Pesquisadores
alertam para início de um ataque sistemático do governo às garantias
conquistadas após a ditadura militar
Brasil de Fato - Nos primeiros
sete meses do governo de Jair Bolsonaro (PSL), 40 ex-ministros se
uniram em manifestos, cartas abertas e notas de repúdio contra políticas,
medidas e posturas da atual gestão federal. O ponto de convergência entre eles: a defesa da
Constituição Federal de 1988.
Para compreender
até que ponto o capitão reformado e sua equipe representam um rompimento e uma
ameaça aos princípios expressos na carta Magna, o Brasil
de Fato ouviu dois especialistas no tema: o historiador Cleonildo
Cruz, da Universidad Nacional Tres de Febrero, da Argentina, Ursula Dias Peres,
especialista em políticas públicas e pesquisadora da Universidade de São Paulo
(USP).
“O que está acontecendo é uma quebra de
paradigma muito forte”, sintetiza Peres, coordenadora do curso de Políticas
Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.
Na interpretação dela, os protagonistas da
disputa política no Brasil das últimas décadas, o Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB) e o Partido dos Trabalhadores (PT), se bem não concordavam em
todas as propostas, tinham uma base muito forte no regramento constitucional de
88, o que resultou em um cenário de fortalecimento das políticas públicas.
Por outro lado, a atual combinação de
desinvestimento, recusa à universalização e rejeição às evidências científicas,
segundo Peres, coloca o país em risco de limitar-se novamente à condição de
subdesenvolvido em termos econômicos, sociais e tecnológicos.
Sobre as políticas preferenciais do
governo Bolsonaro, Peres identifica no estímulo ao armamentismo e à defesa por
conta própria uma demonstração de enfraquecimento das instituições ligadas à
justiça e à segurança, com individualização das políticas.
“É o contrário do
que a gente acredita. Elas devem ser coletivas e, se possível, universais”,
contrapõe.
Para ela, a Emenda Constitucional 95 – do
teto de gastos –, ainda no governo de Michel Temer (MDB), foi uma "semente
de desregulamentação do Estado”. O governo Bolsonaro tornou o desmonte
sistemática.
Constituição
traída
“Nunca houve,
desde o processo de redemocratização, um encontro de ex-ministros para tratar
de temas tão cruciais”, observa o historiador Cleonildo Cruz, sobre as recentes manifestações conjuntas de políticos de diferentes
orientações políticas que comandaram ministérios no passado – todas em repúdio
a iniciativas do atual governo.
“Até a Constituinte tínhamos um regime
ditatorial civil, militar e empresarial que tutelou todas as políticas
públicas”, rememora, pontuando que, na volta do governo aos civis, a
Constituição foi “basilar” para formular as novas políticas. “Depois delas tivemos
a efetivação de políticas protetivas, de consolidação da dignidade humana. E
hoje a gente vê o desmonte completo delas”, assinala.
Ele lembra que o Estatuto da Criança e do
Adolescente foi sancionado em 1990, o Estatuto do Idoso, em 2003, e o da Igualdade
Racial, em 2010. “Agora, com o governo de extrema direita, temos a terra
arrasada de todas essas políticas. Nossa Constituição tem sido rasgada,
desmantelada”, afirma.
Cruz localiza a origem do processo que o
país vive muito antes do golpe que derrubou Dilma Rousseff (PT) e alçou Temer à
Presidência, em 2016: “A raiz já vem desde o regime militar. Foi fruto dessa
Lei de Anistia que não puniu os agentes da ditadura. Os agentes do Estado que
agiram criminalmente ficaram incólumes, sem ser responsabilizados civil e
criminalmente”.
Segundo o entrevistado – que também
dirigiu documentários sobre o período militar, a anistia e a elaboração
constitucional –, o país precisará varrer essa ambiguidade para consolidar sua
democracia.
Reforma tributária
e disposição ao debate
Os entrevistados pelo Brasil de Fato também fizeram projeções
e propostas para o próximo período.
Ursula Dias Peres defende que, ao lado da
preservação de direitos, a esquerda e as forças progressistas reúnam-se para
pressionar por uma reforma tributária. Segundo ela, sem isso, não será possível
pautar a defesa das garantias constitucionais.
“Temos uma taxação baixa sobre a renda,
baixíssima sobre patrimônio e muito desestruturada sobre o consumo e a produção
– às vezes, bitributada. Quanto mais pobre, maior a carga tributária”,
questiona.
Para Cleonildo Cruz, é preciso “furar a
bolha”, debater com as pessoas que não pensam parecido. Nesse sentido, ele
elogia a iniciativa do site The
Intercept Brasil de compartilhar as revelações da Vaza Jato com
veículos que atingem outros públicos, a exemplo da Folha
de S. Paulo e da Veja.
“É preciso ocupar os espaços e ocupar as
ruas. Não à conciliação, sim à radicalidade democrática”, propõe.
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