Em parceria com o The Intercept Brasil, o portal El País Brasil revela
que procuradores discutiram usar caso de Paulo Preto, operador do PSDB, para
reunir munição contra ministro Gilmar Mendes. Diálogos no Telegram mostram o
empenho da força-tarefa pelo impeachment do magistrado, numa ação totalmente
ilegal
247 - Em parceria
com o The Intercept Brasil, o portal El País Brasil revela que procuradores da Operação Lava
Jato em Curitiba
fizeram um esforço de coleta de dados e informações sobre o ministro do Supremo
Tribunal Federal, Gilmar Mendes, com o objetivo de pedir sua suspeição e até seu
impeachment, numa ação completamente ilegal, pois, de acordo com a
Constituição, os ministros do Supremo só podem ser investigados com autorização
de seus pares.
Liderados
por Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa, procuradores e assistentes
se mobilizaram para apurar decisões e acórdãos do magistrado para embasar sua
ofensiva, mas foram ainda além. Planejaram acionar investigadores na Suíça para
tentar reunir munição contra o ministro, ainda que buscar apurar fatos ligados
a um integrante da Corte superior extrapolasse suas competências
constitucionais, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem. A
estratégia contra Gilmar Mendes foi discutida ao longo de meses em conversas de
membros da força-tarefa pelo aplicativo Telegram enviadas ao The Interceptpor uma fonte anônima e
analisadas em conjunto com o EL PAÍS.
Na guerra aberta contra o
ministro do Supremo, os procuradores se mostraram particularmente animados em
19 de fevereiro deste ano. "Gente essa história do Gilmar hoje!! (...)
"Justo hoje!!! (...) "Que Paulo Preto foi preso", começa
Dallagnolno chat grupo Filhos do
Januário 4, que reúne procuradores da força-tarefa. A conversa se desenrola
e se revela a ideia de rastrear um possível elo entre o magistrado e Paulo
Vieira de Souza, o Paulo Preto, preso em Curitiba num desdobramento da Lava
Jato e apontado como
operador financeiro do PSDB.Uma aposta era que Gilmar Mendes, que já
havia concedido dois habeas corpusem
favor de Preto, aparecesse como beneficiário de contas e cartões que o operador
mantinha na Suíça, um material que já estava sob escrutínio dos investigadores
do país europeu.
“Vai que tem um para o
Gilmar…hehehe”, diz o procurador Roberson Pozzobon no grupo, em referência aos
cartões do investigado ligado aos tucanos. A possibilidade de apurar dados a
respeito de um ministro do Supremo sem
quereré tratada com ironia. “vc estara investigando ministro do supremo,
robinho.. nao pode”, responde o procurador Athayde Ribeiro da Costa. “Ahhhaha”,
escreve Pozzobon. “Não que estejamos procurando”, ironiza ele. “Mas vaaaai
que”. Dallagnol então reforça, na sequência, que o pedido à Suíça deveria ter
um enfoque mais específico: “hummm acho que vale falar com os suíços sobre
estratégia e eventualmente aditar pra pedir esse cartão em específico e outros
vinculados à mesma conta”, escreve. “Talvez vejam lá como algo separado da
conta e por isso não veio" (...) "Afinal diz respeito a OUTRA
pessoa”. A força-tarefa de Curitiba tem dito que não reconhece as mensagens que
têm sido atribuídas a seus integrantes e repetiu à reportagem que o
"material é oriundo de crime cibernético e tem sido usado, editado ou fora
de contexto, para embasar acusações e distorções que não correspondem à
realidade".
Nas mensagens, tudo começa
porque Dallagnol comenta saber de "um boato" vindo da força-tarefa
de São Paulo (FT-SP) de que parte do dinheiro mantido por Paulo Preto em
contas no exterior pertenceria a Mendes. "Mas esse boato existe
mesmo?", pergunta o procurador Costa. "Pessoal da FT-SP disse que
essa info chegou a eles", responde Julio Noronha em referência aos colegas
paulistas. Procurada, a assessoria de imprensa do FT-SP afirmou que “jamais
recebeu qualquer informação sobre suposto envolvimento de Gilmar Mendes com as
contas no exterior de Paulo Vieira de Souza”. E também que “se recebesse uma
informação a respeito de ministro do STF, essa informação seria encaminhada à
PGR [Procuradoria Geral da República]". E que “jamais passaria pela
primeira instância para depois ir para a PGR”.
O artigo 102 da
Constituição determina que os ministros do Supremo só podem ser
investigados com autorização de seus pares, a não ser que apareçam em uma
investigação já em curso, a chamada investigação cruzada. Caso seja este o
caso, a competência é necessariamente da PGR. Para o procurador da República
Celso Três, que atuou no início do caso Banestado, um marco contra a lavagem de
dinheiro, e trabalhou diretamente com o ex-juiz Sergio Moro, os procuradores
não cogitam nos diálogos apenas um atalho para chegar a Mendes. "É uma
violação grave do devido processo legal", afirma em entrevista ao EL PAÍS.
Ele avalia que, nas conversas, os procuradores de Curitiba demonstraram
intenção de desviar a finalidade da investigação, porque tinham autoridade para
escrutinar o operador do PSDB, mas planejaram aprofundar essa colaboração com o
intuito de atingir o ministro do Supremo. “Não estou defendendo Gilmar, mas
está muito claro que estavam em seu encalço”.
A reportagem questionou à
força-tarefa de Curitiba se os procuradores pediram informações aos
investigadores na Suíça sobre possíveis ligações de Mendes e Paulo Preto. E,
caso tenham encontrado elementos, se foram enviados à PGR. Por meio da
assessoria de imprensa, os procuradores afirmaram que "não surgiu nas
investigações nenhum indício de que cartões da conta de Paulo Vieira de Souza
tenham sido emitidos em favor de qualquer autoridade sujeita a foro por
prerrogativa de função". "Qualquer ilação nesse sentido, por parte de
quem for, seria mera especulação", ressaltou a nota. "Em todos os
casos em que há a identificação de pagamentos de vantagens indevidas e lavagem
de ativos no exterior, o Ministério Público busca fazer o rastreamento do
destino de todos os ativos ilícitos, para identificar os destinatários
desconhecidos", ressalta. Eles insistem que sempre que surgem indícios do
envolvimento em crimes de pessoas com foro privilegiado, a força-tarefa
encaminha as informações à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo
Tribunal Federal.
"Cuidado porque o STF é corporativista"
Celso Três diz que os
procuradores poderiam até enviar à PGR material contra Gilmar, desde que estas
provas tenham sido encontradas acidentalmente em alguma investigação.
"Isso pressupõe fundamentalmente que a prova caia no teu colo",
afirmou. "Não existe encontro fortuito de prova quando você busca alguma
coisa", acrescentou. Outro especialista, que concordou em analisar as
mensagens sob anonimato, acrescenta que, no caso de toparem com alguma prova
relacionada com detentores de foro privilegiado, como Mendes, a investigação é
suspensa e precisa ser remetida para a PGR. “Isso é bem comum em casos de
políticos que foram encontrados em investigações da Lava Jato”, explica o
jurista, que frisa não conhecer casos de ministros do Supremo que tenham sido
denunciados a partir de investigações cruzadas.
Ciente do terreno minado que
a força-tarefa entra ao mirar Mendes, Dallagnol tenta se precaver: “E nós não
podemos dar a entender que investigamos GM”, diz em certo momento, em
referência a Gilmar Mendes. Mas, na sequência, afirma: “Caso se confirme essa
unha e carne, será um escândalo”, diz sobre a relação próxima entre o ministro
e o operador. E sugere: “Vale ver ligações de PP pra telefones do STF”,
ressalta, referindo-se a Paulo Preto. Mais uma vez, Dallagnol recebe um alerta
de um colega. “Mas cuidado pq o stf é corporativista, se transparecer que vcs
estão indo atrás eles se fecham p se proteger”, diz Paulo Galvão. Dias depois,
a força-tarefa descobriria que o ex-senador tucano Aloysio Nunes ligou para o
gabinete de Mendes no dia da prisão de Paulo Preto.
A tese levantada nas
conversas por alguns procuradores para ligar Mendes a Paulo Preto,
especialmente por Dallagnol, passa justamente pelo tucano Aloysio. Nas
conversas, os procuradores lembram que Paulo Preto era subordinado do tucano
durante o Governo FHC, quando o ex-senador foi ministro-chefe da
Secretaria-geral da Presidência, entre 1999 e 2001. E que Gilmar Mendes
trabalhava “do ladinho” —segundo as palavras de Roberson Pozzobon— de ambos. A
triangulação se fecharia porque, naquele período, Mendes foi subchefe para
assuntos jurídicos da Casa Civil (entre 1996 a 2000) e advogado-geral da União
(de 2000 a 2002). Em 21 de fevereiro deste ano, no mesmo chat, Pozzobon diz:
“Acho que tem uma chance grande de ALOYSIO ter colocado GILMAR no STF”. O
procurador Paulo Roberto Galvão pondera. “Mas calma que isso não quer dizer
muita coisa rs”. Dallagnol, então, discute uma estratégia para direcionar a
pauta e fazer a história aparecer na imprensa. "Tem q botar no papel. Mostrar
suspeição. Pegar quem trabalhava nessa época no mesmo local. Imprensa é o
ideal", ressalta ele.
Mais uma vez, como informa a
reportagem, o procurador Paulo Galvão tenta puxar o freio de mão do entusiasmo
do coordenador da força-tarefa. “Mas não é novidade que Gilmar veio do psdb e
de dentro do governo fhc!!! Cuidado com isso”. Mas Dallagnol insiste: “agora é
diferente" (...) "Não é uma crença ou partido em comum" (...)
"É trabalhar lado a lado, unha e carme”.
Pozzobon também pondera e diz que é preciso ter informações mais fundamentadas
antes de passá-las para a imprensa. “Mas acho que temos que confirmar
minimamente isso antes de passar pra alguém investigar mais a fundo, Delta”.
"Sonho que Toffoli e GM acabem fora do STF"
Apesar da animosidade da força-tarefa
contra Gilmar Mendes, nem sempre o magistrado, um dos mais criticados da Corte,
esteve contra a Lava Jato, segundo pensavam os procuradores. Em março de 2016,
por exemplo, Gilmar se mostrou um aliado tático da operação, quando suspendeu a
nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil, deixando
assim o ex-presidente sem foro privilegiado. Pelo menos desde 2017, no entanto,
Dallagnol aparece nas mensagens atribuindo ao magistrado o objetivo de
“desmontar as investigações de corrupção”, por estar, segundo o procurador,
ligado a parte delas.
As mensagens analisadas pelo
EL PAÍS e o The Intercept, parte do
pacote de arquivos que o site começou a revelar em 9 de junho, apontam para
uma busca sistemática de Dallagnol por maneiras de afastar o ministro do
Supremo das ações da Lava Jato, mas não apenas ele. "Sonho que Toffoli e
GM acabem fora do STF rsrsrs", comenta. O procurador chega a mobilizar
assistentes para produzir um documento com "o propósito de mostrar
eventuais incongruências [de Mendes] com os casos da Lava Jato". E, ao
longo de anos, insiste nas possibilidades de pedir a suspeição do ministro e
encampar um processo de impeachment. Os colegas, entretanto, ponderam sobre a
ideia de partir para a via do impedimento político e a iniciativa acaba não
saindo do papel.
Em 5 de maio de 2017, por
exemplo, o coordenador da força-tarefa falou aos pares de pleitear o
impedimento de Gilmar Mendes caso o ministro concedesse habeas corpus a Antonio Palocci,
condenado na Lava Jato. "Caros estive pensando e se perdermos o HC do
Palocci creio que temos que representar/pedir o impeachment do GM". O habeas corpus (HC), ele sustentava,
seria a gota d’água que faltava para pedir o afastamento do ministro. Para
embasar o pedido, elencou declarações públicas do ministro contra a
força-tarefa, “incoerência de votos”, “favorecimentos”, e até seus antigos
confrontos com o ex-ministro da Corte Joaquim Barbosa — "só para dar força
moral”.
“Calma, Deltan”, diz a
procuradora Laura Tessler. Ela afirma, então, que soube que o jurista Modesto
Carvalhosa entraria com um pedido de impeachment contra o ministro. “Eu não
acho que nós devemos fazer pedido de impeachment. outros fazerem é bom”, completou
o procurador Paulo Roberto Galvão. Carvalhosa protocolaria o pedido de
impedimento neste ano de 2019, o terceiro contra o ministro, que se soma a ao
menos a outros nove pedidos de impedimento de membros da corte que esperam
encaminhamento do presidente do Senado, o único capaz de iniciar os processos.
Na lista de Dallagnol também
entrou o caso envolvendo os empresários do setor de transportes Lélis Teixeira
e Jacob Barata Filho, acusados de pagar propina a políticos. Conhecido como o Rei do Ônibus, Barata Filho é pai da
afilhada de casamento de Gilmar e sua mulher, Guiomar Mendes. O caso também
envolve um advogado de Gilmar que faz a defesa também de Barata Filho. Gilmar
Mendes mandou soltar os empresários por três vezes seguidas ao longo de 2017.
Naquele ano, o então
procurador-geral da República, Rodrigo Janot, chegou a pleitear a suspeição do
ministro no caso, mas o pedido foi arquivado pela presidenta do Supremo,
ministra Cármen Lúcia, em setembro de 2018. Na época, Cármen Lúcia afirmou ter
consultado Raquel Dodge, atual procuradora-geral da República, antes de tomar a
decisão. No xadrez da Lava Jato, Dodge é a rainha do outro lado do tabuleiro
dos procuradores. Nas conversas, eles afirmam que ela é muito próxima de Gilmar
e que só não o confronta porque “sonha” com uma cadeira no Supremo assim que
seu mandato na PGR terminar, em cerca de um mês, afirma Dallagnol em mensagem
em junho de 2018.
Em março de 2019, a força-tarefa insistiria de novo em
mais um pedido de suspeição de Gilmar Mendes, desta vez no caso Paulo Preto,
alegando relações do magistrado com Aloysio Nunes. Dallagnol articularia com as
forças-tarefas da Lava Jato de Curitiba, do Rio de Janeiro e de São Paulo para
dar força ao pedido, que seria arquivado novamente.
Ainda por meio de nota enviada
à reportagem, os procuradores afirmaram que "dentre os deveres do membro
do Ministério Público, está o de 'adotar as providências cabíveis em face de
irregularidades de que tiver conhecimento, em especial quando relacionadas a
casos em que atuam". "A eventual pesquisa das decisões de um
julgador para analisar qual a eventual medida a adotar seria perfeitamente
regular", ressaltaram. "Dentre as medidas que podem ser analisadas e
estudadas pelo Ministério Público em face de decisões que cogite inadequadas de
um julgador, está a análise de jurisprudência para apresentar recursos, a
representação à respectiva corregedoria ou ao CNJ (Conselho Nacional de
Justiça) ou ainda a representação pela suspeição ou pela apuração de infração
político-administrativa (seguindo o rito de impeachment). Nesse contexto,
contudo, como é público, os procuradores jamais realizaram representação pelo
impeachment do ministro Gilmar Mendes, embora tenham apresentado pedido de
reconhecimento de suspeição"
Noves fora as iniciativas
consideradas fora da alçada de Curitiba na avaliação de especialistas,
Dallagnol não está só em sua frustração contra algumas decisões do Supremo, e
de Gilmar Mendes em particular. Grupo de estudiosos da corte tem apontado a proliferação
de medidas individuais dos magistrados e a falta de coerência na jurisprudência
do STF com um fator instabilidade política. Um dos problemas é que, excetuada a
saída via do impeachment, "no sistema judicial, o Supremo é o ponto
cego", pondera o jurista que analisou as mensagens dos procuradores sob
anonimato. "Um ministro do Supremo não está sujeito ao Conselho Nacional
de Justiça, não tem corregedoria e um ministro, inclusive, não pode corrigir o
outro”, explica.
Para Gilmar Mendes, no
entanto, o problema da falta de correição e do corporativismo estão do outro
lado. “O próprio CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] funciona muito
mal. A corregedoria do Ministério Público praticamente não funciona. Estamos a
falar de uma questão que, em termos republicanos, é muito séria. Quem vigia o
guarda neste caso? Os malfeitos cometidos por procuradores são investigados por
quem? Essa é uma questão que precisa ser respondida”, disse o ministro nesta
segunda-feira, no registro do
site especializado Jota. O CNMP tem ao menos um procedimento
aberto contra Dallagnol, o que apura se ele e um colega cometeram falha disciplinar
ao serem flagrados, em mensagens reveladas peloThe Intercept e pela Folha,
planejando obter lucro ou benesses com a realização de palestras pagas por
empresas e entidades interessadas em se associar à imagem da Lava Jato.
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