'Modelo da Lava Jato não funcionou. Por causa de violações de direitos, de se forçar situações artificiais para manter tudo na mão de um único juiz', disse Simone Schreiber
Por Sérgio Rodas, Conjur - Em seus primeiros anos, a “lava jato” passava uma impressão de eficiência. Com base nos números de prisões preventivas e condenados, além dos valores recuperados por meio de acordos de colaboração premiada e de leniência, os atores e defensores da investigação argumentavam que ela estava promovendo uma revolução no combate ao crime organizado. Porém, com o tempo, as ilegalidades lavajatistas foram sendo descobertas, e as decisões, anuladas pelos tribunais.
Para a desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES) Simone Schreiber, relatora dos casos da “lava jato” na Corte, essa mudança de rumos reflete o perfil dos juízes que atuaram no processo de início, como Sergio Moro, ex-titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, e Marcelo Bretas, que está afastado da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro por decisão do Conselho Nacional de Justiça — mais alinhados às visões do Ministério Público.
“Foi uma onda que argumentava que havia uma situação excepcional de corrupção endêmica, que exigia soluções criativas e excepcionais, muitas vezes atropelando o devido processo legal”, aponta a magistrada, que é professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).
É claro que o sistema penal deve alcançar a elite politico-econômica, e não só os pobres, ressalta Simone. “Mas o modelo da ‘lava jato’ não funcionou”, devido às violações de direitos de acusados e à falta de imparcialidade de julgadores, avalia. Segundo ela, o caso pode servir como aprendizado para o país.
A desembargadora é autora do livro A publicidade opressiva de julgamentos criminais, resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2008 sob orientação do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso. Na obra, ela explica que a publicidade opressiva se caracteriza quando o noticiário sobre um processo fica tão ostensivo que a situação dos réus ou investigados fica prejudicada, especialmente em casos que vão a júri. A campanha midiática torna-se tão agressiva que é impossível ter um julgamento imparcial.
Na “lava jato”, procuradores da República e juízes, como Moro, usaram a imprensa para gerar publicidade opressiva contra os acusados. A estratégia deu certo, de acordo com a desembargadora, porque jornalistas não tinham tempo de analisar criticamente as informações que lhes eram repassadas por agentes públicos. Nem interesse, porque a notícia bombástica é o que mais tem peso no meio jornalístico, opina.
Simone considera positiva a regra de alternância de gênero no preenchimento de vagas para os tribunais de segunda instância, recentemente aprovada pelo CNJ — embora preveja resistência à sua implementação. Contudo, ela ressalta ser preciso também estabelecer medidas para diminuir a desigualdade racial. “O Judiciário brasileiro é totalmente branco, com raríssimas exceções”.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Simone Schreiber ainda destacou que juízes devem atuar a partir da lógica do desencarceramento e disse que o juiz das garantias deve melhorar a qualidade do processo penal.
Leia a entrevista:
ConJur — A “lava jato” se encerrou formalmente em 2021, com o fim das forças-tarefa, mas ainda há diversos inquéritos e processos em curso. Qual é o legado da operação?
Simone Schreiber — Foi uma experiência que pretendeu inaugurar uma nova maneira de lidar com os crimes de colarinho branco, como corrupção e lavagem de dinheiro. Mas depois foram identificadas várias práticas consideradas abusivas. Eles [lavajatistas] tinham um método de trabalho baseado em conquistar a opinião pública, ter a opinião pública do lado deles para poderem combater os crimes de colarinho branco. Sergio Moro falava isso desde o início. Ele deu uma entrevista na qual disse que precisava da sociedade para conseguir fazer o seu trabalho. Havia um apelo de que a sociedade tinha que estar atenta, para permitir e para dar um apoio a esse esforço de combate a crimes cometidos por pessoas que detêm poder político e econômico.
Então havia uma dimensão midiática. A “lava jato” começa com uma grande repercussão na mídia, com aquilo que a gente chama de “operação” policial. As operações da Polícia Federal são apelidadas, recebem nomes com apelo midiático. E essas operações são muito violentas, porque têm prisões, conduções coercitivas, buscas e apreensões. Todas essas medidas são feitas muito cedo, em um horário em que as pessoas estão dormindo.
Apesar disso, quando esses casos vão a julgamento, os resultados não cumprem o que prometem. Porque são processos complexos, que enfrentam muitos problemas burocráticos de condução, têm muitos réus, muitos bens bloqueados, muitos documentos amealhados. Os processos acabam ficando muito lentos e difíceis de se conduzir. Depois de todo esse tempo — a “lava jato” começou em 2014; no Rio, em 2016 —, há condenações e absolvições, há casos que foram julgados no âmbito dos Tribunais Regionais Federais. Mas ainda não há condenações definitivas, porque ainda há recursos pendentes em Brasília. Então, a impressão de eficiência, de que finalmente se está fazendo alguma coisa, é muito mais baseada na etapa inicial. A etapa inicial que ainda não tinha processo, na qual as pessoas não puderam se defender, que teve uma carga bastante invasiva.
É claro que o sistema penal não pode ser seletivo, pegar só pessoas pobres. É claro que precisamos ter mecanismos para apurar crimes cometidos por pessoas que detêm poder político e econômico, como corrupção. Mas o modelo da “lava jato” não funcionou. Por causa de violações de direitos das pessoas, de se forçar situações artificiais de conexão para manter tudo na mão de um único juiz. Isso se revelou muito ruim, por vários aspectos, como o personalismo excessivo personalismo e inviabilização dessas varas. Não houve nem um ganho de eficiência, porque as varas ficaram completamente inviabilizadas, e os juízes acabaram ficando com a imparcialidade comprometida, porque ficaram muito sujeitos à superpopularidade.
Nós não temos que desconsiderar a necessidade de se ter mecanismos de apuração e punição de crimes cometidos pela elite. Mas dentro do que a Constituição prescreve. Precisamos melhorar o Sistema de Justiça Penal para tentar trabalhar isso sem violar direitos fundamentais. A “lava jato” talvez tenha sido um aprendizado.
ConJur — Passado o frenesi inicial, muitas decisões da “lava jato” vêm sendo anuladas nos TRFs, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. O que isso diz sobre a operação?
Simone Schreiber — Isso reflete o perfil dos juízes que atuaram de início. Está dentro desse fenômeno de se concentrar tudo nas mãos de um juiz e de o Ministério Público eleger juízes que talvez tivessem um pouco mais afinidade com a maneira do MP de ver as coisas. Foi uma onda que argumentava que havia uma situação excepcional de corrupção endêmica, que exigia soluções criativas e excepcionais, muitas vezes atropelando o devido processo legal. Em um determinado momento, quem falasse algo contra a “lava jato” era apedrejado, chamado de leniente com a corrupção. Então as pessoas ficaram um pouco amedrontadas de fazer um contraponto, de falar contra a operação.
Mas quando surgiu uma reação a esse discurso, um enfraquecimento dessa onda, por motivos políticos, fragilidades começaram a ser identificadas, como algumas más condutas de juízes. A vaza jato e o caso de Luis Carlos Cancellier [ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina que se suicidou após ser indevidamente acusado de corrupção na “lava jato”] foram importantes enfraquecer o discurso, assim como o fato de serem atingidas pessoas que têm voz, como políticos.
Com o tempo, esse discurso hegemônico de que a “lava jato” era uma coisa maravilhosa foi se enfraquecendo. Estabeleceu-se um momento de maior normalidade, de mais respeito ao devido processo legal, e os tribunais começaram a identificar problemas. Um caso evidente foi o do presidente Lula, como destacado no voto do ministro Gilmar Mendes.
Um resultado desse movimento de retorno à normalidade foi a determinação de redistribuição de processos, de acabar com a competência concentradas em um único juiz ou um uma única turma no tribunal. Quando eu assumi a relatoria da “lava jato” no TRF-2, começamos a fazer algumas redistribuições, porque identificamos que não havia conexão em várias situações. Alguns casos foram para a Justiça estadual, outros para a Justiça Eleitoral, outros para Justiça Federal em outros estados. Em vários casos, o Supremo Tribunal Federal mandou fazer essas redistribuições.
Com essas redistribuições, passa-se a ter vários juízes pensando, trabalhando nos processos. E eles vão identificando irregularidades. Um juiz pode não concordar com a maneira como outro juiz conduziu o processo e declarar algumas nulidades. Isso é natural. O que não é natural é tudo que o juiz faz ser corroborado pelo tribunal. O normal dentro do ambiente da Justiça é ter opiniões díspares e maneiras diferentes de aplicar o Direito.
O fato de não haver um juízo crítico sobre aqueles procedimentos [da “lava jato”] era algo fora do comum. Muitas prisões preventivas não tinham uma justificativa tão importante, não tinham contemporaneidade para se decretar, os fatos eram muito anteriores. Isso tudo foi sendo revisto, e é positivo.
ConJur — Qual foi o papel da publicidade opressiva na “lava jato”
Simone Schreiber — Houve vários episódios de publicidade opressiva que identificamos, principalmente com as conversas da vaza jato. Houve o uso da imprensa para reforçar determinadas posições processuais. Em sua dissertação de mestrado sobre a “lava jato”, a advogada criminal Maíra Fernandes aborda a questão da publicidade. Ela narra um episódio do começo da operação, em que o então juiz Sergio Moro decreta a prisão de algumas pessoas, mas o então ministro do STF Teori Zavascki manda revogá-las [por reconhecer indícios de incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba]. Moro então manda um ofício para Teori pedindo esclarecimentos e afirmando que um dos presos era um traficante internacional. Antes de Teori responder ao ofício, a informação é divulgada para a imprensa. É evidente que a fonte da informação foi Sergio Moro. Então, no dia seguinte sai uma manchete dizendo “Teori Zavascki manda soltar traficante internacional”. Com a repercussão negativa, Teori volta atrás e mantém as prisões. Essa é uma primeira evidência da tentativa de se constranger juízes. Em artigo publicado em 2004, Moro fala como a imprensa era um componente importante para combater o crime organizado.
Teve um episódio da vaza jato em que eles [procuradores] ficam discutindo maneiras de constranger o ministro do STF Alexandre de Moraes a votar a favor da execução provisória da pena, dizendo que Alexandre tinha feito uma palestra sobre isso, que eles iam fazer uma edição dela para divulgar e constrangê-lo. Eles usam muito a palavra “emparedar”. “Vamos emparedar o juiz, vamos emparedar o desembargador”. Quando o desembargador Ivan Athié foi sorteado relator da “lava jato” no TRF-2, o Ministério Público Federal arguiu a suspeição dele, jogou no jornal, saíram reportagens dizendo que ele tinha ligação com um advogado do caso. Athié sentiu-se profundamente constrangido e acabou declarando sua suspeição.
O voto do ministro Gilmar Mendes no caso da suspeição de Sergio Moro para julgar Lula merece ser lido. Ele se reporta a várias situações de uso da imprensa para atingimento de fins que não tem nada a ver com a boa condução do processo. Então, em vários episódios a imprensa foi utilizada estrategicamente.
ConJur — A imprensa foi pouco crítica ao noticiar os andamentos da “lava jato”?
Simone Schreiber — Parece que sim, em casos como o de Cancellier. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal fazem releases, já dão a notícia mastigada para o jornal publicar no dia da operação. Isso faz parte de toda uma propaganda institucional. E a imprensa compra e noticia daquele jeito. Até porque a imprensa está sempre com pouco tempo. Tem a necessidade da imediaticidade praticamente da notícia, a pressão do furo jornalístico, de não ser passado para trás por outro veículo. A imprensa não faz uma análise crítica dessas informações porque não tem tempo nem interesse, afinal, o que vale é a notícia bombástica.
A imprensa tem que fazer mea culpa sobre o caso. O que os jornalistas geralmente dizem é que eles só divulgaram fatos que efetivamente estavam ocorrendo. Mas aí surge a questão de como lidar com esse fenômeno. Houve um uso estratégico da imprensa, sim [por partes dos agentes estatais]. Isso está claro em vários episódios. Por exemplo, a divulgação da delação do ex-ministro Antonio Palocci na véspera da eleição de 2018 [pelo então juiz Sergio Moro].
ConJur — Como a senhora avalia o uso da colaboração premiada na “lava jato”?
Simone Schreiber — A colaboração premiada é um mecanismo interessante de apuração de informações quando se está investigando uma organização criminosa. Mas era um instituto que estava muito pouco regulamentado. Ele estava previsto na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), tinha algumas normas, mas elas deixavam para o Ministério Público uma grande discricionariedade sobre como os acordos seriam feitos. O Ministério Público tinha muita autonomia para decidir com quem iria firmar um acordo de colaboração, com quem não iria, que tipo de penas e de prêmios iria oferecer os colaboradores. Havia cláusulas por meio das quais os colaboradores se comprometiam a não impugnar os acordos.
A Lei “anticrime” (Lei 13.694/2019) restringiu isso um pouco. Houve uma compreensão de que os acordos estavam sendo feitos sem controle. Eu escrevi um texto mostrando que houve uma jurisprudência muito permissiva, afirmando que os acordos de colaboração eram negócios jurídicos e que ninguém poderia discuti-los, a não ser as partes do acordo. Só que o colaborador era impedido de impugnar o acordo. E as pessoas incriminadas não eram consideradas legítima para questioná-lo. Dessa maneira, praticamente não houve controle judicial sobre as cláusulas dos acordos de colaboração premiada.
O Ministério Público tem essa característica de ir experimentando coisas, estabelecendo determinados procedimentos para ver até onde eles podem chegar. Aconteceu isso com os acordos de colaboração premiada.
Na “lava jato”, os acordos foram feitos com pessoas que estavam no topo da suposta organização criminosa, porque eram pessoas que detinham mais informações relevantes para entregar. E as pessoas que estavam no topo também tinham mais valores para entregar. O Ministério Público se pautou muito na questão da recuperação de valores. Os valores recuperados são usados para argumentar que os acordos de colaboração premiada e a “lava jato” foram um sucesso. Então, as pessoas que estavam no topo firmaram acordos, mas que as ocupavam posições menos importantes nas supostas organizações criminosas são as que seguirão sendo processadas. Isso é uma distorção do mecanismo de colaboração.
Agora, eu não sou completamente contrária à colaboração premiada. Em tese, é um bom mecanismo para apurar fatos. Mas é preciso estabelecer critérios e mecanismos de controle, porque é um espaço de muita autonomia do Ministério Público.
ConJur — O ex-juiz Sergio Moro foi declarado suspeito para julgar o presidente Lula e deixou o cargo para virar ministro da Justiça de Bolsonaro. O juiz Marcelo Bretas foi afastado do cargo, entre outros motivos, por suspeita de ter prejudicado Eduardo Paes para favorecer Wilson Witzel na disputa pelo governo do Rio em 2018. A “lava jato” foi utilizada como mecanismo de perseguição de adversários políticos?
Simone Schreiber — Alguns juízes tiveram claros propósitos políticos. Eu não me arrisco a falar nada sobre Bretas. Ele foi afastado do cargo pelo Conselho Nacional de Justiça, mas o procedimento está em sigilo, então não sabemos efetivamente o que motivou a medida.
O caso de Sergio Moro é muito mais explícito. Ele condenou um possível candidato à Presidência do Brasil na eleição de 2018 [Lula] e logo depois abandonou a magistratura para ser ministro da Justiça do opositor [Jair Bolsonaro]. Isso não sou eu que estou dizendo, foi o que o Supremo Tribunal Federal disse ao declarar a suspeição de Sergio Moro para julgar Lula.
E também houve um movimento de Deltan Dallagnol e outros de sair do ambiente da Justiça, do Ministério Público, para disputarem cargos políticos. Então, de certa forma, tiveram propósito político ou depois entenderam que a projeção da “lava jato” lhes deu capital político e resolveram trilhar esse caminho.
A ideia de se estabelecer uma quarentena para juízes e integrantes do Ministério Público entrarem na política é interessante. Justamente para evitar que um juiz use a toga para fazer política, já visando atuar na área. Isso é muito ruim para a Justiça, gera a suspeita de que ela está sendo instrumentalizada para outros fins.
ConJur — Lavajatistas criticam anulações de operações por nulidades processuais, dizendo que são “filigranas jurídicas”. Eles inclusive tentaram suprimir diversas garantias com as “10 medidas contra a corrupção”. Qual é a importância do processo penal em uma democracia?
Simone Schreiber — Para se condenar uma pessoa, é preciso antes que ela tenha todas as garantias previstas na Constituição e no Código de Processo Penal. O Estado deve respeitar o devido processo legal.
Na “lava jato”, houve o componente dos chamados maxiprocessos, em que há muitos réus, fatos investigados e documentos. Era preciso conciliar as regras da Constituição, do CPP, que já tem 82 anos, e da realidade dos maxiprocessos. Nisso faltou um pouco de bom senso. Se o CPP estabelece que o réu deve apresentar resposta à acusação em dez dias, mas o advogado tem que examinar 700 volumes de documentos para isso, é preciso alongar esse prazo para 30 dias, por exemplo. As coisas foram feitas de maneira atropelada. Em várias situações, as defesas alegaram que não tiveram condições de se contrapor efetivamente às acusações pela complexidade dos casos, pela quantidade de documentos para examinar.
Eu não estou dizendo que todos os juízes estavam o tempo inteiro propensos a atropelar essas normas para condenar as pessoas o mais rápido possível. Mas talvez eles não tenham sabido lidar muito bem com isso. É preciso partir da ideia de que se tem que permitir a ampla defesa e tentar viabilizar isso. O CPP não oferece respostas precisas a todas as situações. Às vezes, é preciso pensar nos direitos dos réus e fazer uma adaptação.
ConJur — A senhora defende que juízes deveriam trabalhar a partir da lógica do desencarceramento. Como isso pode ser feito?
Simone Schreiber — O código dá a nós, juízes, a possibilidade de resolver questões penais sem recorrer à prisão. Penas de até 4 anos podem ser substituídas. Existem entendimentos formados a partir da epidemia de Covid-19 de que a pena em regime aberto pode ser cumprida em casa. É possível ter uma lógica de desencarceramento. Na hora de julgar as pessoas, os juízes deveriam ter no radar o problema do sistema carcerário brasileiro. O Supremo Tribunal Federal sinalizou nesse sentido ao afirmar que o sistema prisional brasileiro caracteriza um estado de coisas inconstitucional.
Não dá para juízes seguirem cegamente critérios do Código Penal pensando que não têm nada a ver com o problema, que quem tem que viabilizar boas condições do cárcere é o Poder Executivo. Os juízes têm que zelar pelos direitos fundamentais das pessoas encarceradas. Elas estão privadas da liberdade, mas não estão privadas de outros direitos fundamentais. A maneira como são colocadas no cárcere, como vivem lá, em que condições, têm a ver com o Judiciário. É sabido que há superpopulação carcerária, que há insalubridade. Os juízes não podem simplesmente fazer de conta que não sabem que estão colocando pessoas nesse ambiente.
Eu, sempre que eu posso, substituo a pena de prisão para crimes cometidos sem violência. Há diversas outras penas previstas no Código Penal, como a pecuniária e a de prestação de serviços comunitários. É preciso fazer um esforço para aplicar penas alternativas à prisão. Uma medida positiva nesse sentido é o acordo de não persecução penal, que evita o encarceramento.
Eu sou a favor de todas as políticas de desencarceramento possíveis. É preciso pensar além, não se pode ficar amarrado na ideia de que Direito Penal é igual a pena privativa de liberdade. O legislador tem apontado para esse caminho, prevendo a substituição de penas, a imposição de medidas cautelares alternativas à prisão. Os juízes é que são resistentes.
ConJur — Que reformas legislativas poderiam ajudar a diminuir o encarceramento? A descriminalização ou regulamentação das drogas seria uma boa medida nesse sentido?
Simone Schreiber — Crimes contra o patrimônio sem violência contra a pessoa não deveriam ser punidos com prisão. Repensar a política antidrogas é outra medida necessária. Se pelo menos descriminalizar o porte para uso pessoal — como o Supremo está fazendo, tendendo a estabelecer uma quantidade de drogas para caracterizar o uso e o tráfico —, já pode ter um bom impacto para o desencarceramento.
ConJur — Após crimes de grande repercussão, sempre surgem propostas de endurecimento da legislação penal e processual penal. Depois de milicianos incendiarem 35 ônibus e um trem na Zona Oeste do Rio no fim de outubro, o governador Cláudio Castro apresentou um projeto que proíbe, entre outras medidas, a progressão do regime de cumprimento de pena para quem portar armas de guerra; cobrar taxas de serviços públicos como água, luz, transportes e telecomunicações; e for acusado de lavagem de dinheiro de organização criminosa. O endurecimento penal é eficaz no combate ao crime?
Simone Schreiber — Não. Essa é a fórmula que temos usado desde a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990) e não houve redução da criminalidade nem sensação de maior segurança para a população. Se o endurecimento penal ajudasse a resolver o problema de segurança pública no Brasil, estaríamos vivendo o melhor dos mundos, sem crimes na rua. Porque esse é sempre o remédio que propõem, mesmo sabendo que ele não funciona.
A Lei “anticrime” aumentou de 30 para 40 anos a pena máxima de prisão. A proibição de progressão de regime já foi declarada inconstitucional pelo Supremo, porque viola o princípio da individualização da pena. São medidas que não vão resolver o problema de segurança pública no Brasil. Eu não sei o que resolve. Mas com certeza não é a ampliação de penas, do encarceramento. Até porque as facções criminosas se fortalecem nas prisões, cooptando novos integrantes. O aumento de pena é uma medida simbólica, para os políticos poderem dizer que fizeram alguma coisa.
ConJur — Em entrevista à ConJur, a senhora afirmou que a entrada em vigor do instituto do juiz das garantias pode aumentar a qualidade dos processos. Porém, muitos especialistas criticaram a decisão do STF sobre o juiz das garantias, especialmente a limitação da competência desse magistrado ao momento do oferecimento da denúncia, e não ao do recebimento, como estava previsto na Lei “anticrime”. Como avalia a decisão do STF sobre o juiz das garantias?
Simone Schreiber — A declaração de constitucionalidade do juiz das garantias é positiva. Contudo, é importante ressaltar que o Supremo, usando o método da interpretação conforme a Constituição, acabou reescrevendo alguns artigos e substituindo o modelo do legislador por um que entende que ser mais coerente constitucionalmente.
Por exemplo, a lei aprovada previa uma regra de impedimento. O juiz que atua na investigação ficaria impedido de atuar no processo. Isso com o propósito de preservar sua originalidade cognitiva, que o juiz da causa não se deixasse influenciar pelas decisões que tomou na investigação. O STF afirmou a inconstitucionalidade dessa regra, ao argumento de violação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. É difícil identificar inconstitucionalidade na previsão de nova regra de impedimento, já que o CPP tem diversas regras de impedimento. Parece-me que essa escolha está na margem de discricionariedade do legislador ordinário. Da mesma forma, o STF alterou a previsão de que competia ao juiz das garantias receber a denúncia. Parece-me assim que o STF acabou substituindo algumas escolhas do legislador.
ConJur — Mesmo com essas mudanças, o instituto do juiz das garantias continua sendo positivo?
Simone Schreiber — Sim. O modelo estabelecido pelo legislador, ao prever que o juiz das garantias receberia a denúncia, avançava um pouco e trazia tal julgador para a fase pré-audiência. Nesse modelo, o juiz das garantias citava o réu, recebia a resposta escrita, decidia se iria absolvê-lo sumariamente ou aceitar a denúncia e, depois disso, dava lugar ao juiz da causa.
Uma questão sensível é que a ideia era que o juiz da causa não tivesse contato com os elementos informativos produzidos na fase de inquérito, para que ele julgasse a causa exclusivamente com base nas provas produzidas no processo, ressalvadas as irrepetíveis, lógico. Na realidade da Justiça Federal, as provas mais importantes são as produzidas na investigação, como as decorrentes de interceptação telefônica, perícia ou busca e apreensão. De qualquer maneira, essas provas iriam ser levadas para o processo, porque a Lei “anticrime” dizia que os autos da investigação ficariam acautelados na vara e não apensados aos autos principais, ressalvando as provas não repetíveis. E a maioria das provas importantes produzidas na investigação não são repetíveis. Na prática, a única prova produzida na investigação à qual o juiz não teria acesso seria a oral. Porque as provas materiais iriam para o processo de qualquer forma.
Mas apesar dessas alterações feitas pelo Supremo, considero que a divisão de competências entre o juiz que atua na investigação e o juiz que atua no feito é extremamente positiva e reforça o sistema acusatório. Vamos aguardar sua implementação e ver como vai funcionar na prática.
Fonte: Brasil 247 com informações do Conjur
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