domingo, 18 de dezembro de 2022

Policial relata perseguição, preconceito e violência na PRF: "virou uma máquina de guerra"

 Páris Borges Barbosa, policial rodoviária federal há dez anos, descreve a instituição sob a gestão de Silvinei Vasquez

Páris Borges Barbosa (Foto: Divulgação)


Por Gisele Federicce - Exclusão de órgãos internos como de direitos humanos e políticas para as mulheres, transferências sem explicações de funcionários que discordam do pensamento bolsonarista sobre a segurança pública, mudança no método de ensino dos novos policiais, tornando-o militarizado e mais violento. Essas são algumas das transformações praticadas dentro da Polícia Rodoviária Federal (PRF) nos últimos anos, sob a gestão de Silvinei Vasquez.

A instituição ganhou visibilidade na imprensa ao longo do último ano por protagonizar ações que antes eram exclusivas da Polícia Militar dos estados. Entre elas uma operação em Varginha, Minas Gerais, deixando 25 mortos; participação em outra ação na favela na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio de Janeiro - o que foi questionado pelo MPF e referendado pela Justiça - deixando mais 23 mortos; assassinato de Genivaldo de Jesus Santos no porta-malas de uma viatura, asfixiado com gás lacrimogêneo, em Umbaúba, Sergipe.

Mais recentemente, ações visivelmente partidarizadas chamaram novamente a atenção: no segundo turno da eleição, em 30 de novembro, a PRF realizou uma operação nas estradas na qual barrou a passagem de ônibus que levavam eleitores para votar, especialmente no Nordeste, onde houve maior concentração de apoio a Lula. A instituição também é investigada por ser omissa ao desmobilizar os bloqueios golpistas nas estradas após o pleito. “Houve uma ordem de cima para que não se fizesse nada”, conta Páris Barbosa, em referência à decisão do presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, para que se interrompesse a operação.

Em entrevista ao programa Casa das Manas, na TV 247, Páris Borges Barbosa, policial rodoviária federal há dez anos, conta que, “para que a PRF chegasse a este ponto, foi necessário antes destruir policiais como eu, que não concordavam com a necropolítica que estava sendo implementada e que poderiam opor resistência ao monstro que estava sendo criado”. Na segunda-feira (5), ela também depôs na Câmara dos Deputados em uma audiência na Comissão de Trabalho que tratou das condições de trabalho dentro da PRF, onde esse ponto foi um dos abordados.

Ela explica que a Polícia Rodoviária Federal criou nos últimos anos grupos de operações especiais que respondem diretamente ao diretor-geral, e foram eles que participaram de operações como a de Varginha e da favela da Vila Cruzeiro. Esses grupos têm dedicação “a matar”, alertou Páris, que é advogada, doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF e pesquisadora vinculada ao Instituto de Estudos Comparados de Administração de Conflitos (Ineac).

A policial descreveu ainda que o serviço de inteligência passou a ser altamente equipado e financiado, com uso de subterfúgios jurídicos e mentiras para espionar servidores e a sociedade. “Um verdadeiro serviço de espionagem que não se submete ao controle do MPF”. “A PRF mudou muito, muito, muito em 20 anos. Foi algo que não aconteceu com nenhuma outra instituição de segurança pública”, observa a pesquisadora, cujo trabalho de doutorado é justamente esse crescimento e mudança, com abundantes investimentos.

“Agora a gente pegou esse aparato gigantesco que foi criado e botou ele num caminho perigoso. A máquina cresceu e virou muito poderosa. Justamente por ela ser agora uma máquina muito poderosa, é muito arriscado estar nas mãos erradas”, diz. 

‘Combate às universidades’

Na entrevista, Páris Barbosa descreve a perseguição sofrida por ela, uma mulher trans, dada principalmente por sua exclusão da Universidade Corporativa da Polícia Rodoviária Federal (UniPRF), onde ajudou a criar uma divisão de pesquisa com status de instituição de Ciência e Tecnologia reconhecida pelo CNPq, que já tinha sete grupos dedicados a áreas como gestão, saúde, criminologia, estudos jurídicos, todos no sentido de estudar a própria instituição e o trabalho que a PRF faz. “Fui retirada de lá contra a minha vontade, de forma arbitrária”.

Mas não só ela foi tirada, como outros colegas que não compartilhavam o ponto de vista da nova diretoria e a própria Universidade, com sede em Florianópolis,  acabou sendo “capturada por pessoas que não eram da área de educação”, conforme descreveu. Pesquisas que estavam em andamento, em parceria com universidades públicas, seminários marcados com palestrantes da PRF foram interrompidos e cancelados. O clima de perseguição foi iniciado pela coordenação de Wilmen Silva Vieira e atualmente é mantido sob a gestão de Marcelo Vinicius.

Depois de dois anos trabalhando com ciência e educação na PRF - entre agosto de 2020 e agosto de 2022 - a pesquisadora foi transferida para a função de atendimento de chamados via telefone, onde ouve diariamente as pessoas - que não sabem que ela é uma mulher, por conta da voz mais grave - chamarem-na de “senhor”. “É uma violência diária,e nessa semana eu fiquei sabendo o motivo de eu não ter sido mandada para as pistas, como meus colegas que também deixaram a Academia. Porque eles não queriam vincular a imagem da PRF nas estradas a ‘um traveco’. Isso me desestabilizou e eu precisei pedir licença”.

Para a agente da PRF, a intenção da atual gestão nunca foi produzir ciência, mas sim controlar o discurso científico sobre a atuação policial. “Existe um desejo dos gestores atuais de ‘disputar’ com os cientistas a autoridade sobre o tema da segurança pública. Isso foi declarado publicamente em palestras internas várias vezes pelo diretor-geral, Silvinei Vasques, onde ele dizia coisas como ‘precisamos combater o discurso ideológico que vem das universidades públicas’ e ‘quem entende de segurança pública é o policial’”.

Enquanto que o trabalho da divisão de pesquisa que vinha sendo construído “queria conciliar, conversar com os especialistas em segurança pública, construir conjuntamente com a sociedade o que é segurança pública, quais são os protocolos, quais são as políticas”, contrapõe a policial. “É preciso lidar com os conflitos na sociedade de uma forma construtiva. Por que uma pessoa faminta rouba pão? Colocar as pessoas pobres na prisão não vai resolver nada. A discussão precisa ser muito mais elevada do que bem e mal”, acrescenta. “O que essa gente fez o tempo todo foi tentar separar o máximo possível [Polícia e universidade]”, critica.

Governo Lula: mudança de direção

Com a mudança de governo, após a eleição de Lula, e a nomeação de Flávio Dino como ministro da Justiça, um político fortemente ligado à pauta da segurança vinculada aos direitos humanos, a direção da PRF será trocada e certamente tomará outro rumo. 

Em entrevista ao 247 no dia em que foi nomeado, na última sexta-feira (9), Dino afirmou que os critérios para a escolha do novo diretor-geral da PRF serão os mesmos que o levaram a escolher o delegado Andrei Passos Rodrigues como chefe da PF, ou seja, “competência, experiência e alinhamento com esse novo momento de uma polícia que não esteja a serviço de uma facção. Polícia não pode estar a serviço de facção, qualquer que seja ela. Polícia tem que estar a serviço do país”.

“Nós temos que adequar a PRF àquilo que a Constituição manda, que é a lei maior do país. A Constituição diz, no artigo 144, que por exemplo atribuições de polícia judiciária, ou seja, de investigações de crimes, pertencem à Polícia Federal, e não à Polícia Rodoviária Federal. A PRF tem a sua missão cravada no seu próprio nome. É uma polícia relevantíssima sobre o direito de ir e vir com segurança e com legalidade nas estradas federais brasileiras”, disse ainda o senador eleito e ex-governador do Maranhão. 

“Não podemos desviar a PRF para missões que não lhe pertencem constitucionalmente. Houve uma portaria, que foi editada, que acabou alargando indevidamente essas competências. Essa portaria ministerial vai ser revista para que a PRF possa atuar em operações integradas, mas sem desbordar da sua missão constitucional”, anunciou Dino.

Páris avalia que “mais importante do que trocar o diretor-geral, trocar a gestão, é criar mecanismos que impeçam coisas que aconteceram internamente de acontecer de novo”. “A gente precisa ter governança e o controle externo do Ministério Público”, defende.

Na quinta-feira (7), Páris Barbosa foi nomeada oficialmente integrante do grupo técnico de segurança pública da equipe de transição do governo Lula, junto com a professora da UFF Jacqueline Muniz e o jurista Lênio Streck, entre outros.

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