O professor do Departamento de História e Relações
Internacionais da UFRRJ Pedro Campos destaca que "tudo aponta" que no
período da ditadura militar no Brasil "havia ainda mais corrupção do que
nos dias atuais"; a diferença, segundo ele, é que os mecanismos de
controle da época "estavam amordaçados ou impedidos de funcionar";
apesar disto, o presidenciável Jair Bolsonaro afirmou, nesta quarta-feira (5),
que se eleito "vou botar generais nos ministérios, sim. Qual o problema?
Os anteriores botavam terroristas e corruptos e ninguém falava nada"
Ana Helena Rodrigeus, Instituto
Vladimir Herzog - Diante dos escândalos de corrupção
vivenciados pela política brasileira nos últimos anos, parte da população clama
por uma intervenção militar alegando que essa seria a solução definitiva para o
problema. A verdade é que durante o período ditatorial houve, sim, corrupção. E
muita. Mas havia também uma forte blindagem estatal, feita através da censura,
que dificultava denúncias desse tipo contra os militares e seus aliados. Essa
prática era considerada estratégia de segurança nacional, uma vez que mantinha
a maior parte da população alheia aos acordos governamentais que envolviam
troca de favores, distribuição de cargos entre amigos e parentes, desvio de
verbas públicas, enriquecimento ilícito e pagamento de propinas.
Apesar
da repressão, episódios de corrupção foram divulgados durante o regime militar.
Entre eles temos o caso do empréstimo de dinheiro público para salvar da
falência a empresa Lutfalla, da família de Paulo Maluf, político ligado aos
militares. Outro acontecimento emblemático foi o de Delfin Neto, ministro do
planejamento do governo Figueiredo, que também atuava no mercado imobiliário
com o Banco Nacional de Habitação (BNH) na venda de terrenos superfaturados que
movimentaram cerca de US$ 200 milhões na época.
Na
década de 1970, Haroldo Leon Peres, governador do Paraná, foi pego extorquindo
um empreiteiro em US$ 1 milhão. Na Bahia, Antônio Carlos Magalhães foi acusado
em 1972 de beneficiar a Magnesita, da qual seria acionista, abatendo em 50% as
dívidas da empresa em seu primeiro mandato no estado. Além disso, os ministros
e servidores federais dispunham de mordomias como jatos da Força Aérea à
disposição, mansões com piscina e dezenas de empregados e gastos pessoais sem
limites. No governo Médici, os generais de brigada que iam para Brasília contavam
com US$ 27 mil para comprar mobília. Tudo financiado pelo dinheiro público.
Em
entrevista ao Instituto Vladimir Herzog, Pedro Campos, professor do
Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro "Estranhas Catedrais: as
empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988", afirma
que mesmo 33 anos depois do fim da ditadura militar, ainda sofremos as
consequências do que foi feito naquela época. "O que percebemos é que os
grupos econômicos fortalecidos com a ditadura continuam poderosos econômica e
politicamente até os dias atuais e permanecem pautando o Estado e as políticas
públicas nos dias de hoje", diz.
Confira a
entrevista completa:
Por que existe no imaginário de parte da população brasileira a
ideia de que a ditadura militar foi uma época de crescimento econômico sem
corrupção do governo?
O
período da ditadura guardou momentos de intenso crescimento econômico, com
elevadas taxas de expansão da produção. Porém, aquele pique econômico, sentido
principalmente no período do chamado "milagre brasileiro"
(1968-1973), não veio acompanhado de distribuição de renda. Pelo contrário,
houve concentração de recursos no período e ampliação da desigualdade social. A
sociedade brasileira se tornou mais injusta com a ditadura, tendo em vista as
políticas estatais implementadas no período, de perfil eminentemente
regressivo. Além disso, existe um mito de que no período não havia corrupção.
Nada mais falso do que isso. O que ocorria naquele momento é que os mecanismos
que hoje funcionam no sentido de investigar e difundir publicamente as
denúncias de corrupção estavam amordaçados ou impedidos de funcionar, como é o
caso da Polícia Federal, do Ministério Público, da imprensa, do judiciário, dos
movimentos sociais, dos sindicatos, dentre outros.
Como realmente foi? Em que grau e de que maneira a corrupção
esteve entranhada no sistema político durante o regime militar?
Tendo
em vista que os instrumentos de fiscalização e controle não possuíam autonomia
no período para proceder investigações e fazer acusações contra as práticas
ilegais, tudo aponta que no período havia ainda mais corrupção do que nos dias
atuais, tendo em vista a facilidade com que elas poderiam ocorrer em um
ambiente sem sindicatos, imprensa, organizações da sociedade civil e do Estado
com liberdade de atuação. No entanto, se ampliarmos o conceito de corrupção e
pensarmos que esta diz respeito à atuação estatal em favor dos interesses
privados, em especial dos propósitos empresariais, temos naquele período um
Estado amplamente corrupto, que agia em favor das empresas e do lucro privado.
As políticas estatais durante a ditadura incorriam em amplo favorecimento às
atividades empresariais, com proteção, reservas de mercado, isenções fiscais,
financiamento facilitado, direcionamento de recursos públicos para encomendas
junto às empresas, política sindical e salarial que favorecia as empresas
privadas, má ou nula fiscalização dos itens de segurança no ambiente de
trabalho, dentre outras iniciativas que faziam o país naquele período um
paraíso para a atuação das empresas e para a obtenção de elevadas margens de
lucro por parte dessas.
Quais consequências daquele período podemos observar na política
brasileira nos dias atuais?
Vivemos
hoje no Brasil uma realidade em boa medida que guarda problemas derivados da
transição incompleta havida da ditadura para um regime realmente democrático.
Assim, a estrutura tributária regressiva e que incide sobre o consumo e não a
renda, herdada da ditadura, permanece. Da mesma forma, a concentração
fundiária, a militarização das polícias, a elevada dívida pública, dentre
outros fardos que temos hoje no Brasil e que não foram criados pela ditadura,
mas potencializados por ela, permanecem nos dias atuais e não foram enfrentados
de fato pelas forças políticas que conduziram o Estado brasileiro desde o
advento da democracia. A ditadura proporcionou um acesso direto e intenso ao
Estado brasileiro por parte do empresariado, o que foi impulsionado pelo regime.
No entanto, com a superação do regime pelo sistema inaugurado pela Constituição
de 1988, não houve a alteração dessa marca. Pelo contrário, o que percebemos é
que os grupos econômicos (de setores como construção civil, bancário e
financeiro, comunicações etc.) fortalecidos com a ditadura, que a apoiaram e
foram favorecidos pelas políticas e medidas implementadas naquele período,
continuaram e continuam poderosos econômica e politicamente até os dias atuais
e permanecem pautando o Estado e as políticas públicas nos dias de hoje, mesmo
superada a ditadura.
É possível esclarecer a população em geral a respeito do que
realmente aconteceu durante o regime militar? Como?
Sim.
Esse é um compromisso que temos que assumir para evitar a repetição de um
regime ditatorial e também para incidir sobre estruturas que foram reforçadas
pelo sistema autoritário, no sentido de transformar o Brasil uma sociedade mais
democrática e justa. Assim, é necessário rever a lei de anistia, que acoberta
os crimes cometidos por agentes do Estado, e julgar os criminosos que cometeram
práticas de tortura, desaparecimento, assassinato e sequestro naquele período.
É necessário também reforçar no ensino brasileiro as lições derivadas da
experiência da ditadura civil-militar. Precisamos rever os nomes de ruas,
logradouros, locais públicos e privados que fazem referência a agentes que
tiveram participação na ditadura e se beneficiaram da mesma. Precisamos também
julgar e punir as empresas que colaboraram com a ditadura, com a repressão e se
beneficiaram das políticas implantadas no período; podemos inclusive cogitar a
expropriação em alguns casos. Por fim, temos que avançar na agenda dos
mecanismos estruturais que foram reforçados pela ditadura e que fazem da
sociedade brasileira uma das mais injustas e desiguais do planeta, como o nosso
sistema tributário, que onera mais os mais pobres; a nossa estrutura fundiária
altamente concentrada; a dívida pública contraída por um regime ilegítimo; e
temos que democratizar os meios de comunicação, que sofreram forte concentração
ao longo da ditadura, em razão da perseguição dos veículos mais independentes e
críticos e favorecimento dos grandes e simpáticos ao regime.
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