"No Brasil, estamos instaurando um novo modelo capaz de conjugar
estabilidade econômica e inclusão social. As negociações comerciais não são um
fim em si mesmo. Devem servir à promoção do desenvolvimento e à superação da
pobreza. O comércio internacional deve ser um instrumento não só de criação,
mas de distribuição de riqueza", disse Lula em 2003, arrancando aplausos
de líderes internacionais
Foto: Ricardo Stuckert) |
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– Diante de uma platéia de chefes de Estado, o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva discursou por cerca de 20 minutos na abertura da
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas no dia 23 de setembro de 2003.
Leia
abaixo a íntegra do discurso:
Discurso do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva na abertura da 58a Assembléia Geral da ONU:
“Que minhas primeiras palavras
diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de
vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência no interior das
nações e no plano internacional.
Em nome do povo brasileiro,
reafirmo nossa crença nas Nações Unidas. Seu papel na promoção da paz e da
justiça permanece insubstituível.
Rendo homenagem ao Secretário-Geral, Kofi Annan, por sua liderança na defesa de
um mundo irmanado pelo respeito ao direito internacional e a solidariedade
entre as nações.
Esta Assembléia se instala
sob o impacto do brutal atentado à Missão da ONU em Bagdá que vitimou o Alto
Comissário para Direitos Humanos, nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello. A
reconhecida competência de Sérgio nutria-se das únicas armas em que sempre acreditou:
o diálogo, a persuasão, a atenção prioritária aos mais vulneráveis. Exerceu, em
nome das Nações Unidas, o humanismo tolerante, pacífico e corajoso que espelha
a alma libertária do Brasil. Que o sacrifício de Sérgio e de seus colegas não
seja em vão. A melhor forma de honrar sua memória é redobrar a defesa da
dignidade humana onde quer que ela esteja ameaçada.
Saúdo
fraternalmente o senhor Julian Hunte, que assume a Presidência desta Assembléia
em momento especialmente grave na história da ONU. A comunidade internacional
está diante de enormes desafios políticos, econômicos e sociais, que exigem
esforço acelerado de reforma da Organização, para que nossas decisões e ações
coletivas passem a ser de fato respeitadas e eficazes.
Senhoras e Senhores,
Nesses nove meses como
presidente do Brasil, tenho dialogado com líderes de todos os continentes.
Percebo nos meus interlocutores forte preocupação com a defesa e o
fortalecimento do multilateralismo. O aperfeiçoamento do sistema multilateral é
a contraparte necessária do convívio democrático no interior das Nações. Toda
nação comprometida com a democracia, no plano interno, deve zelar para que,
também no plano externo, os processos decisórios sejam transparentes,
legítimos, representativos.
As tragédias do Iraque e do
Oriente Médio só encontrarão solução num quadro multilateral, em que a ONU
tenha um papel central. No Iraque, o clima de insegurança e as tensões
crescentes tornam ainda mais complexo o processo de reconstrução nacional. A
superação desse impasse somente poderá ser assegurada a partir da liderança da
ONU. Não apenas no restabelecimento de condições aceitáveis de segurança, mas
também na condução do processo político, com vistas à restauração plena da
soberania iraquiana no mais breve prazo.
Não podemos fugir a nossas
responsabilidades coletivas. Pode-se talvez vencer uma guerra isoladamente. Mas
não se pode construir a paz duradoura sem o concurso de todos.
Senhor presidente,
Dois anos depois, ainda
estão vivas em nossa memória as imagens do bárbaro atentado de 11 de setembro.
Existe, hoje, louvável disposição de adotar formas mais efetivas de combate ao
terrorismo, às armas de destruição em massa, ao crime organizado. Constata-se,
no entanto, preocupante tendência de desacreditar a nossa Organização e até
mesmo de desinvestir a ONU de sua autoridade política.
Sobre esse ponto não deve
haver qualquer ambigüidade. A ONU não foi concebida para remover os escombros
dos conflitos que ela não pôde evitar por mais valioso que seja o seu trabalho
humanitário. Nossa tarefa central é preservar os povos do flagelo da guerra.
Buscar soluções negociadas com base nos princípios da Carta de São Francisco.
Não podemos confiar mais na
ação militar do que nas instituições que criamos com a visão da História e a
luz da Razão.
A reforma da ONU tornou-se
um imperativo, diante do risco de retrocesso no ordenamento político
internacional. É preciso que o Conselho de Segurança esteja plenamente equipado
para enfrentar crises e lidar com as ameaças à paz. Isso exige que seja dotado
de instrumentos eficazes de ação.
É indispensável que as
decisões deste Conselho gozem de legitimidade junto à Comunidade de Nações como
um todo. Para isso, sua composição em especial no que se refere aos membros
permanentes não pode ser a mesma de quando a ONU foi criada há quase 60 anos.
Não podemos ignorar as
mudanças que se processaram no mundo, sobretudo a emergência de países em
desenvolvimento como atores importantes no cenário internacional muitas vezes
exercendo papel crucial na busca de soluções pacíficas e equilibradas para os
conflitos.
O Brasil está pronto a dar a
sua contribuição. Não para defender uma concepção exclusivista da segurança
internacional. Mas para refletir as percepções e os anseios de um continente
que hoje se distingue pela convivência harmoniosa e constitui um fator de
estabilidade mundial. O apoio que temos recebido, na América do Sul e fora
dela, nos estimula a persistir na defesa de um Conselho de Segurança adequado à
realidade contemporânea.
É fundamental, igualmente,
devolver ao Conselho Econômico e Social o papel que lhe foi atribuído pelos
fundadores da Organização. Queremos um ECOSOC capaz de participar ativamente da
construção de uma ordem econômica mundial mais justa. Um ECOSOC que, além
disso, colabore com o Conselho de Segurança na prevenção de conflitos e nos
processos de reconstrução nacional.
A Assembléia Geral, por sua
vez, precisa ser politicamente fortalecida para, sem dissipação de esforços,
dedicar-se aos temas prioritários. A Assembléia Geral tem cumprido papel
relevante ao convocar as grandes Conferências e outras reuniões sobre direitos
humanos, meio ambiente, população, direitos da mulher, discriminação racial,
AIDS, desenvolvimento social.
Mas ela não deve hesitar em
assumir suas responsabilidades na administração da paz e segurança
internacionais. A ONU já deu mostras de que há alternativas jurídicas e
políticas para a paralisia do veto e as ações sem endosso multilateral. A paz,
a segurança, o desenvolvimento e a justiça social são indissociáveis.
Senhor presidente,
O Brasil tem se esforçado
para praticar com coerência os princípios que defende.O novo relacionamento que
estamos estabelecendo com os vizinhos do continente Sul-americano baseia-se no
respeito mútuo, na amizade e na cooperação. Estamos indo além das
circunstâncias históricas e geográficas que compartilhamos, para criar um inédito
sentimento de parentesco e de parceria. Neste contexto, nossa relação com a
Argentina é fundamental.
A América do Sul afirma-se,
cada vez mais, como região de paz, democracia e desenvolvimento, que pode,
inclusive, ser uma nova fronteira de crescimento para a economia mundial há
anos estagnada. Além de aprofundar as relações já muito relevantes com nossos
tradicionais parceiros da América do Norte e da Europa, buscamos ampliar e
diversificar nossa presença internacional.
Nas parcerias com a China e com
a Rússia, estamos descobrindo novas complementariedades. Somos, com muito
orgulho, o país com a segunda maior população negra do mundo. Em novembro,
deverei visitar cinco países da África Austral, para dinamizar nossa cooperação
econômica, política, social e cultural. Vamos também realizar um encontro de
cúpula entre os países sul-americanos e os Estados que compõem a Liga Árabe.
Com a Índia e a África do Sul estabelecemos um foro trilateral, orientado para
a concertação política e projetos de interesse comum.
O protecionismo dos países
ricos penaliza injustamente os produtores eficientes das nações em
desenvolvimento. Além disso, é hoje o maior obstáculo para que o mundo possa
ter uma nova época de progresso econômico e social.
O Brasil e seus parceiros do
G-22 sustentaram na reunião da OMC em Cancun que esta grave questão pode ser
resolvida por meio da negociação pragmática e mutuamente respeitosa, que leve à
efetiva abertura dos mercados. Reafirmo nossa disposição de buscar caminhos
convergentes, que beneficiem a todos, levando em conta as necessidades dos
países em desenvolvimento.
Somos favoráveis ao livre
comércio, desde que tenhamos oportunidades iguais de competir. A liberalização
deve ocorrer sem que os países sejam privados de sua capacidade de definir
políticas nos campos industrial, tecnológico, social e ambiental.
No Brasil, estamos
instaurando um novo modelo capaz de conjugar estabilidade econômica e inclusão
social. As negociações comerciais não são um fim em si mesmo. Devem servir à
promoção do desenvolvimento e à superação da pobreza. O comércio internacional
deve ser um instrumento não só de criação, mas de distribuição de riqueza.
Senhor presidente,
Reitero perante esta
Assembléia verdadeiramente universal o apelo que dirigi aos Fóruns de Davos e
Porto Alegre e à Cúpula Ampliada do G-8, em Evian. Precisamos engajar-nos
política e materialmente na única guerra da qual sairemos todos vencedores: a
guerra contra a fome e a miséria.
Erradicar a fome no mundo é
um imperativo moral e político. E todos sabemos que é factível. Se houver de
fato vontade política de realizá-lo. Não me agrada repisar as evidências da
barbárie. Prefiro sempre louvar progressos, por modestos que sejam. Mas não há
como omitir os números que expõem a chaga terrível da miséria e da fome no
mundo.
A fome, hoje, atinge cerca
de 1/4 da população mundial incluindo 300 milhões de crianças. Diariamente, 24
mil pessoas são vitimadas por doenças decorrentes da desnutrição. Nada é tão
absurdo e inaceitável quanto à persistência da fome em pleno século 21, a idade
de ouro da ciência e da tecnologia.
A cada dia a inteligência
humana amplia o horizonte do possível, realizando prodigiosas invenções. E, no
entanto, a fome continua e, o que é mais grave, se alastra em várias regiões do
planeta. Quanto mais a humanidade parece aproximar-se de Deus pela capacidade
de criar, mais o renega pela incapacidade de respeitar e proteger suas
criaturas. Quanto mais o celebramos ao gerar riquezas, mais o ferimos por não
saber, minimamente, reparti-las.
De que vale toda essa
genialidade científica e tecnológica, toda a abundância e o luxo que ela é
capaz de produzir, se não a utilizamos para garantir o mais sagrado dos
direitos: o direito à vida?
Recordo a lúcida advertência
de Paulo VI, feita 36 anos atrás, mas de desconcertante atualidade: ‘os povos
da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência’. A fome é
uma emergência e como tal deve ser tratada. Sua erradicação é uma tarefa
civilizatória, que exige um atalho para o futuro. Vamos agir para acabar com a
fome ou imolar nossa credibilidade na omissão?
Não temos mais o direito de
dizer que não estávamos em casa quando bateram à nossa porta e pediram
solidariedade.
Não temos o direito de dizer
aos famintos que já esperaram tanto: passem no próximo século.
O verdadeiro caminho da paz
é o combate sem tréguas à fome e à miséria, numa formidável campanha de
solidariedade capaz de unir o planeta ao invés de aprofundar as divisões e o
ódio que conflagram os povos e semeiam o terror.
Apesar do fracasso dos
modelos que privilegiam a geração de riqueza sem reduzir a miséria, a miopia e
o egoísmo de muitos ainda persistem. Desde 1º de janeiro, logramos no Brasil
avanços significativos em nossa economia. Recuperamos a estabilidade e criamos
as condições para um novo ciclo de crescimento sustentado. Continuaremos a
trabalhar com vigor para manter o equilíbrio das contas públicas e reduzir a
vulnerabilidade externa.
Não mediremos esforços para
aumentar as exportações, ampliar a capacidade de poupança, atrair investimentos
e voltar a crescer. Mas devemos ser capazes, ao mesmo tempo, de atender as
necessidades de alimentação, emprego, educação e saúde de dezenas de milhões de
brasileiros abaixo da linha da pobreza. Temos o compromisso de realizar um grande
reforma social no país.
A fome é o aspecto mais
dramático e urgente de uma situação de desequilíbrio estrutural, cuja correção
requer políticas integradas para a promoção da cidadania plena.
Por isso, lancei no Brasil o
projeto “Fome Zero”, que visa por meio de um grande movimento de solidariedade
e de um programa abrangente envolvendo o governo, a sociedade civil e o setor
privado eliminar a fome e suas causas.
O Programa conjuga medidas
estruturais e emergenciais e já atende quatro milhões de pessoas que não tinham
sequer o direito de comer todos os dias. Nossa meta é que até o final de meu
governo nenhum brasileiro passe fome.
Senhor presidente,
As Nações Unidas aprovaram
as Metas do Milênio. A FAO possui notável experiência técnica e social. Mas
precisamos dar um salto de qualidade no esforço mundial de luta contra a fome.
Propus, nesse sentido, a criação de um Fundo Mundial de Combate à Fome e sugeri
formas de viabilizá-lo.
Existem outras propostas,
algumas já incorporadas a programas das Nações Unidas.O que faltou até agora
foi a imprescindível vontade política de todos nós, especialmente daqueles
países que mais poderiam contribuir. De nada servem os fundos se ninguém aporta
recursos. As Metas do Milênio são louváveis mas, se continuarmos omissos, se o
nosso comportamento coletivo não mudar, permanecerão no papel e a frustração
será imensa.
É preciso, mais do que
nunca, transformar intenção em gesto. É preciso praticar o que pregamos. Com
audácia e bom senso. Com ousadia e pés no chão. Inovando no conteúdo e na
forma. Adotando métodos e soluções novas, com intensa participação social.
Por isso, submeto à
consideração dessa Assembléia a hipótese de criar, no âmbito da própria ONU, um
Comitê Mundial de Combate à Fome, integrado por chefes de Estado ou de governo,
de todos os continentes, com o fim de unificar propostas e torná-las
operativas.
Esperamos motivar
contribuições financeiras de países desenvolvidos e em desenvolvimento, de
acordo com as possibilidades de cada um, bem como de grandes empresas privadas
e organizações não governamentais.
Senhor presidente,
Minha experiência de vida e
minha trajetória política ensinaram-me a acreditar acima de tudo na força do
diálogo. Nunca me esquecerei da lição insuperável de Ghandi: ‘A violência,
quando parece produzir o bem, é um bem temporário; enquanto o mal que faz é
permanente’.
O diálogo democrático é o
mais eficaz de todos os instrumentos de mudança. A mesma determinação que meus
companheiros e eu estamos empregando para tornar a sociedade brasileira mais
justa e humana, empregarei na busca de parcerias internacionais com vistas a um
desenvolvimento equânime e a um mundo pacífico, tolerante e solidário.
Este século, tão promissor do
ponto de vista tecnológico e material, não pode cair em um processo de
regressão política e espiritual. Temos a obrigação de construir, sob a
liderança fortalecida das Nações Unidas, um ambiente internacional de paz e
concórdia.
A verdadeira paz brotará da
democracia, do respeito ao direito internacional, do desmantelamento dos
arsenais mortíferos e, sobretudo, da erradicação definitiva da fome.
Senhor presidente,
Chefes de Estado e de
governo,
Não podemos frustrar tanta
esperança. O maior desafio da humanidade e, ao mesmo tempo, o mais belo é
justamente este: humanizar-se.
É hora de chamar a paz pelo
seu nome próprio: justiça social.
Tenho certeza de que,
juntos, saberemos colher a oportunidade histórica da justiça.
Muito obrigado.”