FHC DIZ
QUE BRASIL, SEM DEMOCRACIA, REFORÇOU DEMOCRACIA NO MERCOSUL
Em artigo publicado neste domingo, 5, o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso (PSDB) afirmou que, sob o comando do senador José
Serra (PSDB-SP), que deixou o governo de Michel Temer prestes a ser investigado
por receber R$ 23 milhões em uma conta secreta na Suíça na campanha de 2010, o
Brasil reforçou a democracia no Mercosul; "O Itamaraty, sob a batuta
de José Serra, reviu posições e revigorou alguns de nossos antigos propósitos.
Dentre estes, o fortalecimento da cláusula democrática no Mercosul e a consequente
cobrança de novos rumos na Venezuela", diz; o que FHC não diz, no entanto,
é que o Brasil perdeu autoridade de falar em democracia sobre a Venezuela ou
qualquer outro país, depois que retirou do poder uma presidente da República
que não cometeu crime, num golpe parlamentar levado a cabo pelo partido do
próprio ex-presidente, para colocar em seu lugar um grupo de políticos atolados
em escândalos de corrupção.
O ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso defendeu em artigo neste domingo, 5, o legado do senador
José Serra (PSDB-SP) à frente do Itamaraty. Acusado de ter recebido R$ 23
milhões em uma conta secreta na Suíça na campanha presidencial de 2010, Serra
pediu exoneração do cargo alegando problemas de saúde. Em seu lugar, Michel
Temer indicou o também senador tucano Aloysio Nunes (PSDB-SP).
Para
Fernando Henrique, Serra fortaleceu a cláusula democrática do Mercosul,
justamente quando o Brasil deixou de ser uma democracia, no golpe parlamentar
de 2016, apoiado pelo próprio FHC, que alçou Temer ao poder. "O Itamaraty,
sob a batuta de José Serra, reviu posições e revigorou alguns de nossos antigos
propósitos. Dentre estes, o fortalecimento da cláusula democrática no Mercosul
e a consequente cobrança de novos rumos na Venezuela", afirma.
O ex-presidente tucano
critica o "rearranjo da ordem global", exemplificado na política de
Donald Trump e saída da Grã Bretanha da União Europeia. "O rearranjo atual
da ordem global não tem força para estancar o que as mudanças culturais e
tecnológicas tornaram irreversível: as consequências do aumento da
produtividade e a integração produtiva. As mudanças em curso decorrem mais das
questões de poder do que das econômicas. Isso não nos leva a descuidar de nossa
base produtiva, mas induz-nos a não descuidar dos meios disponíveis de poder,
que incluem capacidade de defesa e visão estratégica", afirma.
"É
o que esperamos do governo ao nomear um novo ministro para as Relações
Exteriores: que não se esqueça de que entraremos em um jogo 'de gente
grande", afirma.
Leia abaixo a íntegra do artigo de
Fernando Henrique Cardoso.
Jogo de gente grande
Por
Fernando Henrique Cardoso
No carnaval passeei com casais
amigos por Florença e vizinhanças. Há mais de meio século, eu, minha mulher
Ruth, Bento e Lucia Prado e Arthur Giannotti passeáramos pela mesma região com
a fascinação da primeira vez e a energia da juventude. Lá, de onde escrevo este
artigo, passamos o 31 de dezembro de 1961.
Desta vez, com o mesmo
deslumbramento, revi o que pude das cidades toscanas. Em 1961 vivíamos o clima
da Guerra Fria — russos e americanos se enfrentavam por procuração, como na
"crise dos mísseis" em Cuba — e as marcas da guerra quente estavam
presentes na Europa bombardeada. Agora, nem mesmo a eventual tensão belicosa
que os dias de Trump deixam entrever assusta o Ocidente.
A memória se esfuma: passa-se
por um ou outro cemitério americano em solo italiano e só os mais velhos,
imagino, ainda se lembram do que foi a luta dos Aliados contra o Eixo
totalitário. Em poucos brasileiros ressoam os nomes de Monte Cassino e Monte
Castello, marcos do heroísmo dos soldados brasileiros.
É bom, entretanto, não
esquecer. Desfrutando o gênio de Masaccio ou o colorido e a perspectiva dos
afrescos de Ghirlandaio, a poucos passos um do outro na Santa Maria Novella, é
bom darmo-nos conta de que o que o passado construiu pode romper-se e não só na
arte.
Vale a pena recordar que a
História é mãe e madrasta ao mesmo tempo.
Os sinais do futuro podem não
ser do nosso agrado, mas com eles teremos de nos haver.
O pós-guerra, a despeito das
diferenças entre comunistas e capitalistas, resultou na criação das Nações
Unidas e na corresponsabilização dos vencedores da guerra pela ordem global e
pela paz mundial.
O arcabouço político que
precedeu a globalização econômica está se modificando, e a continuidade do que
pareceria imutável no espírito ocidental depois de tanta violência e morte, o
internacionalismo, não pode mais ser tomado como algo definitivo.
Será que os eleitores do Brexit
ou os rebelados do Rust Belt, que atribuem suas perdas à globalização e aos
imigrantes, acaso se deram conta de que estão destruindo o que as gerações
passadas fizeram com tanto esforço? Provavelmente não e pouco importa.
O que é certo é que o
"equilíbrio de poder" que americanos, chineses, russos e europeus
construíram depois da guerra de 1939-45 está abalado. E não pela
"desglobalização" ou pelas crises da economia — que sempre pesam —
mas pela visão do mundo e do poder que os governantes da geração atual parecem
acalentar.
Os Estados Unidos com Trump se
retraem dos compromissos internacionais: o "America first" de Trump
visa mais o fortalecimento da economia doméstica do que o predomínio mundial.
Os chineses se expandem na
economia e se fortalecem regionalmente, mas sem empenho em construir o mundo à
sua semelhança, como tinham os americanos.
A Rússia se contenta em
intervir de onde era excluída, de "sua" área imperial e das zonas
onde historicamente os otomanos deram as cartas.
E por aí vão refazendo caminhos
os antigos donos do mundo, deixando a Europa escabreada.
Diante disso, o que cabe aos
que ainda não têm voz decisiva no capítulo global, como nós brasileiros, é
dar-nos conta de nossos interesses e ver estrategicamente, sem alinhamentos
automáticos nem mesmo ideológicos (pois disso não se trata como na luta contra
o Totalitarismo ou o Comunismo), para que lado vai o mundo e como melhor nos
situamos nele.
Este "pragmatismo
responsável" não deve se eximir de tomar partido, entretanto, na defesa
dos direitos humanos e da democracia quando for o caso.
Não deve tão pouco deixar de
avaliar friamente os interesses econômicos de nosso povo. Se até Larry Summers,
ex-ministro da Fazenda dos Estados Unidos e pilar do pensamento liberal de
mercado, para compensar as angústias da globalização, apresentou um texto ao
Berggruen Institute falando de "nacionalismo responsável", por que
não deveríamos repensar nossas chances, interesses e responsabilidades quando
uma nova ordem mundial começa a esboçar-se?
O Itamaraty, sob a batuta de
José Serra, reviu posições e revigorou alguns de nossos antigos propósitos.
Dentre estes, o fortalecimento da cláusula democrática no Mercosul e a
consequente cobrança de novos rumos na Venezuela.
Precisamos intensificar os
liames com os vizinhos da América do Sul no lado do Pacífico e, principalmente,
dar maior força a nossa ligação com a Argentina. Da mesma forma, necessitamos
de sólida reaproximação com o México, flechado por Trump; devemos ampliar
nossas convergências, não só econômicas mas políticas, com aquele país.
O muro proposto separa não
apenas o México: separa os latino-americanos e os americanos adversos à
insensatez de Trump.
Começamos a vislumbrar que as
mudanças no tabuleiro internacional não vão na direção de um novo Hegemon, mas
abrem espaço para alianças regionais que podem transcender o hemisfério. Neste,
por escolha dos Estados Unidos, estão distantes os tempos da Alca.
Quem sabe um acordo com o
Mercosul se torne viável, com os alemães à frente e os ingleses correndo à
parte, mas também interessados em, ao se distanciarem de Bruxelas, não perderem
espaços no mundo.
China e Índia, que crescem 7%
ao ano, precisarão cada vez mais de comida e minérios de que dispomos.
O rearranjo atual da ordem global
não tem força para estancar o que as mudanças culturais e tecnológicas tornaram
irreversível: as consequências do aumento da produtividade e a integração
produtiva. As mudanças em curso decorrem mais das questões de poder do que das
econômicas. Isso não nos leva a descuidar de nossa base produtiva, mas
induz-nos a não descuidar dos meios disponíveis de poder, que incluem
capacidade de defesa e visão estratégica.
É o que esperamos do governo ao
nomear um novo ministro para as Relações Exteriores: que não se esqueça de que
entraremos em um jogo "de gente grande".
FONTE: BRASIL 247