"O PSDB precisa reconhecer que perdeu feio e analisar o
porquê disso, bem como atualizar-se. Será capaz? Não sei. O mundo mudou muito,
a própria 'social-democracia' é datada", diz o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, que apoiou o golpe contra a presidente Dilma Rousseff e se omitiu
nas eleição presidenciais de 2018, quando não apoiou Fernando Haddad, em razão
de sua relação mal resolvida com o ex-presidente Lula, que o sucedeu no cargo e
deixou a presidência com a maior aprovação da história do Brasil
247 – "O
PSDB precisa reconhecer que perdeu feio e analisar o porquê disso, bem como
atualizar-se. Será capaz? Não sei. O mundo mudou muito, a própria
'social-democracia' é datada", diz o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, que apoiou o golpe contra a presidente Dilma Rousseff e se omitiu nas
eleição presidenciais de 2018, quando não apoiou Fernando Haddad, em razão de
sua relação mal resolvida com o ex-presidente Lula, que o sucedeu no cargo e
deixou a presidência com a maior aprovação da história do Brasil.
Leia abaixo sua coluna deste
fim de semana:
E agora?
É preciso reconstruir a
confiança entre sociedade e poder. Não parece que o presidente atual tenha
essas qualidades
Fazer
campanha é uma coisa, governar é outra. O novo governo mal começou, por isso
tenho sido cauteloso ao falar dele. Dei algumas entrevistas na França e
participei de discussões. Num diálogo na Maison de l'Amérique Latine sobre o
último livro de Alain Touraine, quatro ou cinco ativistas pertencentes a um
"coletivo" levantaram uma faixa. Nela se lia: "Lula livre!"
e algo sobre os "golpistas". Como não fui eu quem mandou prender
Lula, foi a Justiça, e jamais participei de golpe algum, vi o "ato"
com fleuma. Mas, de ato em ato, se vai formando no subconsciente das pessoas e
da mídia a convicção de que houve um golpe no Brasil que destituiu Dilma
Rousseff. Estaríamos agora, com a eleição de Bolsonaro, caminhando para o
fascismo... As perguntas feitas por alguns jornalistas tinham esse pano de
fundo. Que o governo é "de direita" é certo, assumidamente. Que haja fascismo,
só com má-fé. Os que ouviram na TV Globo as declarações do general Mourão podem
eventualmente discordar, mas nada há de fascismo nelas.
No
governo existem tendências autoritárias e gente que vê fantasmas no
"globalismo". Também há pessoas que, contra os supostos males da
"ideologia de gênero", advogam que meninos usem roupas azuis e
meninas, cor-de-rosa. Mais grave, existem pessoas do círculo familiar do
presidente que parecem ter relações bem próximas com as milícias cariocas. Já
houve quem dissesse, e é certo, que a democracia é como uma planta tenra,
precisa ser regada todos os dias. Cuidemos, pois, para evitar o pior. Que a
essas tendências se oponham outras, abertamente democráticas.
O
governo atual é consequência do medo (da violência que se espraiou), do horror
à corrupção política (a Justiça e a mídia mostraram que ela é epidêmica) e da
ansiedade pelo "novo". Que temos culpa no cartório, os do
"antigo regime", é inegável. Se não culpa pessoal, culpa política.
Nesse caso, de pouco adianta bater no peito.
É
preciso reconstruir os laços de confiança entre a sociedade e o poder, o que
requer liderança e ação institucional. Não parece que o presidente atual tenha
as qualidades para tanto. Mas também as oposições estão em jogo: se
simplesmente se opuserem a tudo ou aderirem acriticamente ao governo, pobre
democracia.
O
PSDB precisa reconhecer que perdeu feio e analisar o porquê disso, bem como
atualizar-se. Será capaz? Não sei. O mundo mudou muito, a própria
"social-democracia" é datada. Ela correspondeu ao que de melhor
poderia haver nos marcos do capitalismo industrial, ao longo do século 20: a
conciliação entre a "lógica do capital" e os valores da liberdade e
da igualdade, do ideal democrático. A expressão dessa conciliação foram os
Estados de bem-estar construídos nos países industriais avançados, nos quais se
inspiraram líderes e partidos latino-americanos que chegaram ao poder depois do
predomínio do autoritarismo na região.
A
resposta aos novos desafios é mais difícil – não só no Brasil e na América
Latina, também nos "países centrais" – do que foi a resposta
social-democrata na época do desenvolvimento capitalista urbano-industrial. Como
dar ocupação e renda à maioria da população em economias globalizadas, em que o
aumento de produtividade dependerá cada vez menos de mão de obra não
especializada e mais de conhecimentos, habilidades, capacidades de adaptação e
invenção que podem ser oferecidos por trabalhadores especializados ou máquinas
inteligentes? Mesmo que se possa assegurar uma renda mínima decente a todos,
como resolver a questão da ocupação das pessoas marginalizadas do mercado de
trabalho? São questões para as quais não existem respostas prontas. Mas
tampouco o liberalismo econômico as tem. É ilusão acreditar que o crescimento
da economia contemporânea solucionará por si os novos desafios da
"inclusão social".
E
nós, aqui, vamos empurrar a questão da equidade para debaixo do tapete e rezar
para que o "mercado" resolva tudo? É a tal tipo de visão que os
social-democratas vão aderir? Ou os setores da sociedade fortemente
comprometidos com a democracia, com as liberdades e com ideais de maior
igualdade e dignidade humana terão forças para atualizar o ideário e abrir
caminhos novos? A ver... É esse o enigma que nos espera. Diante dele,
xingamentos e conceitos historicamente esvaziados(como o de fascismo) são
insuficientes tanto para explicar o que acontece na sociedade quanto para
apontar os rumos do futuro.
Nessa
falta de rumos tanto o governo como as oposições estão enredados. Até o momento
a agenda governamental é a da campanha: bandido bom é bandido morto, cadeia para
os corruptos, adesão a outro pensamento único, o de Trump, e assim por diante.
Mas a solução para os problemas da criminalidade, da violência, da corrupção,
do lugar do Brasil no mundo não admite respostas singelas.
É
preciso retomar o ritmo positivo da economia, o que depende de equilibrar as
contas públicas e assegurar a solvência do Estado. Por isso, entre as múltiplas
questões em pauta a reforma da Previdência prima. Seu andamento depende não
apenas de coordenação política no Congresso, uma tarefa complexa, mas também de
o governo definir um rumo claro a seguir e convencer a sociedade de que essa
reforma é um passo necessário. Não se põe em marcha tal processo sem uma visão
convincente sobre para onde se quer conduzir o País.
Esse
desafio é não só do governo, mas do País. Portanto, as oposições têm papel em
seu encaminhamento e solução. Jogar fora a "pauta social" e
substituí-la por outra, "econômica", não nos conduzirá pelo bom
caminho. Aderir ao governo para obter vantagens políticas repugna ao eleitorado.
Mantenhamos nossas crenças, tomemos posições claras, sem adesismo ao governo
nem irresponsabilidade com o País. Sobretudo, imaginemos, critica e
criativamente, como atualizar o ideário da social-democracia, cujas fronteiras
não se limitam ao PSDB.
*SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA
REPÚBLICA
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