Redução da proteção ao trabalhador não resolveu problema do desemprego e fez regredir a qualidade de vida no país
Terceirização irrestrita.
Reformas trabalhista e
da Previdência. Fim
do Ministério do Trabalho. O impeachment de 2016, da então presidenta Dilma
Rousseff (PT), abriu caminho para uma destruição em série dos direitos
trabalhistas no Brasil.
Passados
cinco anos, a promessa de geração de vagas de trabalho não se cumpriu, e as
condições de vida dos trabalhadores brasileiros só pioram. Nesta semana, o Brasil de Fato publica
uma série de reportagens acerca do impeachment, abordando o contexto da época e
seus desdobramentos até os dias de hoje.
A situação já era dramática antes da pandemia, que agregou contornos de crueldade. Os trabalhadores sem carteira assinada e “por conta própria”, que se tornaram maioria em 2017, foram os mais atingidos, e hoje dependem de um auxílio emergencial que não banca nem metade da cesta básica.
Relembre a lista de direitos perdidos
Histórico
A
substituição de Dilma Rousseff pelo vice Michel Temer (PMDB) – “com o Supremo, com tudo” –
deu condições para aplicação de uma agenda econômica que ficou latente por 20
anos.
“As questões que aparecem na reforma trabalhista [de 2017] começaram a ser introduzidas nos anos 1990, no governo Fernando Henrique [PSDB]”, recorda José Dari Krein, doutor em Economia Social e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Na
época, não foi alterada a legislação pré-existente, mas houve mudanças em
elementos centrais da relação de emprego, sobre as formas de remuneração,
contratações atípicas, precárias, e também sobre flexibilização da jornada de
trabalho”, completa.
No
final daquela década, o setor empresarial já pressionava, por exemplo, pela
prevalência do “negociado sobre o legislado”.
A
ideia era que os patrões pudessem estabelecer condições diretamente com o
empregado, sem a obrigatoriedade da participação ou mediação de entidades
sindicais. O argumento – que nunca foi comprovado na prática – era que essas
condições encareciam a mão de obra, impediam a geração de empregos e limitavam
a produtividade.
O
início dos governos PT, com um ciclo de crescimento do Produto Interno Bruto
(PIB) e dos níveis de emprego e renda, esfriou essa demanda empresarial por
quase uma década.
Da
mesma forma, quando a economia brasileira começou a sentir os primeiros efeitos
da crise mundial, as pressões recomeçaram. Já no governo Dilma, ocorreram
retrocessos trabalhistas, como cortes no valor do abono
do PIS e do seguro-desemprego.
Além
da desoneração das folhas salariais, a agenda empresarial
forçou a desvalorização da moeda e a diminuição da taxa de juros com
o pretexto de estimular investimentos no país.
A
adoção de parte dessa cartilha por Dilma não surtiu efeitos positivos, e o PIB
brasileiro encolheu 7,5% em dois anos. O mau desempenho econômico caiu como uma
luva para setores da oposição, derrotados na eleição de 2014, que buscavam a
todo custo um pretexto para substituir o governo.
Ponte para o futuro abismo
Segundo
os entrevistados, o impeachment de 2016 foi resultado de insatisfações de parte
da elite política – insatisfeita com o diálogo de Dilma com o Congresso – e
econômica, que exigia cortes mais drásticos no gasto público e redução nos
custos com mão de obra.
O
documento “Ponte para o Futuro”,
do PMDB, materializava já em outubro de 2015 o pacto de Temer com esses
interesses. A primeira medida, em dezembro de 2016, foi a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95,
que congelou os investimentos em áreas como saúde e educação por 20 anos.
“Essa
aprovação marca uma mudança concreta de projeto de país, que abre caminho para
todas as reformas que vêm a seguir”, afirma Patrícia Pelatieri, coordenadora de
pesquisas do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (Dieese).
“Boa
parte da tragédia que a gente vive hoje tem a ver com as escolhas políticas
feitas a partir de 2014, e muito aprofundadas a partir do impeachment de
2016”, acrescenta a pesquisadora.
Para
Pelatieri, os retrocessos na legislação trabalhista devem ser lidos como parte
de uma agenda que envolveu, além do “Teto de Gastos”, privatizações, mudanças na política de preços
da Petrobras e desfinanciamento da agricultura familiar,
elevando o preço dos alimentos e propiciando a volta da fome.
Rasgando a CLT
Se
2016 foi difícil para os trabalhadores brasileiros, as mudanças introduzidas no
ano seguinte se mostraram ainda mais devastadoras.
Em
março, o Congresso aprovou a “terceirização irrestrita”,
mesmo quando se trata da atividade-fim das empresas em questão. Todos os
entrevistados ouvidos pela reportagem enfatizaram o agravamento da precarização
a partir dessa medida.
Era o prenúncio da reforma trabalhista, aprovada em julho.
“Ela tramitou em
tempo recorde. Em seis meses, foram introduzidas mais de 200 modificações na
legislação”, ressalta a economista Marilane Teixeira, assessora sindical na
área de trabalho e gênero e integrante do Fórum Permanente em Defesa dos
Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização.
Só
na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), foram 130 alterações. Nenhuma
delas ampliou direitos dos empregados, frente aos empregadores.
“A
legislação deveria dar conta de proteger o elo mais frágil da relação
capital-trabalho, que é o trabalhador. A reforma trabalhista faz uma inversão
dessa lógica. Ela tem objetivo de cortar custos relacionados à contratação,
remuneração, intervalos entre jornadas, deslocamento, saúde e segurança”,
enfatiza Pelatieri.
Tic-tac
Para
o professor José Dari Krein, um dos elementos mais importantes dessa reforma é
a gestão do tempo. “O aspecto central da reforma é viabilizar o mercado de
trabalho flexível, ampliar a liberdade do empregador de gerir a força de
trabalho de acordo com o que é mais conveniente com o seu negócio, no tempo e
no espaço”, analisa.
“Aumentar
a liberdade da empresa significa diminuir a possibilidade de o trabalhador
organizar sua vida pessoal. Porque ele passa a estar muito mais tempo em função
do trabalho do que antes da reforma”, acrescenta o especialista.
O
chamado “trabalho intermitente”, previsto na reforma, radicalizou essa
situação. “Nessa modalidade, o trabalhador deve estar à disposição da empresa
para o que ela precisar, do jeito que ela quiser. Chegando ao cúmulo de o
trabalhador ter que pagar multa quando não atende essa solicitação”, explica a
pesquisadora do Dieese.
Os
contratos intermitentes, uma das principais apostas da equipe econômica de
Temer para geração de empregos, representaram 19% das novas
contratações com carteira assinada no Brasil em 2019, segundo
dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED). Já do total
de brasileiros com carteira assinada, apenas 1% possuem contratos
intermitentes.
Entre
os contratos existentes, cerca de 1/4 nunca se concretizaram. Ou seja, o
trabalhar nunca foi chamado pela empresa. “Em 2019, 25% dos contratos
intermitentes não tiveram uma hora de trabalho, nem rendimento. Não saiu da
gaveta”, afirma Pelatieri.
O
fracasso dessa modalidade não significa que a reforma não produziu efeitos
negativos. Em paralelo à liberação dos contratos intermitentes, foi aberto um
leque de outras opções flexibilizadoras.
Trabalhadores terceirizados têm mais risco de acidente em frigoríficos, diz sindicalista / MPT-RS/Divulgação
Vínculos que antes
feriam a CLT, como a contratação de empregados via Pessoa Jurídica (PJ) ou
Microempreendedor Individual (MEI), foram legalizados imediatamente, empurrando
milhões de pessoas para a situação de informalidade ou de “trabalhador por
conta própria”.
Dos
6 milhões de empregos prometidos pela equipe de Temer, foram gerados menos de 1
milhão, até o início da pandemia.
Sindicatos e Justiça do Trabalho no alvo
Em
outras palavras, Temer ofereceu opções “mais vantajosas” para os empregadores
do que a carteira assinada, deixando milhões de trabalhadores vulneráveis.
“O
que ele fez foi substituir o trabalho formal, o assalariamento, com direitos e
proteção social, pelo trabalho por conta própria, informal, favorecido por
outras duas grandes medidas adotadas na reforma trabalhista: o enfraquecimento
dos sindicatos e da Justiça do Trabalho”, interpreta a economista Marilane
Teixeira.
O fim do Ministério do Trabalho, o desinvestimento nos órgãos de fiscalização, e a extinção da contribuição sindical obrigatória mostraram que “a ideia era, de fato, desmontar e desestruturar a organização dos trabalhadores” – nas palavras de Pelatieri, do Dieese.
O
“negociado sobre o legislado” também passou a vigorar, como queria parte do
setor empresarial desde os anos 1990. Ou seja, o resultado da negociação entre
patrão e empregado, em condições evidentemente desiguais, pode se sobrepor ao
texto da lei.
Para
completar, a partir da reforma, o empregado que entrar com ação trabalhista e
perder, no tribunal, fica obrigado a pagar os custos processuais da empresa. O
objetivo, segundo Krein, era “inibir as pessoas a reclamarem seus direitos”.
Dois
anos após a reforma, o número de ações
trabalhistas caiu 32%.
Reforma da Previdência
A
cereja desse bolo, com gosto amargo para os trabalhadores, era a reforma da
Previdência. Para Teixeira, o governo Temer só não conseguiu aprová-la porque
2018 era ano eleitoral.
“Parte
dos parlamentares não quiseram se indispor com a sociedade diante de uma
reforma absolutamente contrária aos interesses da classe trabalhadora, e cujos
prejuízos eram ainda mais evidentes do que na trabalhista”, avalia.
A
pesquisadora lembra que o argumento mais usado pelos setores favoráveis à
reforma era falso. “A gente demonstrou, em vários estudos e publicações, que o
sistema de Seguridade Social nunca foi deficitário. E, mesmo a Previdência em
si, só registrou déficit no momento da crise, em que houve queda na capacidade
de arrecadação do Estado”.
Coube a Jair Bolsonaro (sem partido), apoiador do impeachment, sancionar a reforma da Previdência em 2019 – com regras mais favoráveis para militares, que conformam sua base de apoio.
A
idade mínima para aposentadoria de mulheres passou de 60 para 62 anos, com
regras específicas para trabalhadores rurais, policiais e professores.
No
setor privado, mesmo com a idade mínima, antes era possível escolher entre
aposentar-se por idade ou por tempo de contribuição. Aposentando-se por idade,
era necessária uma contribuição mínima de 15 anos. Quem quisesse se aposentar
abaixo da idade mínima poderia fazê-lo, desde que somasse 30 anos de
contribuição, no caso de mulheres, e 35 anos, no caso de homens.
Com
a reforma, essa opção tornou-se impossível. Mesmo quem já contribuiu pelo tempo
mínimo não pode aposentar-se antes da idade mínima.
Na prática
Para
ilustrar como esse conjunto de mudanças é perceptível no chão de fábrica, o Brasil de Fato selecionou
um setor específico, com alto índice de acidentes e adoecimentos: os
frigoríficos.
Antes
das reformas, os parâmetros de bancos de horas eram definidos em assembleias,
com a participação dos sindicatos. Hoje, a negociação se dá diretamente entre
patrão e empregado.
“O
banco de horas é gerado quando a produção está em alta. Nesse período, com
jornadas mais longas, a atividade é mais penosa e há mais adoecimentos”,
explica José Modelski Júnior, secretário-geral da Confederação
Brasileira Democrática dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac).
“Não
adianta nada, depois, o trabalhador ter folgas acumuladas no banco de horas,
porque os problemas já foram causados. Principalmente, lesões por atividade
repetitiva, que é a maior causa de adoecimentos no setor de frigoríficos”,
acrescenta.
Modelski
cita ainda os impactos da terceirização da atividade-fim no setor.
“Tem
empresas que fornecem trabalhadores para os frigoríficos, para a indústria
metalúrgica ou têxtil, sem distinção. Eles recebem menos e não têm treinamento,
portanto, têm maior índice de acidentes”, relata o sindicalista.
As
pressões constantes da classe empresarial, pela redução do tempo de intervalo e
pela flexibilização de normas de
segurança, coincidem com o afastamento do sindicato das
negociações.
“São
todos itens que ajudam, para as empresas, a reduzir custos e aumentar o
lucro, mas que impactam diretamente na saúde e nos salários”, lamenta Modelski.
“Tem empresas que passaram, simplesmente, a se negar a dialogar com os
sindicatos. E isso tudo é consequência desse processo que vem desde o
impeachment, que a gente percebe que continua e se aprofunda.”
Pandemia e perspectivas
A
explosão do trabalho informal e por conta própria não significa maior liberdade
para os empregados, segundo Krein.
“É
estratégia de sobrevivência. As pessoas precisam se virar, ter alguma renda.
Por isso, vemos cada vez mais pessoas no semáforo vendendo pano de prato,
vendendo bala. Não tem emprego, e a reforma só agravou esse problema”, analisa
o professor da Unicamp.
Para Marilane
Teixeira, a pandemia joga luz sobre uma realidade que os governos Temer e
Bolsonaro tentavam invisibilizar. “O governo percebeu, de repente, que um
número enorme de trabalhadores, diante da necessidade de isolamento, perdeu a
renda imediatamente, porque não tinha nenhum tipo de proteção social”, lembra.
“Então,
100 milhões de pessoas tiveram que buscar o auxílio emergencial, que só foi
concedido pelo governo após muita pressão, e ainda em valor inferior ao que
pretendia a oposição”, enfatiza a pesquisadora.
Patrícia
Pelatieri, do Dieese, acrescenta que a pandemia teria efeitos econômicos menos
devastadores se o mercado de trabalho brasileiro não estivesse tão
desestruturado.
“Com
empregos mais protegidos, a crise pandêmica seria menos grave”, diz. “Os mais
impactados são jovens, mulheres, negros, trabalhadores sem carteira e idosos
acima de 60 anos, que foram empurrados de volta ao mercado de trabalho pela
reforma da Previdência”.
Para José Dari
Krein, o atropelo da legislação trabalhista não acabou. Propostas como a Carteira Verde e Amarela,
em que o trabalhador abre mão de parte dos direitos em nome da preservação do
emprego, segue no horizonte do ministro Paulo Guedes, da Economia.
“A
lógica da reforma continua na agenda do governo Bolsonaro. Ele tem declarado
com insistência que o mercado de trabalho ideal, em sua visão, é aquele próximo
à informalidade, sem direito nenhum, em que o trabalhador individualmente
negocia seu contrato com o empregador, em condições evidentemente desiguais”,
finaliza.
Edição: Poliana Dallabrida
Fonte:
Brasil de Fato
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