sexta-feira, 2 de julho de 2021

Câmara Municipal de Lisboa enviou a consulado e embaixada do Brasil dados de ativistas contra Bolsonaro

 Câmara Municipal de Lisboa compartilhou com a embaixada e o consulado do Brasil dados como nomes completos, telefones e endereços de organizadores de atos em apoio aos ex-presidentes Lula e Dilma e contra Bolsonaro e Temer. "Nós estamos cientes da gravidade desse vazamento, ainda mais durante o governo genocida e autoritário de Bolsonaro", diz o coletivo Andorinha, organizador dos atos

(Foto: Eurico Zimbres | Reprodução/Facebook)

Agência Sputnik - A Câmara Municipal de Lisboa enviou às representações diplomáticas brasileiras dados de ativistas que realizaram manifestações contra Jair Bolsonaro e o seu antecessor, Michel Temer. Foram repassadas informações de brasileiros que organizaram ao menos 8 protestos na capital portuguesa.

Além dos atos contra Bolsonaro e Temer, respectivamente em 2020 e 2018, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) também compartilhou, com a embaixada e o consulado do Brasil, dados como nomes completos, telefones e endereços de organizadores de atos de apoio aos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff a partir de 2015.


Apesar de a maioria dos eventos realizados ter caráter político, também houve outras manifestações, com temas como "desagrado de transporte de animais vivos" e "reivindicar direitos igualitários nas buscas de uma pessoa", cujos organizadores tiveram seus dados enviados pela CML às representações diplomáticas brasileiras em Lisboa.

As informações estão no relatório preliminar de auditoria interna aos processos de comunicação prévia/aviso para a realização de manifestações no município de Lisboa. O documento tem por objetivo avaliar se, e em que circunstâncias, houve comunicação indevida de dados pessoais, em particular às embaixadas ou consulados em Portugal. 

O mais recente deles aconteceu em maio de 2020, em meio à pandemia de COVID-19, em frente ao Consulado-Geral do Brasil em Lisboa. Descrito no relatório como um ato para "denunciar a política genocida do Presidente Jair Bolsonaro", ele foi organizado, entre outras pessoas, pelo cineasta Sérgio Tréfaut. 

Foi ele que fez a comunicação à CML sobre o protesto, passando seus dados e de outros dois outros organizadores, posteriormente enviados ao consulado. Informado pela Sputnik Brasil sobre o fato, ele se limitou a agradecer e disse não estar preocupado por seus dados terem sido repassados à representação diplomática.

"Com as entrevistas que dei, textos que escrevi, participações em telejornais... não sou a pessoa que se preocupará com isso. Estão tratando disso, há mil comentadores dizendo o que pensam. Eu quero que caia [o] Bolsonaro [da presidência]. Ponto. Obrigado por me informar que a minha lista de três nomes foi transmitida à embaixada [consulado] do Brasil", disse Tréfaut.

Coletivo brasileiro considera vazamento grave

Já o Coletivo Andorinha, responsável por diversas manifestações em Lisboa, mostrou-se mais preocupado com a divulgação de dados pessoais para representações diplomáticas do Brasil. Samara Azevedo, uma das integrantes, explica à Sputnik Brasil que há indícios de que pelo menos três atos comunicados à embaixada e ao consulado tenham sido organizados pelo coletivo, que ainda analisa o documento.

Em um deles, em setembro de 2016, descrito no relatório da CML como "protesto de afastamento injusto sofrido pela presidente do Brasil, Dilma Rousseff", Samara aponta a probabilidade de 99% de ter sido organizado pelo Coletivo Andorinha e lamenta a divulgação de dados pessoais, que podem incluir os seus próprios.

"Nós estamos cientes da gravidade desse vazamento, ainda mais durante o governo genocida e autoritário de Bolsonaro. Estamos estudando o relatório, para sabermos ainda como proceder individualmente e enquanto coletivo e para entender se todas as informações que precisamos para decidir com prudência estão lá", avalia Samara. 

O Coletivo Andorinha também tem a preocupação com a instrumentalização da celeuma por partidos políticos, a poucos meses das eleições autárquicas, que vão definir o próximo presidente da CML e das câmaras municipais das outras cidades portuguesas. Após o caso da divulgação de dados vir à tona na imprensa portuguesa, Fernando Medina, presidente da CML pelo Partido Socialista (PS), foi a público pedir desculpas. 

Apesar de Medina ter anunciado que a CML entraria em contato, individualmente com cada cidadão, prestando o apoio necessário à realização de uma avaliação de segurança, sugerida pela Anistia Internacional, Samara informa que nenhum dos integrantes do coletivo foi procurado ainda.

"Mas nos espanta que uma direita aproveitadora tenha tornado o direito à proteção de dados da população imigrante a sua bandeira de luta, e não estamos desatentos a isto. A verdade é que nossos direitos valem tão pouco, pois muito se falou sobre eles, e até agora sequer fomos contactados por meios oficiais, nem pela CML, nem pelo suposto partido que os defende junto à União Europeia. E, de fato, o que desejaríamos como mínimo é sermos consultados para contribuir com uma melhoria da gestão do processo de comunicação", reivindica. 

Ativistas de outros 31 países tiveram informações pessoais expostas

Além do Brasil foram repassados dados de ativistas de outros 31 países às respectivas representações diplomáticas em Lisboa. O relatório mostra que era uma prática deliberada desde 2012. A CML justificou que, naquele ano, foi elaborado e aprovado um "protocolo para tratamento de avisos de manifestações" no qual se identificou a necessidade do município de comunicar às embaixadas a ocorrência de manifestação.

"Esta prática manteve-se em vigor de forma relativamente uniforme, e foi aplicada aos vários pedidos de manifestação, tendo-se verificado que em algumas circunstâncias a comunicação relativa à existência de uma manifestação foi não só remetida para as embaixadas junto às quais se iria realizar uma manifestação, mas também, e essencialmente a partir de 2018, àquelas relacionadas com o objeto da mesma", lê-se em um trecho do comunicado da CML.

Em 2018, apesar da entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), a CML continuou a divulgar dados pessoais de manifestantes às representações diplomáticas. No total, foram remetidas 180 comunicações de realização de manifestações junto de embaixadas, 122 anteriores à entrada em vigor do RGPD e 58 após. 

Depois da entrada em vigor do RGPD, ou seja, para o período de maio de 2018 a maio de 2021, foram considerados como tendo sido enviados dados pessoais em 52 dos processos, de acordo com a CML. Para efeitos de contabilização foi utilizado o critério da Comissão Nacional da Proteção de Dados (CNPD), segundo a qual a identificação do nome na qualidade de representante de uma organização também é um dado pessoal que exige proteção.

vazamento de dados levou a CML a exonerar o encarregado de Proteção de Dados e coordenador da Unidade de Projeto para a Implementação do Regulamento para a Proteção de Dados. Nesta quinta-feira (1º), a Comissão Nacional de Proteção de Dados acusou o município de Lisboa de ter violado o RGPD ao comunicar dados pessoais dos promotores de manifestações a entidades terceiras e a diversos serviços municipais.

Comissão Nacional da Proteção de Dados aponta 225 infrações

Segundo o comunicado emitido pela CNPD, no primeiro caso as infrações resultam da falta de licitude e no segundo da violação do princípio da necessidade. De acordo com o texto, a lei só permite a comunicação da informação relativa ao objeto, data, hora, local e trajeto da manifestação, sem transmissão de dados pessoais.

"Sendo dados especialmente sensíveis, porque revelam opiniões e convicções políticas, filosóficas ou religiosas, impunha-se ao município, enquanto responsável pelo tratamento, um cuidado acrescido, nos termos da Constituição portuguesa e do RGPD", lê-se em um trecho do comunicado.

Conforme a CNPD, o envio de dados pessoais dos promotores a representações diplomáticas e a outras entidades estrangeiras, além de ser uma violação do direito fundamental à proteção de dados, pode pôr em risco outros direitos fundamentais que a Constituição portuguesa consagra.

Ao todo, a CNPD identificou 225 infrações cometidas pela CML. O valor máximo das multas aplicadas poderia chegar a quase € 4,5 bilhões (R$ 26,9 bilhões), já que 222 infrações têm, cada uma, valor máximo por volta dos € 20 milhões (R$ 119,6 milhões). No entanto, não deverá pagar o valor total, pois o princípio da proporcionalidade deve nortear a CNPD neste caso.

Em entrevista à Sputnik Brasil, Alessandra Silveira, professora da Universidade do Minho e diretora do mestrado em Direito da União Europeia, explica que RGPD é diretamente aplicável nos Estados-membros da UE e dispõe que o responsável pelo tratamento de dados pessoais (no caso, a CML) deve facultar, ao seu titular, informações sobre as finalidades do tratamento a que os dados se destinam, o fundamento jurídico do tratamento, bem como os destinatários, se os houver.

"Aparentemente, pelo que tem vindo a público, os titulares dos dados (no caso, os manifestantes) foram surpreendidos pelo envio dos seus dados às representações diplomáticas, o que denota fragilidades no cumprimento do dever de informação", pontua Alessandra. 

A professora ressalta que a CNPD abriu um inquérito a fim de apurar eventuais violações ao RGPD. Contudo, o que provoca alguma perplexidade neste caso, ela afirma, é que o direito de manifestação (previsto no artigo 45 da Constituição da República Portuguesa), desde que pacificamente e sem armas, deve ser exercido sem impedimento, sem necessidade de autorização prévia, sem perturbações por parte de terceiros (incluindo o direito à proteção por parte do Estado contra ofensas de contramanifestantes, por exemplo). 

"Isto nos leva a questionar se haveria algum interesse público atendível que justificasse a comunicação dos dados às representações diplomáticas - o que, à partida, não parece existir. Ou seja, os problemas em causa porventura não se esgotam na proteção de dados pessoais, cumprindo às autoridades competentes atuar em conformidade com o que for apurado", recomenda.

Sputnik Brasil questionou a Embaixada do Brasil, o Consulado-Geral do Brasil em Lisboa e o Itamaraty sobre qual o tratamento dispensado aos dados de ativistas brasileiros enviados pela CML. No entanto, não houve respostas até o fechamento desta reportagem.

Fonte: Brasil 247

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