terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Contra Itamaraty, militares impediram guerra com Venezuela, diz Amorim


O ex-chanceler e ex-ministro da Defesa Celso Amorim faz uma análise multilateral da crise na Venezuela e do comportamento dos principais atores externos, em entrevista ao jornal Valor Econômico; indica que "os militares (...) veem com muita restrição a maneira como o Itamaraty está agindo" e "graças a eles, o Brasil não se precipitou nesse conflito"; critica os EUA por utilizar a doação de "ajuda humanitária" como pretexto para uma ação militar contra o país sul-americano e defende uma solução política, com a convicção de que "a página do diálogo nunca devia estar virada"
247 - O ex-chanceler e ex-ministro da Defesa Celso Amorim faz uma análise multilateral da crise na Venezuela e do comportamento dos principais atores externos, em entrevista ao jornal Valor Econômico publicada nesta terça-feira (26). Indica que "os militares (...) veem com muita restrição a maneira como o Itamaraty está agindo" e "graças a eles, o Brasil não se precipitou nesse conflito". Critica os Estados Unidos por utilizar a doação de "ajuda humanitária" como pretexto para desencadear uma ação militar intervencionista contra o país sul-americano. "Tudo vinha sendo feito para colocar uma eventual ação armada sob a capa de intervenção humanitária, que poderia dar alguma legitimidade à intervenção". Defende uma solução política, com a convicção de que "a página do diálogo nunca devia estar virada".
Amorim relata fatos importantes da relação entre os governos de Lula e Chávez. Discorre sobre as relações contraditórias entre o Itamaraty e as Forças Armadas sob o governo Bolsonaro, indicando que a depender do Itamaraty o Brasil já tinha se envolvido no conflito. "Os militares são mais cautelosos e veem com muita restrição a maneira como o Itamaraty está agindo", diz.
Experiente, responsável pela política externa "altiva e ativa" do governo Lula e tendo lidado com a inserção internacional do Brasil no mundo globalizado, defensor do multilateralismo como método de exercício da política externa, o ex-chanceler não poupa críticas ao atual Ministério das Relações Exteriores. "Hoje no Itamaraty o conceito não é mais o de soberania frente aos Estados Unidos, ou frente à China. É a soberania frente aos organismos multinacionais, o que é a mesma visão dos Estados Unidos. Você pode entender que o país mais poderoso do mundo não queira amarras, mas não é o caso do Brasil. Não pode atacar o sistema multilateral como ataca".
Amorim analisa as circunstâncias objetivas da crise econômica venezuelana, sem poupar críticas ao governo bolivariano. "Eles enfrentaram a queda do preço do petróleo e o boicote internacional. Quando o petróleo cai, a Arábia Saudita tem condições de manter o nível de vida porque tem crédito internacional sem ser, exatamente, uma democracia. Mas a Venezuela cometeu muitos erros. Quantas vezes não vi Lula dizer a Chávez que eles tinham que governar para todos? Era uma sociedade muito dividida. Não é verdade que era um país rico que foi destroçado por Chávez. Estive lá no final da década de 1970, no governo Rafael Caldera, e vi o que para mim era a maior favela do mundo, do aeroporto até Caracas. Quando voltei lá no governo Itamar Franco [1992-1994], tinha crescido enormemente".
O ex-chanceler adverte que se os EUA atacarem a Venezuela militarmente "seria a primeira intervenção armada dos Estados Unidos na história da América do Sul". Enfatiza que "nem sequer essa campanha aberta pela mudança de regime" tem paralelos na história política da América Latina. "Claro que os Estados Unidos tiveram um papel fundamental na mudança de regime no Brasil em 1964, no Chile em 1973, na Argentina, no Uruguai e em vários momentos. Mas não proclamavam isso como objetivo. E havia a desculpa do comunismo. Mas hoje só um espírito totalmente fora da realidade pode achar que a Venezuela é uma ameaça comunista".
A política externa brasileira agrava o conflito com a Venezuela, opina Amorim: "O embaixador Rubens Ricupero, que nunca poderá ser acusado de ter ligação com o PT, disse que a nota do Itamaraty de que o governo Maduro é formado por narcotraficantes teria provocado guerra se tivesse sido feita décadas atrás e causou uma "mácula eterna" na nossa política externa". E acrescenta: "Quando chega a esse ponto, é guerra. Não se faz uma coisa dessas. Não concordo com a política externa do [ex-chanceler] Aloysio Nunes, mas ele disse uma coisa que é verdade: o Brasil não pode mediar, porque tem partido. Jamais deveria ter partido, mas uma vez que tem, realmente se desqualificou para mediar. E é o único país da região que tem dez vizinhos e está há quase um século e meio sem guerra. É parte do poder brando do Brasil que hoje está ameaçado. Mas a essa altura, o melhor que o Brasil pode fazer é não atrapalhar uma mediação conduzida pelo México e Uruguai, com participação do secretário-geral da ONU, e talvez a Igreja também. O Papa deu a entender que não queira, mas quem sabe? É a única solução. O que não pode ser dito e foi dito é que 'a página do diálogo está virada'. Nunca deve estar".
Leia aqui a íntegra da entrevista.


Nenhum comentário:

Postar um comentário