãos. É estarrecedor imaginar que a humanidade caiu tão baixo ao ponto de que há um comércio de crianças. É assustador e é algo que nunca veríamos em Cuba!

(*) Salim Lamrani é jornalista, escritor e professor titular da Universidade de La Reunión. Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos pela Universidade Sorbonne-Paris IV. Especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos.

Artigo publicado em espanhol no site https://www.infobae.com/cultura/2024/01/21/alice-walker-tenemos-que-ser-lucidos-para-ver-lo-que-es-real-y-no-dejarnos-enganar/].

Tradução: Rose Lima

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