quarta-feira, 20 de março de 2019

Assentamento Dorcelina Folador: de terra sem pássaros a modelo de reforma agrária


Cerca de 130 famílias vivem há 20 anos no território, que fica em Arapongas, norte do Paraná
A produção e comercialização do assentamento é organizada pela Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa, a Copran. / Wellington Lenon
“Aqui não existia passarinho, porque não existia árvore”, resgata da memória o camponês Alencar Hermes, sobre o que viu quando chegou, com a esposa e três filhos, na área onde hoje está o assentamento Dorcelina Folador, em Arapongas, norte paranaense. “Como era uma área de extensão agrícola, quando dava um pequeno vento ficava um poeirão inacreditável”.
Duas décadas depois, o cenário relembrado por Alencar ficou apenas na memória. Hoje, o assentamento é coberto por diversidade produtiva, local de moradia e geração de renda para 130 famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Por acumular dívidas, os cerca de 400 alqueires da fazenda de sementes Balu foram desapropriados e destinados para a reforma agrária em 1999.
Os 20 anos de resistência e conquistas do assentamento foram festejadas na última sexta-feira (15), com a presença de 1.500 pessoas, entre assentados, integrantes de assentamentos e acampamentos da região, lideranças religiosas e autoridades locais e estaduais. Os camponeses ofereceram gratuitamente um almoço com churrasco e um bolo de 100 quilos a todos os participantes.
Além do aniversário, a festa marcou a inauguração da Agroindústria para o beneficiamento de frutas e verduras, produzidas em larga escala na comunidade. A estrutura e os equipamentos foram adquiridos a partir de recursos próprios dos assentados, que integram a Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa (Copran), e por meio de um projeto vinculado à Secretaria de Agricultura do Estado.
“Essa agroindústria vai beneficiar mais de 50 famílias do nosso assentamento, que tem como sua vocação principal a produção de frutas e verduras”, conta Alencar Hermes, atual presidente da Copran. Além de atender a demanda da merenda escolar, a intenção é comercializar para o mercado formal. “Vamos poder processar e embalar os alimentos a vácuo, e dentro de pouco tempo vamos conseguir oferecer as polpas de frutas”.
Essa será a segunda agroindústria do assentamento. A primeira foi inaugurada em 2013, voltada para laticínios, com geração de mais de 100 empregos diretos. Todos os dias são industrializados cerca de 40 mil litros de leite, vindos da produção do assentamento e de aproximadamente 4 mil famílias de municípios da redondeza. Uma grupo de mulheres também mantém uma padaria comunitária, com produção semanal de 380 quilos de pão, 500 de bolo e 400 de bolacha caseira.
A produção e comercialização do assentamento é organizada pela Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa, a Copran. A cooperativa atende 32 municípios e 500 escolas municipais e estaduais com o abastecimento de merenda escolar, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Reconhecimento público
Durante o ato político da festa, dezenas de autoridades políticas, religiosas e representantes de órgãos públicos reafirmaram o compromisso com a reforma agrária e enalteceram as conquistas do assentamento Dorcelina Folador.
Sérgio Onofre, prefeito de Arapongas (PSC), lembrou que 70% da merenda escolar do município é comprada dos assentados e de pequenos agricultores. “O assentamento não é um problema. Ele resolve o problema na cidade na qual está inserido. É só o governo estar ao lado, dar condições. E isso vai muito ao encontro das ideias do nosso governador [Ratinho Junior], de que os produtos sejam industrializados para gerar uma rentabilidade maior para os agricultores”.
Mauro Rockenbach, assessor especial do governo do Paraná que atua no diálogo com os movimentos sociais, representou o governador Ratinho Junior. “A mensagem do governador é a de que ele é governador de todos os paranaenses, e independente das bandeiras ou siglas o nosso Estado vai caminhar junto”, garantiu.
O diretor-presidente do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná, engenheiro agrônomo Natalino Avance de Souza, participou do ato representando Norberto Ortigara, secretário da Agricultura e do Abastecimento do Estado. “Aqui vivem e comem mais de 130 famílias. Se isso aqui fosse uma área de soja, quantas famílias morariam aqui? Cinco famílias. Isso aqui é um exemplo vivo de que é possível viabilizar, sim”.
O deputado estadual Professor Lemos (PT) concedeu uma menção honrosa da Assembleia Legislativa do Paraná ao assentamento, parabenizando pelos 20 anos de fundação. Lemos foi enfático ao apontar qual o papel do Estado com relação à reforma agrária: “Não é tarefa da polícia cuidar da reforma agrária. É uma política pública que tem que ser feita com o orçamento do estado, orçamento dos municípios, e principalmente o orçamento federal, para dar cumprimento a nossa Constituição brasileira, que assegura ao homem e à mulher do campo ter onde morar, produzir e viver com dignidade”.
 Comunidade camponesa
“Temos campo de futebol, parque infantil, espaço para idosos. É muito gostoso viver aqui. Todas famílias que estão comemoram por viver no Dorcelina”, conta a agricultora Roseli Pereira de Campos, em meio à plantação de hortaliças que cultiva junto com os pais e os irmãos, no lote de dois alqueires. “Aqui a gente que organiza o nosso horário. Trabalha de manhã, tira o horário pra fazer o almoço. A gente pode criar os filhos aqui, é mais tranquilo, com espaço grande pra brincar”.
O bem-estar relatado por Roseli é regra entre os assentados, e faz parte do “segredo” do MST para efetivar a reforma agrária popular, como explica José Damaceno, integrante da coordenação estadual do MST e morador do assentamento: “Muita gente pergunta qual é o segredo para o MST dar certo. O nosso segredo é que tem uma organização, tem um sonho a ser realizado, tem um planejamento, e tem as equipes que tocam. Por isso nós construímos esse assentamento e outros tantos”.
Damaceno relata que ao longo dos anos, na construção conjunta com as famílias sem-terra, o desejo passou a ser o de construir a “comunidade camponesa”, onde os serem humanos estão em primeiro lugar, independente da religião, do partido político ou da orientação sexual. “O importante era acreditar no projeto, e que as pessoas pudessem se sentir sujeitas do processo e serem protagonistas, cada um com o seu jeito, suas qualidades, seus limites, colocando o seu tijolinho”.
Para atingir esse objetivo, a educação foi identificada como primordial: “Nossa primeira missão foi a erradicação do analfabetismo. Hoje somos um assentamento livre de analfabetismo. Aqui nós defendemos a ideia de que cada pessoa deveria ter porte de um livro, e não de uma arma”, garante Damaceno.
A assentada Dirlete Dellazari fez parte da ocupação da área em 1999 e se orgulha em afirmar que o Dorcelina serve de referência para a reforma agrária. “Não é apenas a distribuição da terra. É criar as condições para as pessoas viverem, terem educação, saúde, estradas, terem as condições de desenvolver a produção e os seus conhecimentos”.
A agricultura enfatiza a importância das famílias assentadas terem mantido, ao longo dos 20 anos, a identidade de organização social e popular: “Nós somos MST, continuamos e continuaremos sendo MST, porque ele é a nossa fortaleza, para todas as famílias aqui do assentamento”.
Fonte: Brasil de Fato

Nenhum comentário:

Postar um comentário