Contratos milionários, pagos com dispensa de licitação, devem beneficiar artistas como Gusttavo Lima, Zé Neto e Cristiano, Wesley Safadão, Luan Santana e Leonardo
Rede Brasil Atual - Mesmo sem energia elétrica, saneamento básico, asfalto ou posto de saúde, ao menos 48 pequenas cidades – com menos de 50 mil habitantes –, investiram mais de R$ 14,5 milhões em shows de cantores, a maioria deles sertanejos, neste ano eleitoral. Os contratos milionários, pagos com dispensa de licitação, devem beneficiar artistas como Gusttavo Lima, Zé Neto e Cristiano, Wesley Safadão, Luan Santana e Leonardo. É o que mostra reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada nesta segunda-feira (6).
De acordo com a publicação, a festança é bancada por meio das emendas parlamentares de uso livre, destinadas por deputados e senadores às cidades e conhecidas como “emendas Pix” ou “cheque em branco”. Isso porque o dinheiro cai diretamente na conta da prefeitura e nem os vereadores sabem ao certo quanto será gasto com os shows. Ao todo, as cidades que contrataram os shows receberam R$ 28,5 milhões de Brasília. Mas dos 48 shows bancados com a verba pública, em apenas 35 deles é possível consultar o cachê pago.
Entre eles está a cidade de Mar Vermelho, em Alagoas, em que o prefeito André Almeida (MDB) gastou R$ 370 mil para a apresentação do cantor Luan Santa, em agosto, a dois meses das eleições. O município, no entanto, está entre os 100 com menor renda no país. Segundo o Estadão, seus 3.474 munícipes enfrentam problemas como a falta de saneamento básico, presente em apenas 14,9% das casas. Somente 24% das moradias contam com pavimentação adequadas. E, até 2019, só 9,4% da população estava empregada.
Alvo de investigações
A situação se repete em São Luiz, em Roraima, onde a prefeitura aceitou pagar R$ 800 mil por show de Gusttavo Lima, para dezembro. No município de 8.232 habitantes, dados do IBGE indicam que menos da metade da população tem tratamento de esgoto adequado e apenas 17% das vias públicas estão urbanizadas. Mas a prefeitura justifica o valor desembolsada como um “show musical do artista de notável reconhecimento”. A contratação milionária, contudo, virou alvo de investigação dos Ministério Público. Assim como o show que o artista faria em Teolândia, na Bahia, na Festa da Banana, sob cachê de R$ 704 mil.
O MP questionou o gasto excessivo para a comemoração tradicional da cidade que, em dezembro, alegou não ter dinheiro para enfrentar os efeitos das chuvas que atingiram à época a região. Moradores perderam suas casas e a cidade ficou destruída. A prefeita Maria Baitinga de Santana (Progressistas) pediu doações para socorrer as pessoas e recebeu R$ 1,14 milhão do governo federal. Mas contratou sob o valor milionário o show de Gusttavo Lima porque “sonhava” em conhecê-lo, segunda ela. A apresentação foi cancelada de vez no último domingo (5), a poucas horas do evento, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a pedido da Promotoria.
Toda a Festa da Banana, segundo informações da Folha de S. Paulo, estava orçada em R$ 2,3 milhões. O valor corresponde a 40% do que o município destinou à saúde durante todo o ano de 2021, de acordo com a denúncia do MP. Sem qualquer prestação de contas ou normas para o uso do dinheiro público destinado via “emenda Pix”, os prefeitos também escolhem os artistas sem qualquer justificativa plausível, conforme mostra a reportagem do Estadão.
Sem transparência
É o caso da cidade de Areia Branca, em Sergipe, onde o prefeito Alan de Agripino (PSC) aceitou pagar R$ 550 mil a Wesley Safadão. O cantor foi escalado para se apresentar na abertura do São João da cidade que vai superar R$ 1,5 milhão em gastos com cachês. O município de 18 mil habitantes, por outro lado, só tem esgoto em 8,6% das casas e apenas 6% dos domicílios estão em ruas pavimentadas. No contrato, porém, a prefeitura justificou que “todo profissional é singular, posto que esse atributo é próprio da natureza humana”. A frase é do professor Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, autor do livro Contratação Direta Sem Licitação.
A reportagem também revela shows em que não é possível saber de quanto será o cachê. Como Jacuípe, também na Bahia, e Itiruçu, no mesmo estado. Nesse municípios, os vereadores ainda aprovaram projeto de lei que autoriza a prefeitura a contratar sem aval do Legislativo. Informações sobre os shows também não constam no Portal da Transparência. Especialistas em contas públicas observam diversos desvios nesse tipo de contratação.
Nada de gratuito
Para o diretor executivo da Contas Abertas, Gil Castello Branco, “é evidente que tem um caráter eleitoreiro” na contratação dessas perfomances. “As pessoas ficam muito gratas ao prefeito ou ao parlamentar que colocou a emenda porque o cidadão atribui a esses políticos a gratuidade do show, que não é gratuito. (…) É mais fácil desviar recursos por causa de um show do que por causa de uma obra. Uma obra pode ser aferida. Num show, é tudo muito relativo (…)”, destacou ao Estadão.
O cientista político do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) Leandro Consentino também questionou os contratos milionários em meio a carências em várias áreas. “Os prefeitos não são donos do dinheiro, eles são administradores. A prefeita não está ali para realizar sonhos dela, mas para fazer acontecer as prioridades do município que ela administra”, contestou.
CPI do Sertanejo
As denúncias de cachês milionários pagos a sertanejos com dinheiro público e sem licitação vieram à tona após o cantor Zé Neto, que faz dupla com Cristiano, atacar a cantora Anitta em um show na cidade de Sorriso, no Mato Grosso, em 13 de maio. Durante o evento, ele disse que não dependia da Lei Rouanet – mecanismo de captação de recurso para a área cultural. A legislação é alvo há anos de uma campanha de desinformação e de críticas do presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seus apoiadores. E Zé Neto alegou que quem pagaria o seu cachê “era o povo”. O que de fato foi confirmado, quando um levantamento do UOL mostrou que o show da dupla na cidade havia custado R$ 400 mil aos cofres públicos.
Desde então, o Ministério Público passou a investigar diversos cachês com valores vultosos pagos por prefeituras a diversos nomes famosos do mundo sertanejo, sob suspeitas de irregularidades. Enquanto nas redes sociais, usuários passaram a cobrar uma “CPI do Sertanejo” para investigar desvios.
Cientista político e mestre em Administração Pública Leandro Machado disse ao Estadão que “o mais irônico é que isso tenha vindo à tona no contexto de críticas à Lei Rouanet, uma política pública que funciona, que tem regras, feitas por pessoas que se beneficiam de cachês milionários pagos com dispensa de licitação para eventos claramente eleitoreiros”.
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