"A memória de Marília Mendonça constrange os artistas que deixaram passar as chances de dizer o que acham de figuras como Bolsonaro e preferiram se acomodar entre os que se calam", escreve o jornalista Moisés Mendes
Cantora Marília Mendonça (Foto: Divulgação)
Por Moisés Mendes, para o Jornalistas pela Democracia
É cansativo cobrar engajamento explícito e militante dos artistas às grandes e às pequenas questões da humanidade, em situações consideradas normais. Que cada um decida se deve ou não dizer o que pensa.
Mas o Brasil não vive uma situação de normalidade. Artistas quietos, recolhidos ao conforto de falsas neutralidades, são assumidamente omissos em momentos anormais.
E a situação que vivemos há muito tempo é de anormalidade. Em circunstâncias graves para a democracia, em que um candidato a déspota só não consegue ser um déspota completo por incompetência, não há como ficar distante sempre para se manter bem com todos os lados.
É frouxo o artista que fica à sombra dos distanciamentos, como se nada fosse com ele. Marília Mendonça desafiou a ira da extrema direita com apenas 23 anos, quando disse que não votaria no sujeito por uma questão de bom senso.
Não era e nunca foi uma artista engajada, nem uma militante, era apenas uma artista dizendo o que pensava ali naquela hora.
Ela disse em 2018 que era impensável votar naquele que todos sabiam (uns fingiam não saber) de quem se tratava. Participou da campanha do Ele, não, e foi o que bastou.
Posicionou-se sobre uma questão crucial, foi perseguida e ameaçada e teve de recuar, como muitos recuaram para sobreviver. Por isso mesmo, pela perseguição e pela urgência do recuo, a breve história de Marília nos comove.
Mesmo para os que que não têm nenhuma simpatia pelo nicho musical em que ela transitava, a perda está muito além das controvérsias, das preferências pessoais e das rejeições sumárias.
Morre uma artista no auge da carreira, uma mulher com um talento raro, que disse aos colegas e aos fãs, quando era uma menina: eu não voto nesse cara.
Podem dizer, como muitos já disseram, que depois ela se afastou das questões políticas, ao ser caçada pelas milícias das redes sociais, e mais ainda quando liderou um grupo de artistas mobilizados pelo socorro a Manaus com balões de oxigênio.
Não importa que Marília não tenha sido uma militante política, porque é improvável que conseguisse ir em frente. Importa que disse o que pensava, naquele momento.
Marília Mendonça fez, com 23 anos, num lampejo e na intuição, o que muito artista dito maduro não faz até hoje. Disse o que deveria ser dito, antecipou seu voto e seguiu adiante com sua voz poderosa.
A memória de Marília Mendonça constrange os artistas que deixaram passar as chances de dizer o que acham de figuras como Bolsonaro e preferiram se acomodar entre os que se calam.
É mais uma perda do nosso lado, enquanto do lado deles ninguém morre, ou morre e ninguém percebe.
Marília Mendonça era uma cidadã que cantava, e num meio ultrarreacionário. No caso dos sertanejos, num ambiente claramente engajado à extrema direita.
A arte de Marília não era e nem tinha como ser engajada. Mas ela disse o que importava, na hora que importava, enquanto olhava para os lados e via a maioria acovardada e em silêncio.
Importa que um dia ela afrontou Bolsonaro. E importa que nós sabemos o que Marília Mendonça, por questão de bom senso, pensava do fascismo e como os fascistas a odiavam, mesmo que larguem notinhas com o choro dos cínicos e dos farsantes. Estamos todos tristes.
Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.
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