Prestes a referendar a nova Constituição, país
reafirma socialismo, mas de olho nos investimentos da iniciativa privada
Turistas em frente à baía de Santiago de Cuba / Foto: Zu Moreira |
Em meio à
crise da Venezuela, um dos principais parceiros comerciais, instabilidade nas
relações com o norte-americano Donald Trump e com o governo de Jair Bolsonaro e
a passagem de um tornado que deixou, no mínimo, seis mortos e dezenas de
feridos, Cuba se prepara para referendar, no próximo dia 24 de fevereiro
(domingo), a nova Constituição, que substituirá a vigente desde 1976. A nova
Constituição pode ser acessada aqui.
No ano em
que se comemora os 60 anos da revolução liderada por Fidel Castro, Camilo
Cienfuegos e Ernesto Che Guevara, os moradores da ilha caribenha devem
reafirmar por meio do voto o caráter socialista do regime, mas com um detalhe.
A nova
carta magna admite a convivência com a iniciativa privada e o direito à
propriedade, embora o modelo de negócio esteja ainda sob a tutela do Estado por
meio das sociedades de economia mista.
O texto
reafirma o caráter socialista do país e reflete as mudanças na estrutura do
Estado, a expansão dos direitos e garantias individuais, o fortalecimento do
poder popular na base (municípios), o Estado Laico e o reconhecimento de várias
formas de propriedade, incluindo a privada.
Apenas
oito artigos foram mantidos iguais a última carta magna do povo cubano,
promulgada em 1976, afirma Luiz Caballero Fernandes, natural de Matanzas,
cientista político e ex-combatente das Forças Armadas Revolucionárias. Pela
nova lei, a idade máxima para ocupar o cargo de presidente é de 60 anos, com mandato
de cinco anos para o presidente, com direito a uma reeleição, totalizando dez
anos de poder, mesmo período em que Raul Castro, sucessor de Fidel, permaneceu
no cargo (2008-2018).
“Uma
mudança importante porque permite uma renovação, a escolha de uma pessoa jovem
para desempenhar sua função. Eu considero que castigamos Fidel Castro o
elegendo por 40 anos, porque ele não pôde ter uma vida privada, ir ao Malecon,
tomar um trago com um amigo, não podia se banhar em Varadero (praia que atraia
turistas ao norte de Havana), compreende? Elegemos ele várias vezes porque ele
era o nosso líder fundamental, universal, enfrentou o império mais poderoso do
mundo. Mas agora não há mais Fidel, será difícil nascer um líder igual a Fidel.
Nosso líder será o Partido Comunista de Cuba, ele vai direto na sociedade. O
povo unido em torno do partido é que irá manter a revolução”, garante
Fernandes.
Ele
destaca o papel das mais de 2 mil organizações não-governamentais que
participaram das discussões. Caso um eventual presidente queira tornar o país
capitalista, a sociedade que o elegeu, segundo ele, tem o direito garantido
pela constituição de se rebelar contra o governante e retirá-lo do poder.
Outro
avanço, segundo Luiz, é a proibição de discriminar gays. No entanto, o casamento
civil entre pessoas do mesmo sexo foi retirado da Nova Constituição, devido à
polêmica liderada pelos setores mais conservadores da população. O tema do
casamento homossexual será levado a referendo mais para frente.
“O mais
importante é que o povo se formou em um povo constituinte. Não foi uma reunião
de deputados. Essa foi a maior democracia que se pode haver no mundo. E se
tornou uma constituição mais moderna, mas integrada ao século 21. Estamos
aperfeiçoando nosso sistema: um socialismo próprio, moderno, sustentável e
solidário. Essas são palavras fundamentais”, afirmou Luiz, que estava com 11
anos quando deu início a revolução cubana.
“Nós
cubanos não somos comunistas dogmáticos, mas sim práticos. Somos hipercríticos.
Estamos seguros e convencidos de que não há uma obra humana perfeita, todos os
dias há de se aperfeiçoá-la. Não há verdade absoluta”, completou.
“Nós
cubanos não somos comunistas dogmáticos, mas sim práticos e hipercríticos”
Cuba
se abre ao turismo e ao consumo
Pela
quantidade de aeronaves de companhias estrangeiras paradas na pista de pouso e
decolagem do Aeroporto Internacional José Mártir, em Havana, seria difícil
entender a razão e funcionamento do bloqueio internacional liderado pelos
Estados Unidos a Cuba. Latam, Copa Airlines, Aeroméxico, American Airlines,
JetBlue, todas faturam no leva e traz de turistas ávidos pelas belezas e
mistérios da ilha dos revolucionários Fidel e Che.
Mas sabe
aquela Cuba símbolo do comunismo arcaico, com carrões conversíveis dos anos 50,
a velha rumba e seus casarões quase em ruínas? Pois então, aos poucos, este
cenário tem dividido espaço com um novo país socialista, que experimenta
mudanças graduais e lentas, mas bastante perceptíveis aos olhos de turistas que
não param de chegar à ilha, sobretudo os canadenses, os campeões.
Na virada
de 2018 para 2019, a expectativa era receber cerca de 5 milhões de visitantes,
quase a metade de toda população cubana, estimada em cerca de 12 milhões. Pelo
volume de estrangeiros circulando por Havana, Varadero, Trinidad, Santa Clara e
Santiago de Cuba, é possível que a meta tenha sido alcançada.
Em Havana
Vieja, a tradicional música cubana disputa espaço com o reggaeton, uma
mistura de reggae, hip-hop e música eletrônica. Grifes como Montblanc, Cannon
ou Lacoste são vendidas no térreo do luxuoso edifício do século 19 que abriga o
Hotel Kempinski, o primeiro cinco estrelas da cidade.
Hotel Kempinski |
Filas se formam a
cada nova loja que se abre ou a cada produto que chega. Cubanos e,
principalmente as cubanas, circulam nas lojas que oferecem sabão em pó OMO e shampoos
da linha Seda. Marca tradicional graças ao seu mojito, o bar Bodeguita Del
Medio, em Havana Velha, já possui 10 filiais, incluindo unidades na Cidade do
México e em Buenos Aires.
Pelas
ruas da capital, é possível ver os adeptos da santería, a religião dos orixás,
cruzando livremente as avenidas com suas vestes brancas e coloridos colares,
católicos na missa das seis, enquanto grupos LGBTs se encontram em pleno
Malecón, a orla de Havana, na altura do bairro Vedado, para se divertir, aos
sábados à noite, ao som de muita música e doses de rum Havana Club. Uma vitória
para uma categoria que até século passado era perseguida e exilada pela polícia
revolucionária.
Caravana da liberdade passeando pelo Malecon |
Prestes a
completar 500 anos de história, Havana busca romper a estagnação e o embargo
econômico que insiste no tempo, com obras por toda parte em busca de mais
turistas. O Capitólio, antiga sede do governo cubano antes da revolução, está
finalizando as reformas. A prefeitura também executa obras para troca de
calçamento, transformando as ruas de Havana Velha em um bulevar comercial, com
suas Artex (rede de lojas de produtos artesanais e culturais cubanos). Por todo
centro histórico cresce a construção e reforma de edifícios para virar hotéis,
em parceria com grupos empresariais da Espanha.
“O Caribe
continua sendo a região de turismo mais intensivo no mundo com uma contribuição
da indústria de 14% ao PIB regional e geração de 13% do emprego, 12% do
investimento e 17% das exportações", afirma relatório encomendando pela
Associação de Hoteleiros e Turismo do Caribe em conjunto com o Conselho Mundial
das Viagens e Turismo (WTTC).
A
culpa é do embargo, estúpido!
Há, no
entanto, quem está insatisfeito com os rumos tomados pelo país. Ao cruzar de
ônibus o país de Ocidente ao Oriente, passando por cinco estados até Santiago
de Cuba, a reportagem ouviu opiniões contrárias ao regime.
“Em Cuba,
não há dinheiro para a população. Vai tudo para política”, disse um motorista
da viação de transporte interestadual pertencente ao governo cubano. “O turista
conhece o país melhor que os cubanos”, completa.
Para um
médico aposentado, no entanto, o principal entrave para o desenvolvimento de
Cuba ainda é o bloqueio imposto pelo país vizinho, os Estados Unidos.
“É o
principal problema, não podemos obter crédito, não podemos usar o dólar norte
americano, todos os países fazem operações de créditos e Cuba não pode”, afirma
Ramón, que hoje aluga quartos para turistas, no centro histórico de Santiago de
Cuba, a primeira capital da ilha.
Ramón
tinha 12 anos quando participou da Campanha de Alfabetização, época em que
conheceu Che Guevara, o argentino ícone da revolução. Clínico geral, participou
de várias missões humanitárias pelo Caribe e África, antes de pendurar o
jaleco.
Ele
explica que o embargo de produtos alimentícios é parcial. Outros países vendem
para Cuba, incluindo o Brasil. “A maioria do frango que consumimos vem do
Brasil, vamos ver se Bolsonaro não influencia o comerciante para não vender os
produtos a Cuba”, disse.
Os
principais parceiros, contudo, continuam sendo os velhos aliados China e
Rússia, sobretudo no setor de transportes e de defesa. Toda a frota renovada de
ônibus cubanos vem da China, incluindo os veículos que servem às linhas
interestadual e de tour turísticos (aqueles vermelhinhos de dois andares).
Recentemente,
a Rússia, que já participa do processo de renovação da frota de locomotivas em
Cuba, assinou acordo comercial com a ilha de cerca de R$ 140 milhões. O
comercio exterior entre os dois países cresceu em média 30% em 2018.
Já a
Espanha é o terceiro maior parceiro comercial de Cuba, atuando principalmente
no setor de turismo, dominado por alianças entre cadeias hoteleiras espanholas
e empresas cubanas. Ano passado, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchez,
fez uma visita oficial ao país caribenho, após 32 anos. O objetivo foi
melhorar as relações comercial e política entre os dois governos.
A visita
do ex-presidente dos EUA, Barack Obama, ao país, em 2016, após 88 anos de
ausência de um representante oficial, também ajudou a abrir as portas do país
para o mundo e até hoje é citado pelos cubanos como um marco histórico na
relação entre os dois países.
Cuba é o
segundo país caribenho no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com índice de
0,769. Criado pelas Organizações da Nações Unidas (ONU), o IDH é uma “medida
resumida do progresso a longo prazo em três dimensões básicas do
desenvolvimento humano: renda, educação e saúde”.
Na
opinião de Ramón, o isolamento imposto à Cuba é um fator que empurra escada
abaixo a renda da população de Cuba. O salário mínimo não passa de 20 CUCs, a
moeda do turista, o equivalente a R$ 100. Por isso a importância do turismo
para o complemento da renda do cubano. Em Havana, só a diária por pessoa, com
café da manhã, é de 30 CUCs. No interior, a diária paga pelo turista em casas
autorizadas pelo governo é 25 CUCs. O CUC vale pouco mais de um euro, o que
torna a ilha um dos destinos mais caros da América Latina.
“Muitos
reclamam porque não têm dinheiro para comprar um celular, por ser muito caro.
Não digo que não temos problemas, porque temos uma economia bloqueada. Não se
pode subir os salários, porque não há dinheiro e a economia despenca, por isso
os salários de Cuba são muito baixos. Porém, as necessidades básicas da
população são resolvidas”, justifica.
Cuba é o
segundo país caribenho no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
Juventude
dividida
A
população mais jovem, no entanto, passa à margem das questões ideológicas. Com
mais acesso à internet, eles sonham com um país de mais liberdade e
oportunidade para a realização de seus sonhos. Por todas as praças, há um
acúmulo de gente conectada ao celular, via cartão da Tecsa (empresa estatal de
telefonia). Os cubanos podem comprar cartões pré-pagos, que permitem navegação
de uma a três horas.
O contato
com o mundo exterior fragiliza a propaganda comunista de Cuba, com seus famosos
painéis em homenagens aos revolucionários e heróis da pátria, como Camilo
Cienfuegos e José Martí. Em vez de estampas de Fidel e Che, tão procuradas
pelos turistas, jovens vestem Puma, Adidas, marcas ícones da sociedade
capitalista.
Em
janeiro, a maioria acompanhou de longe e com certo desinteresse as comemorações
dos 60 anos da revolução cubana, datada de 1º de janeiro de 1959, quando o
ditador e ex-aliado dos Estados Unidos, Fulgêncio Batista, deixou a ilha.
Exceto o dia 1º de janeiro de 2019, quando Raul Castro discursou para a
população em Santiago de Cuba, as demais cerimônias foram simples, não houve
nenhum dia de feriado, mudança no trânsito, nem discursos longos – cada ato
durava cerca de uma hora.
A
Caravana da Liberdade, que recria o trajeto de tomada de Havana, desde Santiago
de Cuba, reuniu pequenos grupos de aliados do Partido Comunista Cubano,
incluindo uma comitiva brasileira de apoiadores do ex-presidente Lula. Outro
grupo é a Federação Estudantil Universitária (FEU). Os jovens faziam a escolta
dos veteranos em carros antigos do Exército Castrista, recebiam certificados e
convites para integrar as frentes revolucionárias.
A rotina
de quem vive nas cidades por onde a caravana passou, no entanto, foi pouco
alterada, a não ser para admiradores mais velhos, servidores públicos,
estudantes liberados de suas atividades na hora do desfile, e turistas mais
identificados com o regime.
“Estamos
atrasados 50 anos”, sentencia um jovem músico de Santa Clara, filho de um dos
milhares de cubanos que retornam por causa do fim do Mais Médicos, programa de
saúde do governo brasileiro que importou mais de 8 mil profissionais cubanos
para assistência à população mais carente do Brasil.
Outro
alheio à política é o jovem cantor de Havana, Yaser Azcuy, que desde 2006 se
envereda pela música. “Eu gostaria de ver uma Cuba mais liberal, com mais
chances para todos aqueles que não têm a oportunidade de realizar seus sonhos”,
afirma.
Nascido
na década de 1980, sob o governo de Fidel Castro, Yaser não demonstra tanta
admiração pelo líder revolucionário, embora haja respeito ao comentar sobre a
importância do ícone da esquerda. “Eu não penso muito sobre o legado, pois me
concentro mais no que eu faço, do que sobre as coisas boas deixadas para
aqueles que se beneficiam dele”, afirma.
No fim do
ano passado, o músico lançou com o parceiro Brian o single Alkateat, uma
“crônica social” sobre o modo de vida de jovens que frequentam a La Gruta, casa
noturna localizada em Vedado, um dos lugares mais badalados de Havana.
“Associamos o estilo de vida das pessoas a cada tipo de doce”, completa.
O clipe,
gravado na praia de Santa Maria, ao leste de Havana, simboliza os novos tempos
que sopram na ilha, com uma batida eletrônica dançante e muita sensualidade,
bem antenado com o atual cenário musical cubano. Veja:
Tudo
isso faz de Cuba uma ilha fascinante em que o passado e presente se misturam a
cada momento, embora o futuro ainda seja difícil de ser revelado.
Fonte:
Brasil de Fato
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